A poesia, o poema e o poeta transgressor

Em dois poetas da periferia, a sofisticação sem pedantismo. Um busca o lirismo em brisas sobre a escrita, o insólito e o cotidiano. Outro, fino artesão, aposta na arte da “poesia de para-choques”. Em ambos, a irreverência e o espírito libertário

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

Compartilho a leitura dos livros Para brisa1, de Ni Brisant (2013, Editora Ciclo Contínuo) e Meta lingui stica2, de Paulo D’Auria ( 2013, Selo do Burro). Ni Brisant (Nivaldo Brito dos Santos) é baiano de Acajutiba, veio para São Paulo ainda jovem e fixou residência na periferia da Zona Sul. Nascido em 1985, Ni tem graduação em Letras. Já Paulo D’Auria é paulistano, morador da Zona Norte, formado em História e já tinha 19 anos quando Nivaldo nasceu. Na brisa é o segundo livro de Brisant, enquanto Meta lingui stica é a obra de estreia de D’Auria. Ambos publicaram muito desde então, perto de dez livros cada um. Tamanha produção motivou a criação de suas próprias editoras. Selin Trovoar é o empreendimento de Nivaldo e Edições Poetas do Tietê é a casa editorial do poeta da zona norte. Vinculados a coletivos e saraus, os dois autores são nomes de destaque na cena literária da periferia de São Paulo.

Os livros têm em comum uma relação de desapego com a poesia institucionalizada nas cátedras. Os autores, dotados de formação acadêmica, manejam bem os códigos e conceitos da poética, mas usam dessa habilidade para subverter a ordem e não para se subordinar ao cânone. Não cultivam uma erudição pedante, embora seus poemas tenham uma sofisticada elaboração. Paulo abre o livro anunciando a morte da poesia, mas ele não faz necropoemas. O que o autor busca é a poesia do cotidiano que está no pregão dos feirantes, nos diários de adolescentes apaixonados, no alarme do carro que dispara na madrugada e “nas melhores intenções dos demônios”. Já Ni Brisant faz poesia para para-choque de caminhão com a delicadeza de um artesão. Ambos convergem para uma ideia de que a poesia pode estar em qualquer lugar e não somente nos livros. A leitura das obras logo me remeteu ao outrora marginal, hoje consagrado, poeta Waly Salomão em seu famoso poema Assaltaram a Gramática que virou rock pelas mãos dos Paralamas do Sucesso: “meteram poesia na bagunça do dia a dia”. A transgressão proposta neste poema inspirou os comentários que apresento aqui.

Meta lingui stica

O livro de Paulo D’Auria tem 32 poemas e um conto e todos os textos abordam a relação entre a poesia, o poema e o poeta, justificando o título da obra, pois toda ela é um tratado de metalinguagem ou metapoesia. Da forma como está impresso, o título já sinaliza um traço fundamental da obra que é o exercício, por vezes lúdico, de exploração da textura das palavras, subvertendo sua grafia em benefício da criatividade marota do poeta. Metade dos textos incide sobre a poesia como gênero literário estabelecido. Outros 5 textos tem o poema como foco, entendido como produto literário. Por fim, há 10 poemas sobre a condição do poeta.

Dessa relação surgiu um conjunto muito instigante de composições sobre o ofício da escrita poética, um tema recorrente entre autores e autoras da periferia, mas o livro de D’Auria é um caso raro, talvez único, por dedicar toda a obra a essa questão tão elementar quanto complexa. Os textos sobre a poesia podem ser divididos em duas partes. Uma, com 11 poemas, é da metapoesia que aborda mais o significado, o conceito, enquanto a outra parte agrega os poemas mais experimentais que exploram o significante, a matéria.

O primeiro texto chama a atenção por não ser um poema e sim um conto. Esse recurso demonstra a astúcia do autor, pois o título do texto é A morte da poesia e não seria elegante fazer uso de um poema para anunciar tal notícia. Com ironia refinada, o conto narra o calvário da poesia enterrada como indigente. Mas ela foi, posteriormente, reconhecida e teve um funeral honrado, porém, caiu no esquecimento de vez e sua falta não foi sentida, exceto pelos adolescentes enamorados que a cultivavam em seus diários. Em Papo cabeça, a poesia é vista como uma instância acima do poeta. Este, por sua vez, se vê forçado a aturar seu narcisismo, pois a poesia não para de falar de si mesma. O poeta se vê diante da questão: “qual a meta/ da metapoesia?/ se autoindagar/ ou se autoafirmar?”

