A literatura carcerária de Jocenir e André du Rap

Em dois escritores (um deles, homônimo de famoso membro do PCC), relatos densos sobre o Massacre do Carandiru — e o cotidiano de torturas no sistema penitenciário. Mas, sob este inferno, há brechas para poesia e camaradagem entre presos

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Por Eleilson Leite, na coluna Literatura dos Arrabaldes

A ampla repercussão midiática em torno da soltura do traficante André doRap e sua consequente fuga me motivou a abordar o tema da literatura do cárcere. Surgida no início dos anos 2000 como uma tendência da emergente literatura marginal-periférica, a escrita da prisão teve como um de seus pioneiros, o André du Rap, que não é o bandido foragido. Apesar de terem traços comuns, como a passagem pelo Carandiru e o gosto musical, além do nome e alcunha, são pessoas muito distintas uma da outra. O André do Rap é do Guarujá, no litoral paulista, tem 43 anos e é traficante de nível internacional. Já o André du Rap acabou de fazer 48 anos, é músico, ativista dos direitos humanos, educador e continua morando em alguma cidade do Alto Tietê que fica no lado leste da Região Metropolitana de São Paulo.

Até para sublinhar a distinção, resolvi escrever sobre seu livro Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru) publicado em 2002 pela Labortexto. Analiso essa obra em conjunto com Diário de um detento: o livro, de Jocenir que saiu um ano antes pela mesma editora. Essas duas publicações, juntamente com o livro Memórias de um Sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (2001, Companhia das Letras) ajudaram a criar um movimento literário que teve na criminalidade sua fonte de inspiração. Tal corrente, porém, tinha outra característica fundamental: as obras foram escritas por pessoas diretamente envolvidas com o contexto narrado. As abordagens nem sempre são factuais, mas mesmo como ficção, boa parte dela, é baseada em fatos e pessoas reais.

O marco inaugural desse movimento é o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins de 1997 (Companhia das Letras). Depois veio Capão Pecado, de Ferréz no ano 2000 publicado também pela Labortexto. Essas duas obras revelam a dinâmica do crime, seus conflitos internos e a guerra com a Polícia. Repressão, extorsão e associação são as três formas como as forças policiais agem com a bandidagem. Lins e Ferréz narram suas histórias no ambiente externo, nas periferias e favelas. Já os autores aqui analisados mostram como essa tensa e promíscua relação se dá por detrás das muralhas dos presídios e cadeias1.

O impacto dessas obras foi tão intenso na virada dos anos 2000 que a literatura periférica ficou, naquele tempo, associada às narrativas do crime seja dentro ou fora do cárcere. O RAP corroborou essa identificação dada a forte presença do ambiente prisional em letras de nomes importantes do gênero, especialmente do Racionais MC’s, cujo maior sucesso na época era justamente Diário de um detento, música que tem coautoria do Jocenir, razão pela qual a editora deu ao livro, o mesmo título do RAP.

Esse fenômeno da literatura do cárcere, no entanto, perdeu força ainda na primeira década deste século especialmente depois da demolição do Presídio do Carandiru em 2002. A própria editora Labortexto veio a fechar alguns anos depois. Mas, a contundência das histórias e o vigor literário com o qual são narradas, confere a esses livros uma relevância editorial que lhe assegura um lugar de destaque na história da literatura dos arrabaldes, cujo surgimento passa, necessariamente, por Jucenir e André du Rap. O Luiz Alberto Mendes, falecido em março de 2020, tem ainda mais importância, pois, dentre os três, foi o único que seguiu publicando e se estabeleceu como escritor. Mas a análise das obras deste escritor ficará para uma outra oportunidade.

Na leitura conjunta dos livros observei inúmeras recorrências, a maior parte das quais agrupo em três eixos: a violência policial; o código de ética dos presos e o trabalho no cárcere. A primeira inclui, além da repressão e da extorsão já citadas, a corrupção, adulteração de processo e tortura. As relações internas entre os presos são todas regidas por acordos tácitos que tanto asseguram a proteção, quanto a punição que pode ser traduzida em tortura (física e psicológica) ou sentença sumária de morte. Por último, o trabalho aparece de quatro formas: punição, laborterapia, remissão de pena e geração de renda. André du Rap e Jocenir foram contemporâneos no Carandiru entre os anos de 1995 e 1997, mas não tiveram contato dentro da cadeia.

