A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial

Na próxima semana, o escritor Silviano Santiago recebe o prêmio Camões. Em celebração, publicamos ensaio-depoimento em que ele revisita sua trajetória, entre o “vírus colonial” e sua “vacina”. Nesse atrito, forjou-se a altiva e fértil noção de “entre-lugar”

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Por Silviano Santiago, na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) 

Aos 87 anos, o ensaísta, teórico, romancista e professor mineiro Silviano Santiago prepara-se para receber oficialmente, das mãos da ministra da Cultura Margareth Menezes, em cerimônia na Biblioteca Nacional Brasileira, o Prêmio Camões 2022. Escolhido no ano passado por um comitê que envolve representações do Brasil, de Portugal e de países africanos de língua portuguesa, Silviano receberá aquele que é considerado o mais importante reconhecimento literário do mundo lusófono. 

Silviano Santiago tem diversos textos publicados pelo Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, inclusive este que reproduzimos aqui, em sua homenagem. Trata-se de uma palestra proferida por ele na Universidad Nacional Tres de Febrero, em Buenos Aires, na ocasião em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa, em 2014.

Recomendamos também, especialmente, a série Hospedagem Vale quanto pesa, que reuniu uma série de jovens autores (com menos de 40 anos) para “habitar” os textos de um livro de ensaios de Silviano, publicado há 40 anos, e produzir novos caminhos reflexivos, analíticos e de escrita. 

Leia outros textos da coluna da BVPS no Outras Palavras.

A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial, um depoimento

Por Silviano Santiago

Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão.
Antonio Candido, Formação da literatura brasileira

1.

Os dois volumes da Formação da literatura brasileira, notável obra historiográfica de Antonio Candido, eram a principal fonte de trabalho disponível para todo jovem que, em fins da década de 1950 e durante as décadas seguintes, iniciava os estudos universitários em história da literatura nacional.

Passado mais de meio século desde a publicação, torna-se indispensável invocar o dom do livro para o estudante e a afeição do aluno ao livro e ao autor. Uma palavra, ou melhor, um conceito, os fascinava e atava definitivamente os três – o conceito de formação. O metódico saber literário que o aluno recebe na Faculdade de Letras é parte capital na sua ampla formação universitária e se confunde, na teoria e na prática da leitura em casa ou na sala de aula, com o saber que o pesquisador paulista lhe doa sob a forma de livro em que analisa e interpreta o surgimento do nosso tardio sistema literário.

Pela escrita da Formação da literatura brasileira e pela sua leitura, pesquisador, aluno e a própria literatura escrita por brasileiros desde meados do século XVIII significam estar em vias de chegar à plenitude de suas respectivas e variadas vidas.[1] Tanto as figuras humanas quanto as letras apreendidas por eles são ainda verdes, por isso os três trabalham em uníssono juvenil e a favor das respectivas formações.

Em meados do século XX, o aprendizado escolar do estudante de Letras se espelha no trabalho original de pesquisa do universitário que, por sua vez, espelha-se no próprio objeto de estudo − a literatura brasileira no processo de sua afirmação como necessariamente adjetiva[2] no interior de um sistema artístico bem mais vasto e fascinante, o da literatura universal. A mente estudantil do aluno se confunde com a mente doutora do mestre que se confunde com a cara juvenil da literatura nacional, soberana há apenas dois séculos. Unidos, os três vivem o lento, sofrido e trabalhoso processo da sua formação. Vivem o lento, sofrido e trabalhoso processo de interiorização de um saber que lhes é exterior, embora cada um e os três saibam que sem a apreensão histórica e crítica daquele saber estranho, daquele saber intruso e possessivo, não conseguiriam elaborar o alicerce intelectual indispensável para a grandeza plena das respectivas personalidades profissionais.

Como se esculpidos na cabeça de um alfinete, esse aluno, a Formação da literatura brasileira e Antonio Candido podem ser hoje vistos de maneira emblemática como corresponsáveis pela produção intelectual no século XX brasileiro, inaugurada no ano de 1900 por Minha formação, as conhecidas memórias de Joaquim Nabuco, amigo, por sua vez, de Machado de Assis. Naquele título, o vocábulo formação – agora definitivamente conceito – também tinha ganhado direito de cidadania em língua portuguesa e carreava o significado da sua importância no processo de afirmação social e de amadurecimento cultural do indivíduo e do cidadão legitimamente brasileiro na passagem do século XIX para o século XX. Na nossa sociedade, ao contrário das sociedades europeias e da sociedade norte-americana em fase posterior ao lançamento do Sputnik, a boa formação era então − e até hoje, infelizmente − uma dádiva da Família ou do Estado aos privilegiados.

No correr do século XX, o conceito de formação se torna mais e mais elástico por nossas terras. Seu desejo é o de adjetivar com brasileiro – e de redefinir, com a ajuda do adjetivo pátrio, a condição periférica da produção nacional – as diversas disciplinas do conhecimento humano que compunham o multifacetado elenco educacional da também jovem universidade no Brasil.

Já em 1942 o historiador Caio Prado Jr. investigava a Formação do Brasil contemporâneo, enquanto o economista Celso Furtado, poucos anos mais tarde, dedicava seu conhecimento especializado à Formação econômica do Brasil. E um dos possíveis discípulos de Antonio Candido, Paulo Eduardo Arantes, de perfil semelhante ao universitário mencionado neste depoimento, informava os estudiosos sobre – e o cito – “a formação da filosofia uspiana (uma experiência dos anos 1960)”.[3] Arantes, mais restritivo na delimitação geográfica, aproveitou a oportunidade do adjetivo uspiano, que qualifica filosofia, para lançar sua irônica defesa da boa formação: “[…] afinal um pastiche programado em início de carreira é bem melhor do que uma vida inteira de pastiches inconscientes”. Creio que T. S. Eliot se referia a idêntico fenômeno quando, nos anos 1920, teorizou sobre a distinção entre “talento individual” e “tradição”.