Essa indagação demarca o território difuso da poesia que seguiremos vendo na maior parte dos demais poemas. Implícita (logo ela) é umlongo e inspirado poema que passa a maior parte do texto dizendo que a poesia habita todos os cantos: da lua ao frigobar da limosine, passando pela sorveteria e “a marca de baton na xícara deixada/não é mais nada/ senão ela”. Há, porém, apenas dois lugares que ela não frequenta: “bula de remédio/e filme de sexo explícito”, talvez isso explique o título do poema. “Senhora das dúvidas por excelência”, ela surpreende e vai ao analista “em busca de respostas”. Mas o psicólogo a rechaçou: “não quero ser mais tarde apontado e culpado/ nem por sua morte nem por sua crise”. E o poema termina endossando a recusa do analista em tom indignado: “logo ela/não sabe quem é/nem pra que serve/ ou a que veio”.

Em Perdida “a poesia perdeu-se/ na Cidade/Levei-a pra passear e nunca/ mais a vi”. “Correu com o primeiro/rufião, esta perdida”. O poema ganha um ritmo acelerado, como o movimento da metrópole. A poesia se perde na cidade, a cidade perde a poesia e a cabeça do poeta também se perde nesse transe. Como num sequestro relâmpago, o poeta cai no rio no qual acredita ter visto “a poesia no cio”. Conclui: “contramão demais para elas/ acostumadas a ir/ com o vento/ a sentir com o ventre” Em Perdida 2, poema concreto dá continuidade ao anterior e a forma geométrica do texto, sem pontuação e com espaços entre as letras, acentua o traço difuso, mas: “no último suspiro ela [a perdida] descobriu/ que não passava de uma poesia”.

A pior poesia do mundo se inicia com os versos: “Nem tudo o que é escrito em forma de verso é poesia/ e nem toda poesia vem em forma de versos”. Feita essa ressalva formal, o poeta diz que sua pena precisa passar “pelos campos de petróleo em chamas no Irã/ pela AIDS na África/ pelos talibans no Afeganistão…”. E afirma aos leitores incautos que isso tudo é poesia, “ainda que a pior poesia do mundo”. Na última estrofe volta os versos iniciais e conclui: “jamais tanta poesia no mundo se conformaria com isso”. Creio que seja a condenação da forma poética que impõe restrições. Essa reflexão está posta no poema Onde a poesia se gesta, no qual a poesia surge do improvável, do inusitado: “entre o tudo e o fugaz/ ou na essência/ a ciência e o grotesco” ou “nas melhores intenções dos demônios”. A poesia se gesta, por fim, “no ausente do presente”. É possível entender que a poesia nasce do vazio, da lacuna e, assim, preenche espaços, não necessariamente, porém, para acomodar, estabelecer ordem, como se vê no poema sem título que expressa a força desestabilizadora da poesia: “deteriorando pontes/ obrigados a molhar os pés nos rios/ como dante no inferno/ o errado no lugar certo/o longe no lugar do perto”.

O grupo de poemas mais experimentais começa com Meta lingui stica, poema que dá título ao livro. Uma composição que remete a Waly Salomão (Assaltaram a gramática) pelo estilo: “meta a poesia/ onde bem entender meter/ No tempero da salada/ no suco de beterraba”. Mas há um apelo, ou um trocadilho com a função sexual da língua, justificando a grafia do título do poema, acentuado pela imagem, algo como meta a língua e estica, sexualizando a gramática para corroborar a associação com Waly. Em Circo, o poeta imagina como seria se o lema dos romanos na antiguidade fosse “pão e poesia” ao invés de “pão e circo”. “Todo padeiro seria poeta/trigo seria caneta/pão doce seria soneto”.