André du Rap

O livro de André du Rap (José André de Araújo) é um depoimento do autor dado ao jornalista Bruno Zeni que faz a coordenação editorial da obra. Com base numa entrevista de mais de quatro horas, o autor relata sua prisão e seu calvário na cadeia de Suzano, cidade em que morava, até chegar no Carandiru, três meses antes do massacre de outubro de 1992. Ele cumpriu 10 dos 12 anos de condenação em privação de liberdade, sendo os dois últimos em diversos presídios do Interior do Estado de São Paulo. O livro tem formato 14 x 21, 225 páginas e traz uma foto de André na capa. A obra contém uma série de correspondências, fotos, depoimentos de amigos e um capítulo denominado free style no qual foi editado trechos de um depoimento que o autor gravou sozinho. Há também um capítulo final que é um apêndice na verdade, com um artigo de estilo acadêmico assinado por Bruno Zeni.

André du Rap

Do ponto de vista editorial, o livro ficou sem unidade. Fica nítido que a editora queria vender a obra como relato do Massacre do Carandiru que na época estava fazendo 10 anos e o tema estava quente na mídia tanto pela efeméride quanto pelo fato de estar nos tribunais. Mas havia também os sucessos editoriais do livro Estação Carandiru, publicado em 1999 pelo médico Drauzio Varella (adaptado para o cinema por Hector Babenco em 2003), além dos livros de Luiz Alberto Mendes e do próprio Jocenir. De olho na alta tendência da literatura carcerária, Zeni trouxe para o primeiro capítulo do livro, o relato da rebelião e consequente massacre que resultou na morte de 111 presos. Citar o “Massacre do Carandiru” no título da obra também denota a intenção da editora de associar o livro diretamente àquele dramático episódio.

O relato do 2 de outubro, porém, tem apenas 11 páginas que são muito impactantes, mas é a menor parte do livro. Os capítulos seguintes tratam da fuga do autor para a cidade de Bertioga, no Litoral Norte em virtude da perseguição policial que sofria por ter sido atribuído a ele um assassinato do qual ele nega participação. Ele perambula pelo litoral onde trabalha de servente de pedreiro e vendedor até que ser preso em São Paulo em uma emboscada armada pela Polícia com a ajuda da cunhada de André. Ela conseguiu com isso, libertar o marido que foi detido no lugar do irmão foragido.

Era 1990 e André, então DJ Zezinho, com apenas 18 anos, foi condenado a 12 anos de prisão por um crime que não cometeu. O restante do livro segue narrando a vida do autor no cárcere, mas o que ele mais aborda em seus relatos são suas relações amorosas e toda a narrativa passa a ser ancorada no seu amor por uma mulher de nome Eliana com quem noivou e casou (informalmente) dentro da cadeia. Esse relacionamento, no entanto, foi marcado por inúmeros rompimentos e nesses intervalos, outros romances aconteceram.

Trata-se, portanto, de um livro, cujo título não corresponde muito ao seu conteúdo em função de um certo senso de mercado da editora. Mas quem não tiver expectativas de passar centenas de páginas lendo sobre o terror que foi o Massacre do Carandiru, terá em Sobrevivente André du Rap, um livro muito interessante que permite observar a vida na cadeia pelo olhar de um preso que tem muito amor no coração.

André nos revela um cotidiano do cárcere cheio de relações de amizade, brincadeiras, futebol, visitas animadíssimas nas quais vinham muitas crianças, a presença afetiva dos agentes da Pastoral Carcerária, muito namoro e o trabalho que lhe deu a profissão de costureiro. É comovente a leitura das cartas trocadas pelo autor, inclusive com uma mulher com quem passou a se relacionar a partir de um anúncio na Revista Carícia, uma passagem especialmente saborosa do livro que guarda outras boas surpresas.

