A Semana de 1922 e os novos modernistas

Dois cordelistas urbanos celebram o centenário do evento que chacoalhou o Brasil. Em versos afiados, dissecam o “espírito de Macunaíma” — e seu legado às futuras gerações. Um sugere tese ousada: seria o cordel precursor da arte moderna no Brasil?

Imagem: xilogravura de J. Borges
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Por Eleilson Leite, na coluna Literaturas dos Arrabaldes

Compartilho dois cordéis que celebram o centenário da Semana de Arte Moderna, fazendo justiça a um gênero literário que não esteve presente naquele evento, mas que foi, posteriormente, valorizado pelo modernismo por meio das pesquisas de Mario de Andrade ainda nos anos 20. As duas obras têm o mesmo título (Semana de Arte Moderna – 100 anos) e foram publicadas em 2021, ambas pela Editora Areia Dourada. Josué Gonçalves de Araújo e Nando Poeta (Fernando Antonio Soares dos Santos) assinam os cordéis. São dois veteranos; Josué chegou aos 70 anos enquanto que para Nando falta uma década para alcançar o parceiro.

Filho de um casal de baianos, Josué nasceu no Pontal do Paranapanema no Estado de São Paulo para onde os pais migraram na década de 1950 deixando Ituaçu, cidade do Interior da Bahia conhecida por ser a terra natal de Gilberto Gil. Ao completar 18 anos, Josué veio para a capital, se instalou na Penha e permanece até hoje no tradicional bairro da zona leste. Já Fernando nasceu em Natal, no Rio Grande do Norte. Migrou para São Paulo onde trabalhou como professor da rede pública, formou-se em sociologia e atuou como produtor cultural. Recentemente, Nando voltou para seu Estado de origem. Josué é editor proprietário da Areia Dourada, editora que vem dando continuidade à tradição da Editora Luzeiro. Nando atua na difusão do cordel e como educador em Natal.

Os cordéis foram publicados em formato 14 cm x 21 cm, fugindo ao padrão dos cadernos 15 x 10 estampados com xilogravura. Os dois autores optaram pela organização do poema em estrofes de sete versos (septilhas). O Cordel de Josué tem 41 estrofes e o de Nando tem 51. Ambos seguiram uma linha cronológica, encadeando os antecedentes, o evento e os desdobramentos da Semana de 22. Josué, porém, não compartimentou tanto seu cordel. Ele organizou o poema para defender uma tese, segundo a qual, o cordel inaugurou o modernismo na última década de 1890 com as publicações de Leandro Gomes de Barros, tido como inaugurador do cordel no Brasil (as origens do cordel remetem à Península Ibérica medieval, segundo alguns estudiosos).

Além de demarcar a importância de Leandro, o autor faz um paralelo com o poeta parnasiano Olavo Bilac notório desafeto dos modernistas, explorando a coincidência de os dois terem nascido e morrido no mesmo ano (1865 – 1918). Há, portanto, uma argumentação teórica na composição de Josué, enquanto o cordel de Nando tem um tom de exaltação, mesmo quando ele critica, por exemplo, o fato de os intelectuais que protagonizaram a Semana de 22 serem da elite e o evento patrocinado pela burguesia cafeeira. Mas, as duas obras recolocam o cordel como um gênero literário que, se esteve ausente do acontecimento, conquistou seu espaço no modernismo com o reconhecimento de Mario de Andrade, como foi dito, mas também por nomes como João Cabral de Melo Neto com o clássico Morte e Vida Severina e Ferreira Gullar com seus cordéis difundidos pelo CPC da UNE na década de 1960. Com os livretos de Josué e Nando, o cordel entra em cena com os novos modernistas que são os artistas das periferias que estarão nas comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal.

O cordel é mais moderno que os modernistas

Josué Araújo fez um cordel muito bem elaborado para chamar a atenção da ausência deste gênero literário na Semana de Arte Moderna de 1922. Com isso ele evidencia uma contradição: a falta do popular num evento que pretendia romper o padrão estético predominante no início do século, incorporando elementos nacionais e populares às criações artísticas até então muito afrancesadas. De modo instigante, o autor coloca no mesmo plano, dois poetas antagônicos e contemporâneos entre si: Leandro Gomes de Barros, precursor do cordel no Brasil e Olavo Bilac, poeta maior do Parnasianismo, estilo que era combatido por Oswald de Andrade e por boa parte dos artistas modernistas.