Em Lúdica temos mais um exercício lúdico, como sugere o título, sobre o significado da poesia. A primeira estrofe é uma enquete que faz menção aos vários perfis de poeta: “romântico, semântico, político, sínico”. Há também o “poeta freudiano, pós jungiano”. Lembra que no século XIX poetas morriam de tuberculose e, no XX, de overdose. Na quinta estrofe é o auge da brincadeira: “tem até poesia pudica/salpicada de palavras safadas/coradas, meladas com goiabada/ sauduichando Romeu e Julieta”. Depois vem uma sequência de quatro estrofes com intertextos de Robert Louis Stevenson: “Tanto Mister Hyde/ dentro de mim e de tu/ para tão pouco Doctor Jekyll”; Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor – já diziam certas pessoas” e Cazuza, fazendo a junção entre os dois: “que adora um amor inventado tão completamente/ que exagerado deveras sente”. E completa seu manifesto: “A poesia é lúdica/ a poesia não é lúcida/ Mas é tudo tudo tudo verdade/ na ludi-cidade/ do poeta construtor”.

O bloco termina com uma sequência sobre a poesia na bagunça do dia a dia. Entre o samba e a valsa, a poesia está em toda parte: “no cafezinho – a qualquer hora/ no cigarro – depois do sexo/ como balinhas tic tac – só duas calorias/ no Mastercard – em todos os lugares”.

A referência ao cartão de crédito abre uma vereda pela qual passam versos que remetem ao universo comercial: “poesia no regatear do freguês:/ dá um desconto, eu tô levando três…”. Só não há poesia, diz o poeta: “no menor abandonado/ no aquecimento global/ e na falta de caráter nacional”. Por fim, há dois poemas com título Poesia do Cotidiano. Um é sobre a poesia que habita o trivial da vida: “as roupas quarando ao sol/ dos homens carregando tijolos/ como a baillarina no municipal”. A poesia é o antídoto para o rancor e amargura e para suportar “o fastio do dia a dia”. Na versão 2, temos a poesia que emerge do trabalho: “no passarinho feito pelo serralheiro./A poesia do vendedor da feira”. Poesia é algo que todo mundo pode fazer, defende o poeta: “basta ficar atento ao ritmo/ e às rimas do dia a dia”.

Os textos que tem a materialidade do poema como tema central estabelecem um conflito aparentemente irreconciliável entre a criação e o criador, especialmente em dois casos. O primeiro tem o sugestivo título de Ringue e narra bem essa peleja: “o poema é toureiro x o poeta touro”. A arena passa para o campo de futebol: “o poema atacante x o poeta goleiro”. O poema sabe que manda, assim como o poeta reconhece esse mandato com resignação, mas no último verso, revida: “poema filho da puta!”Já em Empacou, o poeta, no fim da linha, forçou o poema a pular, mas, empacado, o poema não sai do lugar. Contudo, o poema, de repente, se deu conta que era livre, posto que é arte: “ e virou passarim/ voou, voou/Deixando o poeta/ com a cara no chão”.

No último bloco de poemas ficam os que dão centralidade ao sujeito da arte, o poeta. Parte deles abordam as motivações e bloqueios da composição. O avião é um poema experimental sobre o bloqueio criativo do poeta diante da folha em branco. Clama pelo poema: “Pô, Ema!” Consegue, enfim, encher a folha, mas se frustra: “Paradoxo/ a folha cheia/mais vazia/ que a folha branca”. O poeta resolve o impasse dobrando a folha e com ela fazendo um aviãozinho: “Pronto,/poesia no ar”. Em Concisão, o poeta insone se vê em busca de uma palavra que “fosse, em si, um poema”. Tentou várias: de boceta à liberdade no português majoritário. Recorreu às palavras do banto e ioruba: “quilombo, acarajé, bunda, banzo”, mas não encontrou a tal concisão. Buscou no Tupi: “pororoca, curumim, paçoca…”, sem sucesso. Até que o alarme de um carro quebra o silencio da madrugada e fornece ao poeta a palavra que tanto procurava: “ui”. A onomatopeia estridente esticava a palavra que ele imprimiu no papel em dois círculos e conclui: “ui,/ palavra definitiva/ simples, inquietante”. O poeta feliz, pode, enfim, se recolher, mas o alarme incessante não o deixou dormir.