Neste curto depoimento, não é fácil represar a abrangência semântica de formação no nosso século XX. Mas caso se recorra ao conceito de “episteme” como definido na história das ideias por Michel Foucault, pode-se considerar o vocábulo como generoso e elástico na sua rentabilidade discursiva. E intenso na multiplicidade de visões históricas das diversas disciplinas do saber e de versões identitárias do brasileiro e da nação brasileira, a que ele deu identidade e curso. Ao se elevar à condição de paradigma, o conceito de formação funda e estrutura (no século XX brasileiro, repita-se) os múltiplos saberes confessionais, artísticos e científicos[4] que compartilham – a despeito de versar sobre objetos de estudo diferenciados, apesar de trabalhar com vistas a especificidades distintas de gênero [genre] e de querer implantar às vezes irreconciliáveis posturas ideológicas – determinadas características gerais da brasilidade ou formas do nosso ser e estar em processo de desenvolvimento.

De posse do paradigma formação, o analista deve hoje destrinçar menos os discursos acabados e publicados sobre o brasileiro ou a sociedade brasileira, sobre nossa literatura ou nossa economia, de responsabilidade de X ou de Y, deve se dedicar mais ao conhecimento das condições materiais e linguísticas da produção sincrônica de um feixe exemplar de narrativas afins e complementares.

Ao ser recoberto pelo paradigma, o vocábulo formação se prestará a inevitáveis jogos semânticos. No sentido de processo soberano e moderno de construção do Brasil literário, que lhe empresta Antonio Candido, “formação” reativa uma rede discursiva de carga histórica que arrebata o adolescente interessado pela literatura (nacional) no período de sua “formação”, agora tomada no sentido introduzido por Joaquim Nabuco, o de amadurecimento pessoal e cultural do cidadão brasileiro aqui ou no estrangeiro. Neste caso, formação confunde-se com o conceito anglo-saxão de “self-fashioning” (automodelagem), desenvolvido por Stephen Greenblatt em leitura das peças de Shakespeare (Renaissance Self Fashioning, 1980).

No interior do paradigma, a ideia de formação comporta, pois, vários e diferentes galhos semânticos, embora guarde sua origem única germânica: bildung.

Bildung tem indiscutível conotação científica e pedagógica e designa a formação (qualquer exemplo de formação) como lento e longo processo de interiorização do saber. É instrumento pedagógico contemporâneo da própria data que Candido designa para o começo da literatura brasileira – a segunda metade do século XVIII, quando vêm à luz os poemas de Cláudio Manoel da Costa nas terras coloniais das Gerais. E por uma dessas coincidências extraordinárias, a data do século privilegiado – o XVIII – coincide com a idade em que o estudante brasileiro presta normalmente o vestibular para a Faculdade eleita.

A data do século e a idade do aluno – no que se refere às respectivas formações – são coincidentes embora não sejam gratuitas. Convergem no século XX para a organização do saber nacional e para a formação universitária do jovem brasileiro. Na Europa, o conceito de formação é cunhado pelo idealismo alemão e se torna peça importante no surgimento e afirmação universal do ideário iluminista, evidentemente eurocêntrico. Confunde-se com o que os gregos chamavam de paideia e os latinos de humanitas. Os três vocábulos traduzem a indispensável busca pela excelência humana para se chegar à idade madura, tanto no plano individual quanto no plano comunitário e coletivo.

Se devidamente cerceado pelas categorias de estilo de época e transposto para a produção literária descrita por Antonio Candido, Bildung passa a qualificar nosso desejo especificamente literário de independência e de liberdade sob o jugo do poder colonial da cultura portuguesa, nosso desejo de autonomia artística e política. Nomeia o trabalho indispensável dos cidadãos privilegiados e letrados para que o adjetivo nacional aposto à literatura – ou à nação e sua história, ou à economia nacional, ou à filosofia uspiana etc. – possa se afirmar como autêntico e original e se manter afirmativo, estável e rentável no conjunto das nações modernas do Ocidente.

Bildung marca o momento em que a nação chamada Brasil e seus habitantes – até então colônia e colonos, respectivamente – almejam a se constituírem como partes soberanas e íntegras do Ocidente iluminista. Como o próprio Antonio Candido afirma, sua obra maior relata “a história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Fala sobre o espírito do Ocidente à procura de uma nova morada nesta nossa parte do mundo.

2.

Trens de ferro – e bondes – descarrilam. Os sistemas de pensamento e os métodos de leitura também e, ainda, os paradigmas do saber universal e nacional. Às vezes, o descarrilamento vem da falta de manutenção das condições ótimas de funcionamento do meio de transporte e dos trilhos. Não é o caso do paradigma formação tal como o configuramos rapidamente com a ajuda de Michel Foucault, ou do sistema literário tal como proposto por Antonio Candido. Durante o nosso século XX, exemplos de grandes intelectuais brasileiros e estrangeiros que atestam a favor da boa manutenção do paradigma – alguns já citados acima – ainda são fascinantes e continuarão a alimentar os estudos analíticos e as pesquisas históricas das novas gerações. Tornam-se clássicos ou canônicos, para usar a linguagem do novo milênio ou de Harold Bloom.

Às vezes, a avaria mecânica que leva ao descarrilamento do sistema literário nacional é tão imprevista quanto uma tempestade. Logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, o Primeiro Mundo atravessa uma fase de grande euforia econômica e social e, de repente, é questionado nas raízes pelo drama político das diversas nações colonizadas no continente africano, de que foi exemplo maior a Guerra da Independência Argelina (1954-1962). As colônias lutam a ferro e fogo contra o poder metropolitano e a favor de sua independência. Buscam a libertação das potências colonizadoras europeias, libertação conquistada pelos brasileiros ainda no século XIX. Tão violento e permanente foi o descarrilamento do mundo no pós-guerra que os trágicos e em nada anacrônicos versos de Castro Alves parecem ecoar ainda hoje na ilha de Lampedusa, no território italiano, ou no estado do Acre que acolhe os haitianos: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”.[5]

Aparentemente, diz o famoso e chocante provérbio português, o cu nada tem com as calças. Brasil moderno, modernista, de um lado, e África colonial, de outro. Mas sistema algum de pensamento está isento de descarrilamento imprevisto no calendário e na agenda. Em outras palavras, sistemas influentes de pensamento não são autoimunes, embora este ou aquele paradigma, este ou aquele sistema tenha sido apetrechado em favor da própria imunidade. É o caso do sistema literário proposto por Candido em Formação da literatura brasileira.