Porém, enquanto Bilac era a antítese estética dos modernos, Leandro era o ignorado pelos arautos da Semana de 22. Josué destaca o quanto o cordel de Leandro já havia posto em xeque as firulas formais do parnaso bem antes do evento centenário acontecer: “esqueceram de Leandro/ que nasceu na Paraíba/ divulgando seu cordel/ vivendo na pindaíba/ Bilac, as rampas, subia/ Leandro, os livros vendia/ à sombra da copaíba”. Perspicaz, o autor destaca uma coincidência. Bilac e Leandro nasceram no mesmo ano (1865) e morreram também no mesmo ano (1918), e ambos em decorrência da Influenza que ficou conhecida como gripe espanhola, hoje tão lembrada em virtude da pandemia do coronavírus que nos assola. Mas, o fato é que por razões distintas, os dois foram negados pela Semana de Arte Moderna: um por divergência estética e o outro por desconhecimento. Mas, Josué faz justiça a Leandro: “O cordel é mais moderno/ que a arte dos modernistas/ os jovens da fidalguia/ a língua dos cordelistas/ muito antes, já alertava/ do modo que se falava/ nos grupos dos simbolistas”.

Josué não se conforma de o cordel, sendo tão inovador na forma e no conteúdo, fosse uma manifestação ignorada pela elite intelectual que ocupou o Teatro Municipal e fez história como vanguardista. No poema, Josué aponta outras questões do centenário evento. Rigoroso, ele percorreu os antecedentes da Semana de Arte Moderna, desde a volta de Oswald da Europa em 1912, animado com o Manifesto Futurista que inspirava debates no Velho Continente no início do século passado. O autor percebeu a contradição do documento que se reivindicava moderno, porém, elitista: “Ganhou força lá na Europa/ a luta do movimento/ Oswald teve nas mãos/ um folheto do momento:/Manifesto Futurista/ mesmo ele sendo elitista/ trouxe esse forte argumento”.

Didaticamente, Josué segue no cordel enumerando os acontecimentos que corroboraram a Semana de 22. Ele destaca as artes visuais. Relata a exposição de Lasar Segall em 1913, a afirmação modernista de Anita Malfatti em 1917: “Mil novecentos e treze/ o russo Lasar Segall/fez a sua exposição/ em São Paulo, Capital/ de telas do Expressionismo/ despontando o Modernismo/ sem ser muito radical”. Sobre a Anita, o autor retoma a polêmica com o escritor Monteiro Lobato: “Essa artista massacrada/ Censurada por Lobato/ Provocou grande incentivo/ para efetivar tal ato/ ‘Semana de Arte Moderna’/mesmo enfrentado a baderna/ do parnaso estupefato”.

Josué lembra que Manuel Bandeira não esteve presente pessoalmente, mas seu famoso poema “Os sapos”, que bebe na fonte cordelista, arrisco afirmar, foi lido na abertura da Semana de Arte Moderna: “‘Os sapos’ achincalhado/ sem presença do Bandeira/ Pois o Koch fez barreira/ e o Bandeira foi barrado”. Os versos justificam a ausência do poeta pernambucano que já naquela época morava no Rio de Janeiro. Bandeira sofria de tuberculose, daí a referência a Koch que dá nome à bactéria que causa a referida comorbidade.

Pororoca de Linguagens

O cordel de Nando poeta, embora com lampejos críticos, segue a linha da exaltação. E já anuncia a apologia na primeira estrofe: “Nosso mundo abrindo as portas/ a nova ordem operando/ uma explosão de ideias/ na Europa saltitando/ surgindo os vanguardistas/ nas escolas futuristas/ nesse barco navegando…”. Ele recupera, em parte, os antecedentes destacados por Josué. Fala também da viagem de Oswald de Andrade para a Europa: “na viagem pela Europa/ encontrou o seu caminho/ o Oswald abraçou a tese/ vindo de um redemoinho”. E que tese seria essa? O Manifesto Futurista, por certo conforme citado por Josué.