Jocenir

Diário de um Detento: o livro também se vale de um artifício editorial para relacionar a obra ao famoso RAP dos Racionais MC’s gravado no clássico CD Sobrevivendo no Inferno, de 1997, que no ano seguinte teve o clipe premiado pela MTV, o auge do pop naquele final de século. A letra do RAP narra o Massacre do Carandiru que foi quase toda escrita por Jocenir, embora ele não tenha vivido o episódio. O autor elaborou os versos a partir de relatos que ouviu dos companheiros de cela. Ao chegar no Presídio no final de 1995, Jocenir já era conhecido por sua habilidade na escrita. Num universo de pessoas com índices muito baixos de letramento, o autor ganhou respeito entre os presos para os quais escrevia cartas, poemas e petições judiciais. Até o estatuto de uma organização criminosa, rival do PCC, ele redigiu.

Mano Brown e Jocenir

Sua fama logo se espalhou no Carandiru onde todos sabiam dos cadernos do autor com poemas e reflexões sobre o cotidiano na prisão. Era 1996 e Mano Brow, líder dos Racionais foi apresentado a Jocenir durante uma de suas frequentes visitas ao Carandiru. Impressionado com os escritos do presidiário, pediu para levar alguns poemas do caderno. Um deles era Diário de um detento que foi musicado no ano seguinte, segundo o autor, com poucas alterações na letra. Quando o CD saiu a música logo fez grande sucesso, mas Jocenir já estava no presídio de Avaré no Interior do Estado e curtiu a distância sua súbita fama.

Libertado em novembro de 1998, Jocenir enfim, reencontra Brown durante um show dos Racionais MC’s em uma escola de samba da zona norte de São Paulo para o qual foi especialmente convidado. O rapper chamou o coautor de Diário de um detento para subir no palco e ser aplaudido pela numerosa plateia. Jocenir, então com quase 50 anos, não curtia RAP e veio conhecer a cultura hip hop durante sua passagem pelo cárcere. Ele era fã de MPB e de rock, mas passou a apreciar o gênero musical que lhe deu visibilidade.

Animado com o prestígio e estigmatizado no mercado de trabalho, o autor resolveu escrever seu livro de memórias no qual relata sua prisão em dezembro de 1994 até a libertação quatro anos depois, cumprindo metade da pena em reclusão, como assegura a lei. Na sua curta trajetória como preso, o período mais terrível foi o primeiro ano no qual passou pelas cadeias públicas de Barueri e Osasco, cidades do lado oeste da Grande São Paulo, região em que morava. No Carandiru foram apenas dois anos e foi o melhor período de sua experiência no cárcere. Terminou de cumprir sua condenação no presídio de segurança máxima de Avaré, Interior do Estado, como foi citado.

Josemir José Fernandes Prado é o nome de Jocenir, alcunha dada involuntariamente pelo Mano Brow ao pronunciar e escrever incorretamente o nome dele em uma dedicatória. Assim ficou. Como André du Rap, ele também foi preso sob falsa acusação. O enredo de sua prisão é rocambolesco. Jocenir foi até um galpão em Barueri encontrar-se com seu irmão que lhe emprestaria o carro para uma viagem com a família. O ponteiro do relógio se aproximava das 21h. Chegando no local, um enorme galpão na periferia da cidade, policiais estavam de campana, pois ali era um conhecido ponto de receptação de mercadoria roubada. Jocenir sabia que seu irmão Marcio estava envolvido com esse tipo de crime, mas não contava que pudesse ter uma blitz policial naquela noite. Foi preso juntamente com dois homens que tomavam conta da carga furtada.

Jocenir poderia ter sido liberado logo depois de prestar depoimento, mas acabou servindo de bode expiatório para um outro crime cometido pelos meganhas que lhe prenderam. Naquela mesma noite, os policias civis que intervieram no referido galpão deram voz de prisão a um grupo de jovens que estavam num carro que por ali passava. Achando que fosse assalto, uma vez que os policiais estavam à paisana, os rapazes não pararam. Houve perseguição e os gambés alvejaram o veículo que seguiu em fuga sem que fosse alcançado.