Antes de cortar ao meio a história cultural brasileira pelo conceito disciplinar de arte literária no Ocidente, montado em cima dos sucessivos estilos de época posteriores a meados do século XVIII, o historiador tomou o devido cuidado de aplicar ao vasto corpus a vacina a que deu o nome de “manifestações literárias”.[6] Ao injetar a vacina no corpus global da produção cultural no Brasil, de 1500 ao presente, Candido imuniza o sistema competentemente estetizado, preservando-o do descarrilamento pelas terras desérticas ou subsaarianas da África colonial. Libera o estudioso das letras do potencial semântico oferecido pelos quase dois séculos e meio de vida em terras brasileiras do vírus colonial lusitano. Há manifestações literárias no Brasil e há literatura brasileira.[7]

Neste momento da argumentação, torna-se interessante estudar pelas costas africanas a questão colonial e pós-colonial. É imperioso notar que, em 1959, ano em que se publica a Formação da literatura brasileira, o moçambicano Rui Knopfli estreia na poesia com o livro O país dos outros. Vivendo na costa leste da África, na África colonial portuguesa banhada pelo oceano Índico, o futuro grande poeta se beneficia, no entanto, do português literário mestiço, do português descolonizado e atlântico que os modernistas Manuel Bandeira (“Evocação do Recife”) e Carlos Drummond (“Consideração do poema”), entre outros, lhe oferecem em coleções de poemas que chegam de navio à pátria colonial.[8] Em “país dos outros”, para retomar o título da coleção de poemas, Knopfli tem a atitude de um “cosmopolita discrepante” (apud James Clifford), já que se beneficia da língua poética pós-colonial brasileira a fim de inscrever, na literatura em língua portuguesa, o projeto identitário colonial índico-moçambicano.

Pelo viés combativo e cosmopolita, os versos dos já canônicos modernistas brasileiros – estamos em 1959 – desestabilizam a pachorrenta e pouco poética identidade nacional da colônia africana e levam Knopfli, como observa Luís Sousa Rebelo, “a escrever uma poesia sem os exotismos gratos ao gosto do leitor metropolitano”. Escreve Knopfli: “Trago no sangue uma amplidão / de coordenadas geográficas e mar Índico. / Rosas não me dizem nada, / caso-me mais à agrura das micaias [árvore nativa]”. Escreve ainda o belíssimo, sofrido e corajoso poema “Terra de Manuel Bandeira”.

Quando me torno bolsista do governo francês em 1961 e parto em viagem de estudos a Paris, o vírus colonial lusitano passa a me afetar no cotidiano europeu tomado pelos explosivos plásticos (plastic) dos argelinos e resolvo tratá-lo com afeto (afinal ele é parte indireta da minha formação) e criticamente. Vale dizer, o afeto evita que eu me imunize com a vacina. Com o corpo tomado por virose pós-colonial, torno-me culturalmente febril e deliro. Instruído pelos intelectuais e escritores africanos e pela França que os abriga, apaixono-me pela poesia de Aimé Césaire. Leio as revistas Les Temps modernes e Présence africaine e, marinheiro de primeira viagem, me escandalizo com a tomada do Teatro Odéon por tropa da OAS (Organisation de l’armée secrète) que decreta a proibição de Les paravents, de Jean Genet, no dia da estreia da peça.[9]

Ao final do ano escolar de 1961-62, ocorre um segundo descarrilamento na formação do jovem latino-americano, agora em pleno Oceano Atlântico. O descarrilamento me retira às pressas de Paris e me leva a interromper – e não a abandonar, por sorte – a redação da tese de doutorado sobre André Gide. Concorro ao posto de professor na Universidade do Novo México, nos Estados Unidos da América. Passo de doutorando em literatura francesa moderna na Sorbonne a professor das literaturas brasileira e portuguesa em antigo território indígena norte-americano, cujo centro ultramoderno é a cidade de Albuquerque, construída como apoio urbano aos laboratórios atômicos de Los Alamos.

O vírus colonial lusitano é inerente à minha nova e dupla atividade docente e até ao ambiente Zuni e Pueblo por onde me adentro na até então desconhecida realidade norte-americana. Na sala de aula e diante dos alunos, o vírus lusitano colonial convive lado a lado com a vacina brasileira injetada por Candido no corpus da nossa história cultural e na mente do universitário.

Em 1963, por exemplo, exercito-me a comparar o canto 9 de Os lusíadas com famoso poema de Claro enigma, de Carlos Drummond, e ouso falar de tradição no modernismo brasileiro. Escrevo sobre o tópos da “máquina do mundo” em Camões e Drummond. Em poema que recebo pelo correio, intitulado “A/Grade/Cimento”, o itabirano acusa a leitura do ensaio que lhe foi entregue pelo amigo Cassiano Nunes. Pelo prefixo “a”, ele rejeita tanto a “grade” de leitura quanto o “cimento” que solda Cammond & Drummões, para retomar o título do poema e o verso irônico inicial. O poema está hoje no volume Poesia completa.[10]

Tendo por impulso as consequências funestas (ou desestabilizadoras) dos descarrilamentos europeu e atlântico, divido a partir de agora o depoimento em duas partes. A primeira delas recobre o período que vai de 1962, ano em que viajo de Paris a Albuquerque, a 1972, ano em que inicio o movimento de regresso ao Brasil universitário.

Os primeiros dez anos[11] se informam pelo abandono gradativo do conceito de literatura (no sentido de belles lettres) e o desejo de legitimação da obrigatoriamente abrangente noção de cultura (posteriormente, ela se tornará mais substantiva na elaboração da disciplina estudos culturais). Ao descontruir o conceito disciplinar de literatura, devidamente afiançado pela periodização por estilo de época e adotado unanimemente pelas Faculdades de Letras do Ocidente, a atitude indisciplinada e corrosiva do jovem professor apelava para a busca do conhecimento de outra e anterior formação: a dos discursos culturais identitários do Brasil, de que as belles lettres são apenas parte tardia, certamente a parte sublime e nobre. Por outro lado, a abordagem propriamente sociológica da produção discursiva colonizadora começava a ratear nas nações africanas e asiáticas recém-descolonizadas. As narrativas do saber, de nítida origem europeia, precisavam ser contrabalançadas pelos textos dos falantes nativos, que desconheciam a escrita fonética. A produção cultural das nações independentes é magnetizada pela oralidade, assim como será a fala dos “subalternos” latino-americanos, de que será exemplo Rigoberta Menchú, indígena guatemalteca.