Escrito em 1909 por Felippo Tommasi Marinetti, esse texto teve ampla repercussão e influenciou movimentos vanguardistas na primeira metade do século XX. Entretanto, além de elitista, o manifesto flertava com o fascismo e era misógino: “queremos glorificar a guerra – a única higiene do mundo-, o militarismo, o patriotismo ( …) e o desprezo pela mulher”. Em outra passagem define o feminismo como uma das “covardias oportunistas utilitárias”. Mas, é sabido que Oswald e seus parceiros e parceiras não seguiram por aí. Do Manifesto Futurista, se é que lhe serviu de inspiração, foram as primeiras teses: 1) “queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade”; 2) “A coragem, a audácia e a revolta serão elementos essenciais de nossa poesia”; 3) “Até agora a literatura refletiu a imobilidade melancólica, o êxtase do sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a corrida, o salto mortal, o soco e o tapa”.

O tom desses trechos tem mais a ver com o ímpeto criativo e corrosivo de Oswald além de corresponder a sua índole combativa. Nando, assim, atribui um protagonismo decisivo ao autor de o Rei da Vela para a organização da Semana de Arte Moderna. Desse modo, seu cordel parte do mencionado rolê na Europa como marco inaugural do que viria acontecer 10 anos depois. A amizade com Mario de Andrade aparece nas estrofes seguintes destacando o ano em que selaram o promissor encontro: “E no dezessete era o ano/ século viste tira o plano/ no passo a passo se ergueu”.

Convergindo com Josué, Nando dá destaque para Anita Malfatti e sua polêmica exposição realizada também em 1917 que foi acidamente criticada por Monteiro Lobato que era um crítico ressentido dos modernistas. Além de rançoso, Lobato foi preconceituoso ao se referir à artista com o termo “teratológica” numa referência indireta à conhecida deficiência física de Anita. Nando narra a treta nos versos da estrofe seguinte: “Oswald de Andrade sai/ na defesa da pintora/ reforçou que a exposição/ com sua força motora/ Estopim do Modernismo”. Ainda no campo das artes plásticas, o autor lembra que Mário de Andrade já havia exaltado a exposição de Lasar Segall ocorrida em 1913. Com pouca repercussão, aquela exposição ficou sem destaque, mas é consenso que foi um evento seminal do Modernismo.

No processo de preparação do que viria ser a Semana de 22, Nando cita o centenário da Independência como um motivador do evento, fato não mencionado por Josué. E faz todo o sentido essa referência. A patriotada em torno da glorificação do 7 de Setembro incomodou os modernistas. São Paulo sempre quis valorizar esse acontecimento histórico em virtude de ter ocorrido na cidade o rompante separatista de Dom Pedro I. Em torno do atual Museu Paulista, no bairro do Ipiranga, cujo propósito original era para ser um palácio dedicado à Independência, foi construído o monumento em torno do mausoléu do Imperador e da Imperatriz Leopoldina. A Semana de Arte Moderna foi, em certa medida, um contraponto a essa exaltação.

Enfim, o evento acontece no dia 13 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal: “Naquela noite, no palco/ do teatro Municipal/ a ousadia criou asas/ passou forte o vendaval/ propagou-se a mensagem/ mostrando a nova roupagem/ poética e musical”. O público, como é sabido, não recebe bem aquelas modernagens todas. Da plateia o que mais se ouviu foram vaias. Nando explica bem essa reação na estrofe: “os presentes todos vaiam/ todos que ousam romper/ a arte presa no arcaico/ já bem pertinho de morrer/ o público resiste a tudo/ que fuja do conteúdo/ sem deixar seu benquerer”.

Em nove estrofes (64 versos), Nando descreve como foi o evento. Feito o relato poético, ele estabelece um recuo no tom de júbilo que até aqui predomina em seu cordel. O autor pauta a crítica ao elitismo do evento que pretendia ser disruptivo, mas com financiamento da burguesia paulista ilustrada: “muitos saíram nas críticas/ pelo caráter burguês/ de um evento que o dinheiro/ do rico deu validez/ sem um cunho social/ mais ligado ao capital/ que deu toda polidez”. Nessa modulação de tom (impulso de apologia e recuo crítico), Nando Poeta chega a um tom mais sóbrio de afirmação da importância cultural do evento: “o moderno e a tradição/ num encontro de saberes/ pororoca de linguagens/ produzindo seus prazeres”.

