A Conjuração Baiana, entre a corda e o cordel

Anticolonial e antiescravista, movimento rebelde de 1798 inspirou-se na luta libertadora no Haiti e teve negros como líderes. Talvez por isso, História oficial esqueceu-se dele. Econjuro!, de Luís Pimentel, mescla teatro e poesia para resgatá-lo

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Por Daniel Brazil, em A Terra é Redonda

Poucos brasileiros conhecem com alguma profundidade a Conjuração Baiana, que leva o poético (e algo depreciativo) nome de Revolta dos Alfaiates, devido à grande participação de artesãos, pequenos comerciantes, sapateiros e alfaiates. Para os íntimos era a Revolta dos Búzios, um código de identificação dos participantes, que levavam um pequeno búzio amarrado no pulso.

Movimento independentista fomentado em Salvador em 1798, tinha um grande diferencial em relação à Inconfidência Mineira, ocorrida poucos anos antes (1792): a grande participação de negros e mulatos. O grande valor dado a Tiradentes e seus colegas, e o desprezo histórico aos quatro mártires baianos (Lucas Dantas, Manoel Faustino, Luís Gonzaga e João de Deus) diz algo sobre o racismo vigente em nosso país. Todos foram enforcados e esquartejados, mas só o mineiro virou “santo”, sendo idealizado como uma espécie de Cristo nas representações gráficas (todas absurdas, aliás).

A Conjuração Baiana, além de querer a independência de Portugal, pregava o fim da escravatura. Chegavam por aqui as notícias da primeira revolta bem sucedida de escravos, no Haiti, contra o domínio francês (1794). Folhetos colocados nas igrejas de Salvador pelos conspiradores anunciavam: “Animai-vos, povo bahiense! Está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais!”.

Os mineiros não chegaram a tal ousadia. A questão deles era a cobrança de impostos, de modo que todos pudessem continuar mantendo seus escravos numa boa. Eram liberais, digamos. Isso facilitou com que fossem cantados em prosa e verso, tornando-se símbolos pátrios. E, no campo literário, poucas homenagens foram tão bem sucedidas quanto o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.

Pois o baiano-carioca Luís Pimentel resolveu abordar a Revolta dos Alfaiates, criando uma obra híbrida Esconjuro!, que utiliza várias linguagens. Alinha fatos históricos com personagens ficcionais, propõe um belo diálogo com as ilustrações de Daniel Viana e cria situações mescladas com teatro e poesia, mais próxima das raízes nordestinas do que da erudição mimética de Cecília. Não à toa o subtítulo do livro é “a corda e o cordel”, uma referência à forca e à forma popular de expressão poética.

O grande ideólogo da Revolta, Cipriano Barata, era um fervoroso adepto dos ideais da Revolução Francesa. Doutor em Cirurgia, Filosofia e Matemática pela Universidade de Coimbra, maçom, foi um grande propagandista da independência, fundando jornais de oposição, trocando ideias com Frei Caneca em Pernambuco, passando por várias prisões em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Mas era branco e doutor, para ele sobrou o cordel. Para seus companheiros negros, a corda.

Pimentel traça com habilidade o perfil deste e outros personagens, inventa mais alguns, ressalta a participação das mulheres do movimento e produz uma obra original que estimula principalmente os jovens (a quem o livro é destinado) a conhecer mais sobre a história. Mais que isso: cruza referências poéticas atemporais (Gregório de Matos, Dorival Caymmi), alterna vozes narrativas e cria uma narrativa cativante, onde o prazer da leitura se mistura à revolta íntima contra as injustiças do mundo.

Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Luís Pimentel. Esconjuro!: a corda e o cordel na Revolta dos Alfaiates. Prefácio: Chico Alencar. Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2021, 88 págs.

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