JáemReflexão,o poeta se indaga sobre a motivação do poema: “alienado ou socialista- engajado?”. A encruzilhada do poeta bifurca de um lado para Camões e de outro para Cruz e Souza como inspirações que de tão grandes, lhe paralisa. E o poeta se repete e se reflete. O verso “eu reflito” aparece escrito na sequência de modo inverso como se fosse reflexo num espelho, aprofundando o impasse do poeta. Por fim, em Por que você não faz um poema sobre algo que nunca tenha dito antes? – parte 2 o poeta responde assim à pergunta contida no verso: “por incapacidade de pensar/ em uma forma tão risível/ de desinvisibilizar/ o indizível”

Outros três textos que destaco dizem respeito ao papel do poeta. Em Desbrincadeira sem língua ( beijo – abraço – aperto de mão)o autor questiona a passividade da poesia: “poesia é assim/ criança parada/ quieta/educada/emoldurada” . E no final defende: “Poeta devia mais/ sair da biblioteca/ mergulhar de cabeça/ na rua/ no povo/ no mundo/ até a vida/ não ter mais fim”. No poema Aos mestres, com acabrunhado carinho,o autor faz uma homenagem aos cânones: Cabral, Bandeira, Drummond, Quintana, Vinícius e Cora Coralina. O tom, porém, não é de exaltação, mas de constrangimento e culpa: “só escrevo porque é grito/ se pudesse, sussurrava/ perdoai-me mestres/se pudesse me calava”. Finalmente, em Piromancia, diz: “para evitar problemas/ não escrevo mais poemas”. Com ironia e sarcasmo, defende que para se ter uma sociedade mais quieta e idiota, basta “incinerar poetas”

Para brisa

Para brisa reúne 42 poemas e uma carta. A obra, no seu conjunto, não evidencia recorrências que possam nos indicar estruturas apoiadas em temáticas. A exemplo de D’Auria, na poesia de Brisant o conteúdo é a forma. A composição do autor explora com maestria as possibilidades da sintaxe, dos fonemas, figuras de linguagem e todo o aparato da gramática. Formado em Letras, o autor se esmera e se lambusa todo nessa brincadeira com as palavras. O último poema do livro, chamado Curso, dá essa pista do afã do poeta: “Findas letras/ procura palavra em tudo/ vai fundo/ mas vai com tudo/lê todo mundo”.

Dito isso, agrupei os textos em duas partes. Um grupo reúne os poemas mais reflexivos, quase todos líricos que revelam o olhar sensível para as pessoas anônimas ou não, sozinhas ou na multidão. Falam de amor por gente, por bichos, pela poesia e por Flora, sua filha que deve ter quase a mesma idade deste livro lançado em 2013, como já foi citado. No outro grupo estão os poemas de para-choque, aproveitando o título que ele deu para um texto do livro que reúne 28 pequenos poemas que caberiam no para-choque de um caminhão. Cada grupo tem 14 textos. Os outros 14 escaparam da sanha classificatória de um historiador metido a fazer estudo literário.

Ente os poemas reflexivos há um grupo com um tom mais introspectivo. Armadura, que abre o livro já pavimenta o caminho para as composições do eu profundo e outros eus. Um poema oração, porém, não voltado a uma devoção, mas a si mesmo, numa autoemulação guiada pelo medo, cujo enfrentamento requer admiti-lo: “só não tem medo quem não tem nada a perder”. A cada estrofe o poeta indica dois medos que superou: medo de cair e medo da solidão. Mas há outros medos implícitos. A partir daí o poeta se apega a coragem, entendendo esse sentimento como “todo passo dado na direção oposta/ [ao que somos…”.

A coragem é, portanto, a armadura para se defender, não com passividade, mas assertivo: “defenda a sua alegria/ a sua história/ o seu amor. Defenda-se!” O poeta termina o texto reverenciando a Deus como expressão da coragem: “sentir medo é humano, mas/ ter coragem é carregar Deus no coração”.

Em Para brisa, observamos que esse título, escrito sem o hífen, perde o sentido denotativo do acessório de automóvel e passa a ser uma conjunção: que pode ser para brisar em trocadilho com Brisant. O texto aborda o sentido de ser poeta: “escrevo/ e sou agora minha própria escrita”. Três estrofes começam com Soul: “Soul/ o que sempre quis; “Soul/ método e desobediência; “Soul/ vício e devoção”. Na dúvida, sou um tal eu”. E termina com versos que fala de um amor: “entre o vazio de lábios e olhares perdidos/ sinto que hoje ainda vale a ida/ mas se nossa história não couber nos livros/ acabo aqui esse poema e vou para a lida”. Aqui o autor demonstra mais uma vez seu talento para os trocadilhos, associando o sentido da palavra lida à leitura e não a trabalho como denota.