No meu caso, a etnologia – então sendo desbravada pelo extraordinário trabalho de Claude Lévi-Strauss em Tristes tropiques (1955) – conduzia à abordagem multicultural no exame do vírus colonial, e se impunha como ferramenta auxiliar. Graças à multidisciplinaridade, eu poderia entender melhor os vários processos de alteridade articulados pela relação cultural entre metrópole/colônia, ou seja, pela sobreposição à etnia indígena dos valores culturais da etnia europeia. Sem ser mero silêncio, o outro brasileiro não seria – embora estivesse sendo dado pela tradição eurocêntrica − o mesmo europeu.[12] Por essa fórmula simplificada, embora eficiente no questionamento do centramento ocidental operado pelos efeitos positivos e negativos da colonização ocidental, se desconstruía o inevitável esteticismo disciplinar da formação literária proposta por Antonio Candido. A fórmula nos levava ainda a questionar o conceito de identidade e a conjurar, enfatizando-a, a noção de diferença, de que Jacques Derrida será o grande teórico a partir de 1967. O mesmo europeu conformava, modelava e instruía o outro brasileiro, na maioria das vezes de maneira cruel e sanguinária, como atestavam os bons estudos sobre aculturação.[13] Se havia História dever-se-ia escrevê-la a contrapelo da fé e do império (como poetava Camões), ou seja, do ponto de vista dos vencidos.

Em minhas primeiras anotações e na sala de aula, abandono gradativamente o objeto livro e me adentro analiticamente pela sua fragmentação em texto, cuja prática de leitura me fora inculcada por formação direcionada por Damien Saunal, meu primeiro grande mestre francês. Refiro-me à famosa explication de texte, na época assimilada pelo new criticism anglo-saxão que, por sua vez, me sustentava pela contiguidade geográfica e pelo aprendizado da língua inglesa. A explicação de texto permite retirar o objeto – qualquer texto do período colonial brasileiro – da leitura elaborada pelos notáveis historiadores e eruditos luso-brasileiros. Serve para colocá-lo em suspensão (ou sob suspeita, uso a expressão policialesca não sem certa dose de ironia), a fim de lê-lo com o instrumental crítico tomado, por exemplo, do casamento da teoria da literatura com a etnografia lévi-straussiana. Como me valer do novo e bom aprendizado teórico e ler textos – sem prejulgá-los – que escapam totalmente aos princípios estéticos determinados pelos formalistas russos da qualidade literária? Que os russos amados e sua proposta de literaturnost (literariedade) me perdoem![14] Antes de ser uma disciplina de estudos, a literatura me fornecia tanto uma metodologia de leitura quanto alicerçava os primeiros passos no que seria mais tarde definido como post-colonial theory (teoria pós-colonial) e cultural studies (estudos culturais).

Jogava e, munido das fichas de jogador indulgente, fiz uma aposta que, com o correr dos anos, me parecia rentável. Catava metáforas no texto da época colonial e, a partir delas, apreendia o modo como cada uma servia para montar e finalmente revelar, na superfície meramente descritiva do texto, as manobras eficientes do colonizador nas primeiras narrativas historiográficas que iluminavam o Brasil para a Europa, manobras enrustidas a olho nu e ainda cercadas de mistério. Aparentemente inocente, a metáfora carreava carga semântica inexplorada e explosiva e, por isso, requeria a descodificação por parte do leitor pós-colonial brasileiro.

Este entregava o texto historiográfico à sua visitação literária e etnográfica, ao mesmo tempo em que abria sua historicidade no mais profundo da dilatação da fé e do império pelos marinheiros lusitanos e pelos padres jesuítas. O estudo de cada metáfora mostrava a organização de um padrão (pattern) linguístico ambíguo que estava na base dos textos identitários, escritos por estrangeiro e posteriormente por brasileiro, que se tornariam canônicos com o correr dos séculos. A figura de retórica – o primado do sentido espiritual da metáfora sobre o significado concreto do vocábulo – era comum à escrita da cultura e da literatura, já que fundava tanto a tarefa da colonização quanto o ideário ufanista.

3.

Minha primeira cobaia – até mesmo porque era o primeiro texto/tópico que constava no currículo acadêmico montado pelo meu predecessor em Albuquerque, professor Heitor Martins – foi a Carta de Pero Vaz de Caminha, que líamos na edição em português arcaico e moderno dos Nossos clássicos,[15] evitando com cuidado a poderosa e eurocentrada edição de Jaime Cortesão. Intuía que, pelo privilégio concedido a determinada(s) metáfora(s), o texto da Carta abria uma fascinante descendência intertextual na história da cultura e da literatura brasileira, cujos tataranetos no Modernismo brasileiro levam por nome Macunaíma (Mário de Andrade) e Poesia Pau-Brasil (Oswald de Andrade).

A primeira metáfora privilegiada, dada, aliás, como “principal” pelo próprio texto, foi semen (em latim), semente (em português), e sua descodificação pode ser feita a partir do sintagma de origem bíblica: “Semen est verbum Dei” (A semente é a palavra de Deus). No momento em que a carta chega às mãos do rei, quando o Rei de Portugal toma posse dela como legítimo destinatário, também toma posse da terra e dos seres humanos por ela descritos pela primeira vez. A carta cria para a História o acontecimento da descoberta do Brasil por país europeu. Ela sela de vez o devir português e cristão de uma terra e de seus habitantes; o devir de uma cultura não ocidental; o devir do futuro Estado-nação chamado Brasil. Os cinco séculos de uma sociedade, sua organização social, política e econômica estão lá. “In nuce”, como diria Benedetto Croce, numa noz.

Linguisticamente falando, os imperativos da colonização pelo império lusitano se disseminavam pela carta de Caminha através da metáfora semente – já descodificada pelo seu lado espiritual no Novo Testamento que, por sua vez, também acentuava o significado material do vocábulo. A metáfora fortalecia o sentimento do leitor/professor que evitava a oscilação entre a indispensável catequização dos gentios e a envaidecedora terra ubérrima (“em se plantando tudo dá”).