Horas depois chegou na delegacia a informação de que aqueles jovens eram filhos de um empresário, cuja fábrica ficava no entorno do galpão investigado. Alguns dos ocupantes do carro foram gravemente feridos e se encontravam no hospital da cidade. Era preciso arrumar um culpado, pois o empresário tinha influência junto às autoridades locais. Forjaram um flagrante e na manhã do dia seguinte, 10 de dezembro de 1994, Jocenir dava entrada na Cadeia Pública de Barueri condenado a 8 anos de reclusão. O local, com capacidade para 48 presos, abrigava cerca de 300 homens, segundo seu relato. O que o André du rap passou durante o Massacre do Carandiru, Jocenir viveu, em boa medida, naquela masmorra.

Oriundo de classe média, pequeno empresário, com 44 anos de idade, dois casamentos, quatro filhos e um na iminência de nascer, Jocenir, de um dia para o outro passou a conviver com bandidos de alta periculosidade, quase todos drogados, dormindo em pé por falta de espaço na cela. Foi vítima de presos inescrupulosos, mas fez amizades com detentos que prezavam pela ética. Seus principais algozes foram os carcereiros, a delegada da prisão e a polícia que invadiu a cadeia durante a rebelião que acabou por transferi-lo para o Carandiru, acusado que foi de liderar o motim.

Jocenir organiza o livro de modo didático, cobrindo todas as etapas de sua trajetória de preso no qual o poema que virou letra do famoso RAP é somente uma rápida passagem. O que mais se lê no livro é, de um lado, uma abordagem muito crítica e bem elaborada do sistema prisional e da ação policial e, de outro, as relações de companheirismo entre os presos. Como André, Jocenir expressa uma visão muito humanizada da cadeia e chama a atenção para a questão do elevado consumo de drogas (lícitas e ilícitas), para ele o principal fator de instabilidade entre os presos e instrumento de corrupção com a carceragem.

Há um capítulo dedicado ao médico Drauzio Varella que atuava como voluntário no Carandiru e de quem teve um atendimento, cuja atenção e cuidado o fez chorar de emoção. A publicação tem formato 14 x 21, com 181 páginas muito bem escritas que, diferente do livro de André, fez muito sucesso com 5 reimpressões somente em 2001.Na capa tem uma foto de Mano Brown em imagem do videoclipe já citado. Na Internet se encontra facilmente um vasto material de imprensa sobre o livro na época de seu lançamento e participações do autor nos principais programas de entrevistas de TV de então: Jô Soares, Marília Gabriela e Antonio Abujamra (Provocações). Mas, assim como André du Rap, Jocenir não deu sequência à sua carreira como escritor e desapareceu do cenário literário.

Violência policial

Os autores demonstram abundantemente o traço autoritário e violento da Polícia em suas várias instâncias: delegados, policiais e os carcereiros que seriam uma espécie de polícia do presídio. Tanto André quanto Jocenir tiveram uma postura de resistência aos arbítrios dos meganhas. E isso lhes valeu muita surra e no caso do André, muitos dias na solitária, chamada de cela forte: “fiquei na masmorra, debaixo do chão, numa cela que você não vê o dia nem a noite. Você sabe que é dia quando você olha naquele buraquinho ali, uma chapa de ferro com uns buraquinhos do tamanho de um prego”.

André passou pelo massacre dos 111 mortos e foi se amoitando em meio aos corpos das vítimas que escapou de ser mais um número no obituário daquela tragédia. Outros presos fizeram o mesmo, porém, sem sucesso. Para fazer os vivos se levantarem entre os mortos, os policiais atiravam a esmo ou jogavam pedaços de colchão queimado por cima dos corpos caídos. Alguns presos foram jogados no vão do elevador e outros tiveram seus corpos dilacerados por cães furiosos. “Sobreviver a esse inferno, foi um milagre”, diz o autor que completou 20 anos de idade exatamente no dia 2 de outubro de 1992.