Meu precioso é um poema de difícil compreensão, mas é de uma riqueza de imagens e de uma tensão tão avassaladora que deixa o leitor inquieto. “Guardo um ovo no lugar do coração”, é um verso que se repete como mantra ao longo do poema. Na primeira estrofe parece indicar uma atitude de frieza diante de alguém que chega arrombando a porta (do coração?): “Tu vieste munida de bombas e bombons/chaves, machado, cartões de crédito/ e outras máquinas de abrir”. Na segunda estrofe ganha um tom existencial: “mas guardo um ovo no lugar do coração/não há porta/ não existe entrada para o que sou”. Depois dá a impressão que o eu lírico se vê como uma galinha, uma ave que vive no chão, apesar de ter asas: “cresci com répteis/ mas tenho asas”. Tal metáfora corrobora os versos anteriores que dizem: “tu vieste empunhando colher e garfo/ peixeira, punhal e uma fome dos diabos./ você não queria mais me invadir./Tu só pensavas em me dominar/ me comer e sumir”. O autor consegue no poema desenhar uma cena de sofrimento de cortar os pulsos e que ganha explicação no poema Transeuntes com três pequenos versos que condensam um tratado de filosofia: “ao contrário do que dizem/ é a morte que mora na gente/todo o fim acontece de dentro para fora”.

Os poemas de amor de Brisant parecem se referir a relações do passado num tom de sofrência mitigada pelo tempo que é a medida da própria distância. Em Agrado, poema de quatro estrofes, o poeta tenta expressar o amor por uma mulher que parece ser a mãe de sua filha. Todas as estrofes terminam com o verso: “a sua alegria é o meu desejo”. Fala de falta e de saudade e no final cita um parto como “derradeiro ritual”. A ideia de rompimento fica mais explícita nos versos seguintes: “fomos repartindo nossos artigos de memória/ e consumindo cada silêncio como um tapa na cara”. E a hipótese ganha ainda mais sentido no verso final que subverte o reiterado texto que encerra as estrofes anteriores: “desde então, o meu desejo foi sua alegria”.

Em As coisas que perdemos para o fogo o tom é também de separação. Trata-se de umpoema narrativo em primeira pessoa do plural. Embora transmita um sentimento íntimo, seu objeto também parece distante no tempo. Dessa forma o poema passa a ter um traço épico. Carregado de alegorias, o texto se divide em quatro estrofes, todas elas com o mesmo enunciado, modificando o tema com uma variação de tensão declinante:
“Nosso amor deu lugar a um funeral/Nosso amor deu lugar a um banco vazio/Nosso amor deu lugar a quatro mãos no bolso/E nosso amor deu lugar a um tratado sobre o coração/ que virou uma banda”. No final, faz um balanço: “quando resgatamos as coisas que perdemos para o fogo/ depois que o tempo digeriu nossa primeira morte (…) nosso ‘era uma vez’ deu lugar a um/ ‘volte sempre’/ e o nosso amor virou uma história feliz”.

Nivaldo que é brisa tem seus poemas de ventania. Cruzes vazias é um texto sobre a massa inerte. Poema longo dividido em quatro partes nas quais discorre sobre a “multidão caminhando a esmo”, como diz Gil na canção em parceria com Dominguinhos ou a “vida de gado” cantada por Zé Ramalho. Primeiro são os “animais a caminho da guerra/ já sem vida antes a volta”. Depois os animais são os amantes “a caminho da cama/ já sem sonhos antes do sono”. O terceiro pelotão são os trabalhadores: “encontro animais a caminho do trabalho/ já sem força antes de derramar o primeiro suor”. São eles que “juram lealdades a carnês, livros sagrados, cruzes vazias” se referindo aqui às igrejas as quais devotam uma crença a deuses de ocasião. Na parte final, se remete a si próprio: “ao longo destas 26 léguas”, dá a entender que fez o poema quando tinha 26 anos (tinha 28 na época da publicação do livro) e diz que de tantos animais que viu, já não sabe mais “ao certo a qual espécie pertenço”. O poeta tira o foco da multidão e, ao trazer para perto de si sua mirada, reconhece os homens e mulheres de valor: “eu e minha gente guardamos a vida no peito”. E convoca seu povo: “lado a lado, somos infinitos/ não contemos os passos/caminhemos”.