A parte final, com 15 estrofes (105 versos) é dedicada ao legado do evento: “Semana 22/ pavimentou um caminho/abriu veredas para as artes/ fez grande redemoinho/ time de jovens artistas/na trilha dos modernistas/ deu sustança ao nosso linho”. Nando cita os manifestos que foram escritos depois do evento: Poesia Pau Brasil (1925) e Antropófago (1928), ambos de autoria de Oswald de Andrade. Como reverberação daquele acontecimento centenário, o autor cita o Concretismo dos anos 1950 e o Tropicalismo da década seguinte. Nando encerra seu cordel com versos certeiros: “hoje depois de cem anos/ vimos que valeu a pena/ que a arte pautou mudanças/ sem atitude pequena/ manifestações artísticas/ com expressões futurísticas/ embelezou nossa cena”.

Novos modernistas

Nando citou o Concretismo e a Tropicalismo como reverberações da Semana de Arte Moderna de 1922. Poderíamos acrescentar o movimento Vanguarda Paulista da década de 1980 que tinha como ponto de encontro um teatro de porão em Pinheiros, o saudoso Lira Paulistana. Daquele movimento saiu Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Rumo, Ná Ozetti, Suzana Salles entre outros e outras. Nos tempos atuais, atrevo-me a dizer e não sou o único, nem o primeiro, que o movimento cultural das periferias é onde encontramos os Novos Modernistas, entre os quais, os cordelistas urbanos como Josué, Nando e o Costa Senna, para citar três.

São Novos Modernistas também, os Racionais MC’s, a produção de arte negra, do afrofuturismo e LGBTQIA+. Também são modernistas Maria Vilani, Dinha, Raquel Almeida, Elizandra Souza, Arlete e Jesuana, uma mulherada que entrou em cena fazendo do Sarau do Binho, num teatro em forma de beco (Clariô), e do Sarau da Cooperifa, que acontece num bar de quebrada (Zé Batidão), o Teatro Municipal da arte negra e periférica. Novos modernistas são também os e as poetas dos slams que acontecem em ocupações culturais, praças, botecos e estações de Metrô, de onde saem nomes como Emerson Alcalde, Lucas Afonso, Roberta Estrela Dalva, Luz Ribeiro e Mel Duarte, para encurtar a lista que é enorme.

Os negros, indígenas e nordestinos que não estavam na Semana de Arte Moderna de 22, além das mulheres pouquíssimo representadas, terão sua presença exaltada no Teatro Municipal na noite do adia 14 de fevereiro. Nesse dia, o palco daquele consagrado espaço receberá As Clarianas, Sarau das Pretas e o Sarau do Binho num espetáculo histórico que se soma à ocupação feita Emicida com seu show AmarElo em novembro de 2019, dia em que o Municipal teve público majoritariamente negro nas suas galerias lotadas. Completaria a ocupação se as duas versões dos Cem anos da Semana de Arte Moderna fossem lidas nas escadarias do icônico teatro agregando às comemorações esse gênero literário que une a tradição e o contemporâneo, algo tão modernista que não poderia estar fora da noite que celebra a arte da periferia num Teatro que por mais de cem anos esteve afastado do povo que ergueu suas paredes. Arte é ocupar!

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2 comentários para "A Semana de 1922 e os novos modernistas"

  1. Costa Senna disse:

    Parabéns meu caro Eleilson Leite pela explanação sobre os trabalhos dos cordéis que tratam da semana de arte moderna.
    Josué Goncalves, Nando Poeta e Eleilson Leite
    São merecedores dos mil parabéns.

  2. Roberto E. Zwetsch disse:

    Artigo excelente, Sobre os Manifestos “Poesia Pau Brasil’ (1925) e “Antropofágico” (1928), ambos de autoria de Oswald de Andrade, houve equívoco do cordelista n segundo: O Manifesto citado, de O. de Andrade, chama-se Manifesto Antropófago, cf. livro do autor publicado nas Obras completas, vol. 6, Rio de Janeiro, pela Civilização Brasileira e MEC, de 1972.
    Roberto Z.

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