Paralelamente à metáfora semente, levantei outra, que servia para caracterizar o indígena desconhecido dos portugueses. Ainda na língua latina, os jesuítas dirão que ele era “tanquam tabula rasa” (era como tábua rasa). Já aí meu bom auxiliar era o então desconhecido livro de Mecenas Dourado, A conversão do gentio (1950), encontrado na biblioteca da Universidade do Novo México.[16]

O simulacro analítico da carta de Caminha associa a metáfora da semente à metáfora da tábua rasa para oferecer ao leitor o relato colonial na sua verdade histórica: a palavra de Deus se imprimiria com toda a facilidade na página em branco da mente indígena. Tal como recomposto hermeneuticamente pelas metáforas de alto poder colonizador, o modo de pensar, de observar e de escrever de Vaz de Caminha pré-determina o encontro imprevisível entre duas etnias, entre dois povos que se desconheciam mutuamente. Não havia possibilidade de conflito sanguinário.[17] Até segunda ordem, a conversão do gentio era dada como favas contadas. Os bons valores ocidentais seriam naturalmente escritos na mente virgem e acolhedora dos indígenas.

Ainda em 1959, ano excepcional em que, por cima do Atlântico e do território africano, se encontram Antonio Candido e Rui Knopfli, Sérgio Buarque de Hollanda publica o esplêndido Visão do paraíso. Por sua leitura eu acertava (como se acertam ponteiros de relógio) minha proposta: “Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui era dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro”.

De acordo com o simulacro analítico que então esboço, a descendência colonial de Caminha passa – em movimento de repetição e de diferença, vale dizer: intertextualmente – pelo padre Antônio Vieira e o “Sermão da sexagésima” (1655). Inspirada pela parábola bíblica do semeador (Mateus, 13, Marcos, 4) e com apoio nas pernas das duas metáforas que caminham de maneira otimista pela escrita de Caminha, a fala na Capela real de Lisboa tem ¾ do seu conteúdo tomado pelos descarrilamentos ocorridos durante o primeiro período de evangelização no Brasil. O sermão discorre principalmente sobre os diversos empecilhos encontrados pelos “semeadores” na vasta terra brasileira e invoca como possível causa para a semente não vingar, ou seja, para o desacerto na catequese, as intrigas no Paço, fomentadas pelas ordens religiosas que não acertam o próprio passo pelo agreste e, por isso, eram de menor valia para a Coroa lusitana que os jesuítas.

A descendência colonial de Caminha passa também pelo romântico José de Alencar e Iracema (1865), onde a metáfora bíblica ganha conotação amorosa e serve para traduzir o processo desigual e conturbado, embora pacífico, da posse pelo macho português da fêmea indígena. O licor de jurema, oferecido a Martim, escancara o escândalo da miscigenação sem estupro. O sêmen de Martim, sua semente, fertiliza o corpo virgem de Iracema e dele nasce o mestiço Moacir, cujo nome construído em tupi-guarani significa “filho do sofrimento”.[18] O político Alencar deveria deixar que o leitor entrevisse pela brecha da descendência a crueldade da colonização.

Naquele momento dos estudos, a descendência pós-colonial da semente ia até o pré-modernista Lima Barreto e o romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1915). Se atar a observação de Sérgio Buarque, já citada, a Jacques Derrida, direi que Lima Barreto era o primeiro a desconstruir a metáfora da semente. Nada no Brasil, dizia o romance, seria obra de Deus. Tudo teria de ser “obra do arador, do ceifador ou do moleiro”. O discurso literário desconstruía a primazia do discurso espiritual sobre o material, primazia estampada nas muitas narrativas que descrevem o processo da colonização lusitana/jesuítica nos trópicos.

Estou me referindo à segunda parte do romance de Lima Barreto, onde se frustra o desejo de Policarpo em cultivar a semente (agrícola) em território brasileiro. O personagem acorda subitamente à noite com a formiga a lhe ferroar a ponta do pé.[19] Anos depois, Mário de Andrade escreveria em Macunaíma: “Muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são”. Já então, em pleno modernismo, o texto da Carta e de outros textos coloniais é motivo de paródia.

Esse primeiro esquema de leitura – devidamente sustentado pelo estudo por parte dos alunos dos três volumes de Presença da literatura brasileira, antologia de responsabilidade de Candido e de Castello – foi testado, como disse, em aulas que ministrei na Universidade do Novo México no início dos anos 1960. Pouco a pouco, o esquema inicial foi sendo enriquecido e redundou em um curto e temeroso ensaio, “A palavra de Deus”, que escrevo no final da década de 1960 e publico no número 3 da revista Barroco (1971), dirigida por Affonso Ávila.[20] Pouco mais tarde, ele foi também testado no primeiro curso que dou na PUC/RJ como professor visitante. Levava o título de “A semente, ou a impossibilidade de se escrever a origem”. Alguns ex-alunos ainda guardam as folhas mimeografadas que apresentavam o curso.

Associada à semente, a palavra origem é um tanto pedante, mas julgava-a importante para trabalhar a distinção entre origem (valores ocidentais) e começo (valores brasileiros), que tomei de empréstimo de Joaquim Nabuco em Minha formação,[21] e me ajudava a compreender a ambiguidade ideológica na poesia de Carlos Drummond de Andrade, que vinha lendo e ensinando paralelamente.[22] Deixo de lado a distinção em Drummond, ou seja, o confronto entre mito de origem (família patriarcal) e mito de começo (Robinson Crusoé), para me alongar e encaminhar os dois conceitos com vistas a preocupação paralela aos estudos pós-coloniais que visava, com os ensinamentos de Jacques Derrida, à desconstrução da literatura comparada.

Minha formação – tal como foi configurada no início deste depoimento – me fora proposta como iniciação ao começo da literatura brasileira no século XVIII. Como muitos, retomei o bastão de revezamento – para valer-me de metáfora cara ao mestre Candido – das páginas da Formação da literatura brasileira. Para ir até a origem, eu precisava abandonar o campo adjetivo em que a literatura nacional tinha sido inserida como objeto de estudo e me adentrar por uma literatura comparada também pós-colonial. Para tanto, tinha de levar em consideração o modo como encarava e vinha lendo, no contexto literário propriamente nacional, o vírus colonial lusitano.

Precisava constituir as bases de uma disciplina acadêmica que recusaria adotar o centramento europeu – com sua esplêndida e trágica tradição milenar – como forma de organizar e qualificar a produção literária nas metrópoles colonizadoras e sua disseminação inferior e desafortunada pelos países coloniais.