Já Jocenir apanhou muito de policial e de carcereiro nas cadeias em que passou antes de chegar no Carandiru. Certa vez foi transferido de Barueri para Osasco para ser torturado: “ao tirar a roupa, comecei a ser agredido de forma violenta. Com um pedaço de madeira nas mãos, um deles mandou que eu me virasse para a parede e levantasse os pés. Tortura. Já com o corpo todo dolorido, obedeci. Como se pegasse a pata de um cavalo, pegou meu pé, desferiu uma série de golpes na sola até ficar tudo adormecido”.

Depois de uma rebelião em Barueri em decorrência da qual foi transferido para o Carandiru, Jocenir e um grupo de presos foram torturados coletivamente pelos policiais que invadiram a cadeia para conter o motim. Após baterem violentamente nos presos, os policiais mandaram que as vítimas entoassem cantos de saudação à Polícia. Diante da recusa dos presos, o comandante da operação enfiou merda na boca dos amotinados usando um cabo de vassoura com o qual captava as fezes num vaso sanitário. Segundo Jocenir, “todos comeram merda, mas não fizeram nenhuma declaração de amor à PM, à Rota ou ao Choque. Comer merda é melhor”.

O código de ética entre os presos

Humildade, dignidade e proceder. Esse é o código de conduta na cadeia. Mas a expressão desses valores nem sempre é traduzida em comportamento virtuoso. Dependendo do contexto e das relações esses parâmetros são relativizados ou distorcidos. Mas essa é a norma para se correr pelo certo no cárcere, onde a solidariedade prevalece entre presos. André du Rap narra assim esse companheirismo: “dentro do sistema penitenciário, a gente tem o maior respeito. Não existe lugar no mundo onde existe mais solidariedade. Se você chega no distrito de cueca, vai chegar um companheiro, falar ‘E aí, tá precisando de alguma coisa. De que quebrada você é?’ Isso é companheirismo, é de irmão mesmo…”

Jocenir define essa união, ente outras, na seguinte passagem: “Na Casa de Detenção, o domínio do preso se faz muito presente, a começar pela própria administração do presídio. A alimentação, a inclusão, a parte judiciária, a limpeza, enfim, tudo é administrado pelos detentos, razão pela qual eles têm o poder de dirigir a população carcerária para o rumo que quiserem. São milhares de homens que, se unidos por um mesmo ideal, podem causar sérios problemas às autoridades penitenciárias”.

Mas o sentido de justiça entre os presos requer também suas arbitrariedades como a sentença de morte que os condenados por estupro sofrem. Mas antes do golpe fatal, também são torturados. Nos versos de Diário de um detento, Jocenir revelou como o código de ética opera nesses casos: “homem é homem, mulher é mulher, estuprador é diferente. Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés, e sangra até morrer na rua dez”.

O trabalho

Há um senso comum segundo o qual os presos ficam ociosos por que não querem trabalhar. Mas há uma forte disposição para o trabalho, porém, a oferta é pequena em face da demanda e, em alguns casos, há uma exploração que faz a atividade laboral se assemelhar com o trabalho escravo, servindo mais como punição do que benefício. Uma das ocupações mais frequentes nas cadeias é a costura de bolas. Em uma passagem do livro, André trata do assunto com indignação: “o cara tinha que costurar 60 bolas por dia. É desumano. Eu tinha companheiro que virava a noite costurando bola na penitenciária de Presidente Bernardes. Você imagina a humilhação. Olhava para a mão, tudo estourado: calo, corte, furada de agulha. Chegava o dia do pecúlio, pagava R$ 15,00 por mês”. Já Jocenir fala de R$ 100,00 no mês que não deixa de ser uma remuneração muito baixa pelo trabalho.