Uma trinca de poemas vai na mesma linha. Em Panteão, usando a metáfora do altar dos deuses, recolhe a bandeira e a convicção, trocando-os pela flor e o vento, respectivamente como estandarte e mestre. Haverá, por sua vez, é umpoema para levantar, tipo Bob Marley: get up stand up. Mas o intertexto é dos Racionais: “até no lixão nasce flor”. O poema abre com uma estrofe inspirada: “seja no asfalto ou no lixão/ na merda ou nos corações/as flores não param de nascer”. E a estrofe final é a convocação: “uma flor nasceu/ a partir daí, temos alguma chance/acordem as crianças/podemos sonhar outra vez/ haverá amanhã./ a primavera prevalece”. Por fim, em Sobrenome Liberdade temos umpoema anti-manifesto: “antes de ser um manifesto,/ eu sou um convite de despedida de solteiro”. O título do poema dá nome a um importante sarau que acontece no bairro do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo, frequentado pelo autor. Na última estrofe ganha um tom mais coletivo: “antes de ser um movimento,/sou paixão, coragem e mil ideias loucas./eu sou levante/ e meu sobrenome: Liberdade”.

Os poemas de para-choque exploram o que poderíamos chamar, sem temer ser pouco erudito, de lições de vida, algo muito presente no RAP: “o promotor é só um homem/ Deus é o juiz” (Racionais MC’s) ou “quem se julga a nata/ cuidado pra não qualhar” (Criolo). O poeta Sergio Vaz é um notável autor de versos de efeito, como: “enquanto eles capitalizam a realidade/ eu socializo meus sonhos”, para citar um bem famoso. Ni Brisant segue essa escola como indica o poema Consciencie: “Alma que nunca foi lavada/ quando não desbota/ encolhe”. Nessa mesma linha tem o poema A caminho: “sem andar/ sua sombra nunca ficará para trás”. Há poemas menos pretensiosos na mensagem como In desejo: “sua paixão no pôster/ só perde/pro pirão/ no prato”, fazendo um bom uso da aliteração.

A ironia, um traço importante da poesia de Brisant, fica ainda mais evidente nos poemas curtos como Para um eufemista:“miséria/ é excesso de escassez”. Ou em Lua:“quem tem mãe sol/acaba satélite”. Tem os com elevado requinte criativo como Alter ego:“do umbigo para dentro/ tudo é eco eco eco eco…” e Roda gigante: “para quem vive em círculos ( …)/ passado é labirinto”. O recurso da metáfora é muito bem utilizado pelo autor em dois exemplos: Falo: “Da boca pra fora/ para raios./ Dentro/ arranha-céu” e Inundo:“O prazer é líquido/ e eu rio”. Ni Brisant capricha também nos poemas de amor, como Sugiro: “nesse calor/ uma lambida/ é prova de amor/ pra toda vida” ou em Para-quedas: “grande/ é o amor que resiste ao microscópio/ perfeito/ se visto de telescópio”.

Por fim, já nas páginas derradeiras do livro, há o poema Para-choques que reúne 28 pequenos textos que poderiam figurar nos para-choques de caminhão, em cartões-postais, camisetas, canecas, guardanapos ou em qualquer suporte que aceite versos como: “quem muito jura/ não paga”; “novidade é coisa breve/ mas atrasa/ na dúvida,/ proteja-se”; “todo sujeito é verbo/ o tempo todo”; “A glória e maldição do vencedor/ é ser aplaudido por derrotados”; “A arte não me levou ao lugar que eu queria/ mas fez do meu coração um lugar habitável”; “Não gosto de amigos secretos/ prefiro presentes”; “ânsia é o anúncio do vômito e do abraço/ ansiedade é o desespero do anúncio”; “sorriso é o esboço do beijo”; “só pode medir seu tamanho/ reerguendo-se”.