Acentuo o conflito entre começo e origem para reafirmar que foi naquela época que surgiu a ideia de introduzir nos estudos sobre literatura comparada a noção de entre-lugar. Seria o espaço negociável de leitura das literaturas latino-americanas e das demais que passaram por processos semelhantes de colonização, cujo principal intuito era o de dar o troco pela diferença (pela ênfase na originalidade), valor sempre neutralizado pela literatura comparada tradicional. Redijo em 1972 a palestra “O entre-lugar da literatura latino-americana”, logo traduzido e publicado em inglês, que hoje se encontra na coletânea Uma literatura nos trópicos (1978).

4.

A segunda e última parte deste depoimento é mais tranquila e certamente menos audaciosa. É dominada por dois nomes, por duas figuras opostas que se digladiam nas profundezas dos interesses fragmentados que nortearão a maturidade – ou a assimetria – da minha formação. Os nomes extremos são o do argentino Jorge Luis Borges, que leio de maneira apaixonada, e da afro-brasileira Lélia Gonzalez, minha colega na PUC/RJ e professora no departamento de Sociologia, prematuramente falecida. O argentino me exige o colarinho-branco e a brasileira o despe. De um lado, a sofisticação dos ensinamentos literários que Borges nos transmite através de seus contos assombrosos e, do outro, o pé no chão da África que o Brasil de norte a sul traz como traço identitário envergonhado e cordial.

O conto “Pierre Menard, autor del Quijote”, de Jorge Luis Borges, serviu de inspiração para o inusitado título do ensaio escrito em 1970, “Eça, autor de Madame Bovary”. Transformou-se em alicerce tático para a atribuição equivocada de autoria (Eça não é autor de Madame Bovary) e a óbvia inversão cronológica (o notável romance de Flaubert é anterior ao Primo Basílio).[23] Autoria equivocada e cronologia invertida eram jogos usados como estratégia de desestabilização da literatura comparada canônica que, apoiada nas noções eurocêntricas de fonte e de influência, estabelecia a incontestável superioridade e primazia das obras artísticas produzidas nas nações colonizadoras.

À semelhança do que aconteceu na Poética de Aristóteles, em que o filósofo extrai da peça Édipo Rei, de Sófocles, o arcabouço teórico, eu buscava na criação literária moderna e pós-moderna o andaime que sustentasse o longo processo de construção dos pressupostos teóricos que embasariam a leitura subversiva de obras literárias escritas nas antigas colônias, cuja invenção e composição abriam brechas na norma estabelecida pelo Romantismo europeu e pelos movimentos canônicos posteriores.

Em outras palavras, minhas investidas no campo da teoria literária pós-colonial tinham e têm como inspiração não só as discussões propriamente filosóficas e estéticas, de que é exemplo contemporâneo o pós-estruturalismo francês, como também foram e são enriquecidas pelo vaivém entre prática de leitura e teoria. O resultado é a elaboração pessoal de uma ficção teórica,[24] que serviu e serve de metodologia de análise e interpretação, cujo estímulo é dado pelos criadores literários de minha eleição.

Tendo o texto paródico se transformado em princípio e método de invenção no movimento modernista, foi ele que me permitiu construir uma ponte que liga as deambulações teóricas pela literatura comparada alternativa com as exigências de outra leitura da nossa poesia e prosa dos anos 1920. A falta de bom senso associa o já citado conto de Borges a um traço capital do manifesto Dadá, assinado por Tristan Tzara. Lemos em Borges palavras definitivas sobre o sacrifício ao texto original e a invenção de variantes: “Meu jogo solitário está regido por duas leis polares. A primeira me permite ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico; a segunda lei me obriga a sacrificá-las ao texto ‘original’ e a afirmar, de modo irrefutável, essa aniquilação…”. No Manifesto Dadá 1918, lemos o elogio de ações opostas simultâneas como forma de composição literária: “Eu redijo este manifesto para mostrar que é possível fazer ações opostas simultaneamente, numa única fresca respiração; sou contra a ação; pela contínua contradição; pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom-senso”.

Falta de bom-senso crítico (a autoria equivocada, a inversão cronológica) e jogo das variantes não sacrificadas ao modelo original encontram eco no elogio do paradoxo, no elogio da contradição como afirmação, valores defendidos por Tristan Tzara no seu manifesto. Como resultado, a prosa ou o poema paródico, composto por ações opostas e contraditórias, é escrito numa única e fresca respiração, em simultaneidade. A noção de entre-lugar fornecia o espaço teórico para apreender em uníssono tanto a cópia (sacrifício ao original) quanto a invenção pessoal (variantes), constituintes da paródia. Tratava-se de ler o texto nas suas transparências intertextuais.

Chegado aqui, não é de todo gratuito trazer outra e definitiva associação. Não por coincidência essas preocupações práticas e teóricas hipotecavam solidariedade à “leitura sintomal” que nos era oferecida por Louis Althusser em Lire le Capital. A leitura sintomal, também chamada de leitura cruzada (“lecture sous grille”), era a principal lição que nos legava Marx, o pensador original, se ele fosse devidamente associado ao outro Marx, o leitor meticuloso da tradição dos grandes estudos em economia. Citemos Althusser: “O resultado desta leitura cruzada [sous grille], em que o texto de Adam Smith é visto através do texto de Marx, projetado nele como a sua medida, não passa de um resumo das con­cor­dân­cias e das discordâncias, a contabilidade [décompte] daquilo que Smith descobriu e daquilo em que fracassou, dos seus méritos e de suas fraquezas, de suas presenças e de suas ausências”. E continua Althusser: “num mesmo movimento, a leitura de Marx desvenda no próprio texto que lê o indesvendável e o relaciona a outro texto, presente de uma ausência necessária no primeiro”.

Pé no chão da África, Lélia Gonzalez é polemista de primeira hora nos anos 1970. Por um lado, ela nos levava a enxergar o centramento do modernismo brasileiro na figura do indígena, herança sem dúvida romântica, herdada, por sua vez, do privilégio concedido pelo romantismo europeu à Idade Média. Por outro lado, ela me instigava a complementar minha leitura do vírus do discurso colonial lusitano injetando-lhe outro objeto – o escravo africano.

A voz de Lélia é potente e vale a pena transcrever ainda que apenas um dos seus petardos: “Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um Candomblé, da macumba…”. Sua fala sobre a cultura brasileira se politiza pela contemporaneidade das nações independentes do continente africano e encaminha a todos para a negociação pelas trocas culturais entre negros, brancos e índios, com vistas a um Brasil que seria representado não mais como unidade, mas multifacetado, miscigenado, multicultural, porque não há como negar, acrescenta ela, “a dinâmica dos contatos culturais, das trocas etc.”.