Mas tanto Jocenir, quanto André tiveram uma boa inserção laboral no Carandiru. O primeiro atuou no planejamento do trabalho, gerindo a distribuição dos presos no trabalho de acordo com suas aptidões e capacitando-os e o segundo como costureiro na alfaiataria. Certa vez André fez uma calça para a sua noiva que trabalhava no Habib’s. Chegando na lanchonete, os colegas elogiaram a roupa e ela então passou a revender as calças feitas pelo companheiro na prisão.

Mas quando passou pelo Presídio de São José do Rio Preto, onde cumpriu o último período de reclusão, André trabalhou compulsoriamente na lavoura sob sol escaldante para ganhar cerca de R$ 5,00 por semana. Como o trabalho era considerado “laborterapia”, não poderia largar o batente, sob pena de ser reprovado no quesito comportamento e com isso ter sua saída postergada. Jocenir, por sua vez, cita a remissão de pena com trabalho, em função dos conhecimentos que tinha da legislação penal, mas não ficou nítido que tenha gozado desse benefício. Seja como terapia, renda ou redução de pena, os relatos dos autores mostram o quanto o trabalho é fundamental na vida de um presidiário.

Vidas inglórias

Com quase 800 mil presos, o Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. O eloquente número prova que aqui se prende demasiadamente. O resultado são presídios, cadeias e carceragens de delegacias superlotadas. Jocenir, em uma de suas entrevistas na TV por ocasião do lançamento do livro, fez a seguinte reflexão: “coloca 50 juízes numa cela com capacidade para 10; eles vão se agredir em menos de um mês. Agora coloca 50 criminosos, alguns violentos, muitos usuários de droga; em menos de uma semana eles se matam”.

Os presídios são máquinas de triturar gente e quando acontece rebelião os agentes de repressão do Estado se encarregam do genocídio. A maioria dos presos são pretos, razão pela qual a Polícia se sente à vontade para bater, torturar e matar. Esse instinto repressivo tem um forte componente racial e de classe. A cadeia é campo de concentração para exterminar pretos e pobres. Jocenir e André du Rap demonstraram bem esse circo de horrores que é o sistema prisional brasileiro em seus relatos transformados em literatura de testemunho.

São livros esgotados, publicados por uma editora que não existe mais e de autores que estão no ostracismo. Mas a denúncia que carregam ecoa até os dias de hoje por meio do RAP Diário de um detento que tem uma estrofe, cujos versos equivalem a um tratado de sociologia: “cada detento uma mãe, uma crença/cada crime uma sentença/cada sentença um motivo, uma história/de lágrimas, sangue, vidas inglórias/ Abandono, miséria, ódio e sofrimento/ desprezo, desilusão, ação do tempo/misture bem essa química, pronto;/ eis um novo detento”.

Jocenir e André du Rap fizeram uso de suas habilidades de escrita para nos relatar o inferno do qual saíram vivos. Eles nos legam um depoimento que não pode ser esquecido. Com sua capacidade de elaboração ajudaram a criar uma literatura que só se fortaleceu nos últimos vinte anos. Embora tenham saído de cena, o lugar deles no cânone da Literatura Periférica está reservado, assim como o de Luiz Alberto Mendes, falecido recentemente.


1 O mundo do crime é fonte de inspiração constante na literatura brasileira, assim como relatos de prisão. As obras de João Antonio e o clássico livro de Graciliano Ramos – Memórias do Cárcere, são dois de muitos exemplos. Mas meu entendimento é que um movimento literário urbano e contemporâneo surgiu no final do século tendo o livro de Paulo Lins como seminal, se ampliando posteriormente até formar uma corrente literária mais consistente e perene que é a que chamamos de Literatura marginal- periférica.

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3 comentários para "A literatura carcerária de Jocenir e André du Rap"

  1. Flávio disse:

    A pessoa não leu o artigo e está criticando…

  2. Gabriela Leite disse:

    Caro Billy, o artista é outro André, um homônimo.

  3. Billy disse:

    Fiquei chocado do site estar dando voz para a história de um bandido como o André do Rap

    Precisa ter muita coragem para acreditar que ele está nessa injustamente.

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