O biscoito fino da periferia

Paulo D’Auria e Ni Brisant fazem uso do tradicional suporte do livro para defender que a poesia deve estar em qualquer lugar que possa lhe servir de suporte. Desde os primórdios até hoje em dia, essa versatilidade é uma marca da literatura da periferia. Na virada do século XX, o poeta Binho fez a Postesia que consistia na impressão de poemas no verso de placas publicitárias de candidatos que ficavam amarradas nos postes em época de eleições. O Coletivo Mesoperiferia, da Zona Norte, fazia a Cicloesia que era uma intervenção poética durante um percurso de bicicleta. No Sarau da Cooperifa, os poemas voam presos a um balão no famoso projeto Poesia no Ar. Sergio Vaz imprime poemas em cartões-postais, camisetas e lambis. Ni Brisant publica livros minúsculos (10 cm x 7 cm) diversificando o formato tradicional desse suporte, enquanto D’Auria e os Poetas do Tietê fazem poesia na faixa de pedestre na zona norte da cidade.

O próprio sarau e o slam são formas de se fruir poesia pela oralidade. O RAP é ritmo e poesia. A letra nas canções é uma composição poética, assim como poemas são musicados. O graffiti surgiu com versos escritos nos muros e o pixo contemporâneo no alto dos edifícios é uma forma de poesia concreta, literalmente, se não for literariamente. E aí reside a questão. Há quem questione o status literário da poesia, dada a liberdade formal que o gênero passou a ter, principalmente, no século XX. Os poetas que ficaram conhecidos como “marginais” nos anos 1970, entre os quais Waly Salomão aqui já citado, faziam performances poéticas e desdenhavam do cânone. Preferiam música, especialmente o rock, ao livro para difundir suas criações. Ficaram conhecidos como a geração mimeógrafo, pois era por meio de folhetos que seus textos circulavam, quando impressos.

Muitos desses poetas, porém, entre eles o próprio Waly, hoje estão no cânone literário com suas obras reunidas em badaladas antologias publicadas por editoras de alto prestígio no mercado. Ou seja, os mecanismos da tradição, que dá lastro à literatura institucional, acaba capturando e dando um jeito de enquadrar aquilo que foge à norma, mesmo que isso ocorra depois da morte do autor. Em face de tal processo, cabe ao poeta transgredir enquanto vivo para não sofrer o “constrangimento” de figurar no panteão literário na posteridade. Os dois autores aqui comentados são sérios candidatos à consagração acadêmica. Que assim seja, mas que sigam transgressores. “A poesia é lúdica, não lúcida”, diz Paulo D’Auria. “Poeta devia mais/ sair da biblioteca/ mergulhar de cabeça/ na rua/ no povo/ no mundo/ até a vida/ não ter mais fim”, defende o autor.

Seja nos livros, que é ainda uma forma muito especial de acessar a poesia, ou em qualquer outro suporte, o importante é curtir a brisa poética que é ler versos como: “não gosto de amigos secretos, prefiro presentes” (Ni Brisant) e pensar um mundo abundante em pão e poesia como vislumbrou D’Auria, no qual: “Todo padeiro seria poeta/trigo seria caneta/pão doce seria soneto”. Parafraseando Oswald de Andrade, um dos mais transgressores entre os consagrados, digo que a Academia ainda comerá o biscoito fino que é produzido na periferia.

1 O livro tem formato 14 x 21 e 94 páginas. Edição, projeto gráfico e diagramação é de Marciano ventura; capa de Michel Nogueira; ilustrações Célio Luigi, Ni Brisant e Pim Lopes. O texto da orelha é de Vandei Oliveira ( Seu Zé) e Damásio Marques e William Delarte assinam os posfácios. Na contracapa tem um poema de Luz Ribeiro. Antes desse livro, o autor publicou o livro de prosa Tratado sobre o coração das coisas ditas.

2 O formato do livro também é 14 x 21 e tem 47 páginas. O projeto gráfico é de Victor Meira. O texto de apresentação e contracapa é do editor Daniel Minchoni. Nas orelhas há o desenho de orelhas e em uma dela está impressa uma foto do autor junto de uma mini biografia. O livro foi financiado pela Prefeitura de São Paulo por meio do Programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais

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