Nesse sentido, uma das grandes questões nacionais colocadas no momento em que Lélia se expressa é a da democratização do país após um longo período de autoritarismo militar. Os grupos étnicos excluídos do processo civilizatório ocidental passam também a exigir alterações significativas e participativas no que é dado como representativo da tradição erudita e branca brasileira ou no que é dado como a mais alta conquista da humanidade, a democracia representativa. Os excluídos exigem, por um lado, autonomia cultural e, pelo outro, inclusão. Nesse sentido, Lélia lança o sentido do movimento afro-brasileiro por clamor que se fez mais urgente a cada década no Brasil e ribomba hoje até no Ministério da Educação britânico: haveria necessidade de o Estado (em particular de o Ministério da Educação) operar um “recuo pedagógico” nos manuais escolares. Evitar a uniformização cultural pela escola pública dos grupos étnicos menos favorecidos. A escola teria de incorporar os valores culturais étnicos que são cultivados apenas na vida privada dos descendentes. Amadurecê-los como valores do cidadão brasileiro.

5.

Dou um salto no espaço e no tempo e termino com uma nota aparentemente melancólica, mas na verdade otimista. Abandono a memória e me reinstalo no novo milênio. Dou-me conta do esgotamento dos vários, diferenciados e notáveis “discursos de formação” que constituíram o paradigma nacionalista e desenvolvimentista como tarefa prioritária no crescimento da jovem nação brasileira. A exaustão do paradigma não o aliena. Assinala, antes, que ele está a perder a condição de prioritário. A exaustão é a própria consequência otimista do paradigma que movimentou transformações significativas tanto no cidadão quanto na sociedade brasileira. Novas condições materiais definem o novo milênio brasileiro. Elas passam a exigir outro feixe amplo e crítico de discursos afins e complementares, que constituirão novo paradigma – o da “inserção” do Brasil no conjunto das nações.

As prioridades de hoje, do novo milênio, lançam outra perspectiva de pesquisa e, sugestionadas por ela, produzirão novas visões e versões do cidadão brasileiro e da sociedade nacional.

Tendo sido esclarecido (e não resolvido, obviamente) o modo como o sujeito brasileiro se automodelou como cidadão e acomodou nos trópicos a emancipação de uma sociedade jovem e moderna, delega-se hoje ao Estado nacional democrático papel e funções internacionais. Cosmopolita, a nação está habilitada a tomar assento no plenário do planeta. Automodelado, o sujeito discursivo – confessional, artístico ou científico – pode e deve dar-se ao luxo da crítica e da autocrítica em novo paradigma.

Faz-se urgente dar uma posição à “inserção da linguagem-Brasil em contexto universal”, para retomar palavras premonitórias de Hélio Oiticica no texto “Brasil diarreia” (Arte brasileira hoje, 1973). Inserir a linguagem-Brasil em contexto universal traduz a vontade de situar um problema que se alienaria fosse ele local, pois problemas locais não significam nada – se se fragmentam quando expostos a uma problemática universal. Tornam-se irrelevantes se situados somente em relação a interesses locais. E Hélio conclui: “A urgência dessa ‘colocação de valores’ num contexto universal é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma ‘saída’ para o problema brasileiro.”


Notas

[1] Alerto para o fato de que as metáforas de caráter orgânico, autorizadas pelo conceito de formação, serão o feijão-com-arroz da primeira parte deste depoimento. Na segunda parte, elas se tornarão mecânicas: apreendem o que se fragmenta por desastre. Visão orgânica e visão mecânica são analisadas por René Wellek na extensa História da crítica moderna (consultar o índice analítico ao final de cada volume).

[2] “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas… Os que se nutrem apenas delas são reconhecíveis à primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto provinciano e a falta do senso de proporções. Estamos fadados, pois, a depender da experiência de outras letras, o que pode levar ao desinteresse e até menoscabo das nossas. […] Por isso, [este livro], embora fiel ao espírito crítico, é cheio de carinho e de apreço por elas [letras brasileiras], procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo vivo, indispensável para formar [grifos meus] a nossa sensibilidade e visão do mundo” (“Prefácio da 1ª edição” de Formação da literatura brasileira).

[3] Escreve Paulo Arantes: “Naquela quadra o departamento [de filosofia] era sobretudo um ‘método’. E tão arraigado que se sobrepunha às preferências filosóficas dos que o adotavam ou mesmo faziam restrições às elucubrações um tanto rasas que costumavam acompanhar o enunciado técnico dos seus autores franceses” (ver “O bonde da filosofia”). Fica claro que os subgrupos do nacional são infinitos e podem ser apreciados na produção dos estados (literatura fluminense ou mineira) e os dos municípios (literatura carioca ou belo-horizontina). Deixo de lado adjetivos mais obscuros: literatura regional, literatura comunitária etc.

[4] A importância da combinação de (ou da confusão entre) discursos identitários foi observada e salientada por Antonio Candido em Literatura e sociedade. Escreve ele que o poderoso ímã da literatura interferiu na tendência sociológica como pesquisa objetiva da realidade presente, “dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil […]”. E continua: “Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio − em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte −, constitui o traço mais característico e original do nosso pensamento”.

[5] Consulte-se o texto “Deslocamentos reais e paisagens imaginárias. O cosmopolita pobre”, de minha autoria.

[6] Segundo Candido, as “manifestações literárias” são encontradas no Brasil “em graus variáveis de isolamento e articulação, no período formativo inicial que vai das origens, no século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, às Academias do século XVIII”. Dentro da USP e posteriormente, José Aderaldo Castelo se dedicará ao estudo exclusivo da matéria. Leia-se Manifestações literárias da era colonial, 1500-1808/1836. Acrescento que, na fase inicial do meu interesse pelo vírus colonial, muito me vali, em contraponto, do volume assinado por ele. Meus alunos norte-americanos dos anos 1962-64 podem atestar. Guardo ainda as fichas de leitura, que então datilografava. A proposta contemporânea de Haroldo de Campos difere da nossa por dar continuidade à história literária por estilo de época (descarrila o sistema de Candido pelo Barroco) e, mais grave, por recalcar a análise do discurso.

