Para uma breve história da carne

É possível, com palavras, fazer a carne mostrar-se para além dos véus com os quais é recoberta pelas leis da decência, do pudor e do horror? Tem sentido a ambição de fazer a carne desejar alguma coisa? Um livro-experimento busca respostas

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Por Laerte de Paula | Imagem: Aditya Puthur

Resenha de:
Uma breve história da carne, de Alessandra Affortunati

Uma matéria esquiva, ainda que indelével; um projeto inventivo, ainda que condenado a um fracasso incontornável; um começo tateante, ainda que atravessado por uma clara obstinação. Com Breve História da Carne, temos uma aproximação inicial tecida com corajosa hesitação e vulnerabilidade, versos insinuantes, como que irrigando, de forma ainda incipiente, um inquietante léxico para a carne: o leitor é, assim, convidado a percorrer sua breve história, encaminhada por Alessandra Affortunati Martins.

Quem diz no livro? Quem quer que seja, o que quer que seja, ao abrir o livro, adentramos a antessala de uma nova possibilidade. Um livro se gestando à medida que interroga seu próprio surgimento, reconhecendo a armadilha a partir da qual se constitui: tentar, com palavras, fazer a carne mostrar-se, para além dos véus com os quais costuma ser recoberta pela lei da decência, pela tradição, pelos limites do pudor e do horror. Intrigante ambição essa de fazer a carne desejar alguma coisa. Alguém, pouco a pouco, busca dar-lhe voz, prosódia, escutando a carne fazendo fissuras no discurso ordenador, coletivo, formal. Esta vocifera, indignada, intransigente: “Não é nada disso! Você fez tudo errado”. A autora não recua de tentar dar contorno a essa impossibilidade que urge: como fazer a carne se dizer sem a mentira da palavra?

Há uma pergunta que costuma me ocorrer diante dos livros que me intrigam: com o que este livro está comprometido? Essa urdidura que o realiza, busca ser fiel a quê? Se o livro possui um mérito que se destaca de outros, é o de ocupar-se de tratar a própria língua, de inventar outras possibilidades discursivas, dar nome ao que passou despercebido ou maltratado pela tradição, pela cultura, pelos filósofos, pelos artistas. Jogar luz no terreno maldito, insuficientemente dito, dessa matéria carmesim, cintilante, fibrosa.

Valeria chamar Breve História da Carne de experimento, nome que me parece mais digno à iniciativa e que preserva para si as possibilidades reluzentes da indeterminação. Tal experimento inclui ainda um outro valor: o de reabilitar palavras, dilatar o léxico inusual, escatológico, dos territórios da carne, suas moléstias, secreções, pústulas, convulsões. Aliás, o leitor haverá de comprovar, o efeito da leitura dessas palavras percorridas passa também pela produção de um espesso estranhamento: o olhar, figurando diante da convocação de tão reaberta gramática, gostaria de polir tamanha vertigem. Não colheremos da leitura o tranquilo deleite que tantas vezes buscamos em um livro. Sua composição busca favorecer o aparecimento daquilo que o verniz civilizatório se esforça por suavizar, e que exerce, de fato, seus poderes em nós. Assim, seu efeito é mais incômodo: faz sonhar imagens, trazendo uma abundância delas para se comporem com as obras ali retratadas.

Pela fartura de referências com as quais o livro se coloca em diálogo, seria um desperdício não abrir e expandir a rede que se oferece ao leitor. Há uma gama de obras, entre tratados, registros de exposições e performances, telas, etc, que solicitam um aprofundamento de pesquisas derivadas. O encontro com alguns dos que ‘fizeram jus à carne’ e que merecem ser conhecidos: artistas capazes de partilhar imagens-furo, como a autora nos indica. A trança com diferentes gêneros literários também dá força ao livro e o faz mais convidativo, na medida em que mantém em perspectiva, inclusive, um certo traço lúdico que pode se desincumbir da aspiração de formalidade para o tema. 

Em algumas passagens, os versos se propõem a atormentar o conforto do leitor: olhos extirpados, fígados destroçados, pescoços amputados, chagas incuráveis, úlceras expostas, buracos purulentos, matéria em decomposição, gangrenada, putrefata… Por outro lado, a autora não perde de vista o impasse: tentar dar nome à carne, como dito em ‘Costura’, pode não passar de pura teimosia vã.

Caminhamos, assim, recolhendo e partilhando os vestígios da divisão de quem escreve, premida entre o esforço ao qual o empreendimento literário convoca – suas exigências formais, os enquadres do conhecimento partilhável, científico, rigoroso – e as incitações práticas que a convocam aos prazeres e demandas mundanas, ao ímpeto tentador de descansar da tarefa impossível.

Da fenda ao sangue, da fístula ao charque, da boceta às úlceras, o livro não recua do risco de insistir em uma discursividade última que poderia fazer jus à verdade da carne. E afinal haveria alguma dignidade que não fosse feita de palavras? Seria possível conferir maior verdade à carne que não com as palavras enganosas, as únicas de que dispomos? Até para despir e desfazer sentidos – os hegemônicos, os tirânicos, os colonizadores – precisamos da linguagem.

Qual a carne que clama qualquer coisa? A carne intumescida do verbo, seria uma resposta possível. A autora está advertida disso: ‘Dar lugar a ela pela palavra implicará traí-la logo de saída’. Não há livro que não seja traição. Trata-se, então, de, pela traição, produzir um objeto digno de interesse. Eis aí um efeito a ser festejado nesta obra. Um livro que consente em trair a promessa encantada de sair da linguagem, para, enfim, brincar com suas sugestões: é aí, no salto da autora, que o livro se faz: ‘sua versão latejante é alusiva’. A breve história dessa matéria nos convida a atravessar suas sendas vermelhantes.

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