[7] Muito menos cuidadoso no uso do paradigma formação ou do adjetivo brasileiro é Wilson Martins. Leia-se a primeira frase do primeiro volume de História da inteligência brasileira: “A história da inteligência brasileira começa em 1550, quando o Pe. Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de Latim no Colégio dos Meninos de Jesus, em São Vicente”. Sua concepção de história é escancaradamente eurocêntrica e catequética.

[8] Ler, por exemplo, os poemas “Terra de Manuel Bandeira” e “Contrição”. Versos de Drummond servem de epígrafe aos livros O país dos outros e Máquina de areia.

[9] Quando dirige o teatro des Amandiers, Patrice Chéreau encena pela primeira vez em território francês a peça de Genet. Ano: 1983. Tive a honra e o prazer de ter assistido ao extraordinário espetáculo, que tinha no elenco principal nossa Norma Bengell contracenando com Maria Casarès.

[10] É um tanto à maneira de Rui Knopfli que escrevo o ensaio “Camões e Drummond: a Máquina do mundo” (Hispania, 1966). No poema “Em A/Grade/Cimento”, hoje no volume Viola de bolso, Drummond ironiza o des/acerto da abordagem do seu belíssimo poema pelo vírus colonial lusitano.

[11] Geograficamente, os fatos narrados na primeira parte se desenrolam nos Estados Unidos da América e no Canadá. Começo por ensinar as literaturas brasileira e portuguesa; posteriormente, em virtude do doutorado na Sorbonne em 1968, ensino a língua e literatura francesa na State University of New York at Buffalo. Em 1969, ao me transferir de universidade e de departamento, passo a dedicar-me com afinco às leituras da teoria pós-estruturalista.

[12] Entre os mais legítimos teóricos do primeiro multiculturalismo está o norte-americano William G. Sumner que, em 1906, cunhou e definiu o termo etnocentrismo. No seu livro Folkways, publicado em 1906, define Sumner: “O etnocentrismo é o termo técnico que designa a visão das coisas segundo a qual o nosso próprio grupo é o centro de todas as coisas, sendo todos os demais grupos medidos e avaliados por referência ao privilegiado”. E continua adiante: “Cada grupo pensa que os seus próprios costumes [folkways, no original] são os únicos bons e, se observa que outros grupos têm costumes diferentes, estes provocam o seu desdém”.

[13] Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits se reúnem em 1936 para coletar dados e redigir um “Memorandum for the Study of Acculturation”, publicado na revista American Anthropologist. Dali retiro a definição: “A aculturação é o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que acarretam transformações dos modelos [patterns, no original] culturais iniciais de um ou dos dois grupos”. O velho conceito de multiculturalismo repousa na aculturação e no trabalho que, anacronicamente e com a ajuda de Jacques Derrida, chamei de desconstrutor do etnocentrismo. No Brasil, como se sabe, a visada multiculturalista foi fortalecida pela ideologia da cordialidade.

[14] Tenho acesso em meados dos anos 1960 ao livro pioneiro de Victor Erlich, Russian formalism History – Doctrine.

[15] Presto aqui homenagem ao mestre Rodrigues Lapa que me ensinou, na UFMG, a ler a poesia galaico-portuguesa e me passou o indispensável texto de Eugenio Asensio sobre o tópos “la lengua compañera del Imperio”.

[16] Nele, se lê: “[…] os índios são tanquam tabula rasa para imprimir-lhes todo o bem; […] poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel branco e não há que fazer outra coisa, senão escrever à vontade as virtudes mais necessárias […]”.

[17] Em um dos mais polêmicos livros sobre o primeiro século colonial, La société contre l’état, Pierre Clastres reabre a possibilidade de uma Antropologia política, aventando a hipótese de haver existido organizações sociais que se estruturaram sem a violência inerente ao “poder coercitivo”, isto é, sociedades humanas que não conheceram processos de hierarquização impostos pelo alto. Na Antropologia tradicional, em virtude da cegueira etnocêntrica, era impossível vislumbrar uma sociedade onde a organização social não dependia do uso da força e da violência como causa da aglutinação. Torna-se importante constatar que Pierre Clastres vai encontrar, nos primeiros documentos descritivos da região recém-descoberta pelos portugueses, os indícios de que o modelo político não coercitivo existe nas tribos da América do Sul, sendo possível para ele comprovar a tese de que “il ne nous est pas évident que coercition et subordinnation constituent l’essence du pouvoir politique partout et toujours”.

[18] Leia-se de minha autoria “Alegoria e palavra em Iracema”, publicado em 1965 na Luso-Brazilian review.

[19] Leia-se de minha autoria “Uma ferroada no peito do pé”, reunido em Vale quanto pesa (1982).

[20] A versão em inglês do ensaio saiu em uma plaquete publicada em 1973 pela State University of New York at Buffalo, onde então dou aulas, com o título de “Latin-american literature: the space in-between”.

[21] Ver o ensaio “Atração do mundo”, hoje em O cosmopolitismo do pobre (2004). Convido à leitura do ensaio por esta paráfrase de Nabuco: “A formação do intelectual brasileiro no século XIX se confunde com outra formação: a da sedimentação das camadas geológicas do ‘espírito humano’ (a expressão é do texto). Há uma tardia e, por isso, dupla inscrição do brasileiro, vale dizer, do americano, no processo histórico de esfriamento da crosta da cultura humana. Os americanos pertencem à América pelo sedimento novo, flutuante, do seu espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas”.

[22] Ver o livro Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1975 pela Editora Vozes.

[23] A escolha do lusitano Eça de Queirós foi calculada. Queria evitar que se lesse na trama teórica, orientada pela autoria equivocada e a inversão cronológica, uma força nacionalista oculta. Uma parte repetitiva de O primo Basílio, silenciosa, é sintoma da condição provinciana, “colonial”, que Portugal vive em fins do século XIX.

[24] Ver “Ficção teórica” e “Renascença: movimento e gestual”, curtos ensaios que estão em Aos sábados pela manhã (2013), onde trabalho a lição de Aby Warburg em história da arte.

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Um comentario para "A literatura brasileira da perspectiva pós-colonial"

  1. Carlos Filho disse:

    O que significa a expressão “pós-colonial” para a América Latina? De acordo com o livro “As Veias Abertas da América Latina” e a nossa observação, esse termo não cabe.

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