Tem que ser político

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No mês de maio, a grande presença do cinema brasileiro na França evidencia o posicionamento do cinema atual rumo a um engajamento “do real”

(Por Bruno Carmelo)

Com o fim do Festival de Cannes e do Festival de Cinema Brasileiro de Paris, a França sediou, no mês de maio, mais de 40 filmes brasileiros, que vão do curta ao longa-metragem, das grandes produções às experimentais, dos diretores mais famosos aos estreantes.

É possível aproximar as experiências destes dois eventos. O Festival do Cinema Brasileiro de Paris, embora bem menor do que Cannes, tem o mérito de trazer nosso cinema ao alcance do público comum, uma vez que as projeções de Cannes são fechadas à imprensa. Se ele trouxe visibilidade para o cinema brasileiro na mídia, o festival parisiense infiltrou-se silenciosamente e alcançou um público significativo dentro do circuito “de arte”.

Paris e o “deserto rebelde”

O Festival do Cinema Brasileiro de Paris apresentou boa diversidade de filmes, organizou debates históricos e conversas com os diretores. As premiações disseram muito sobre como o cinema foi percebido: o público elegeu a comédia Saneamento Básico, de Jorge Furtado, premiando um gênero pouco conhecido no exterior. Já o júri fez uma escolha interessante, dividindo o prêmio máximo entre Mutum, de Sandra Kogut e Deserto Feliz, de Paulo Caldas.

Trata-se de filmes opostos. O de Kogut trabalha na chave do minimalismo, de uma poesia silenciosa construída através do olhar de uma criança. Já Paulo Caldas desconhece o silêncio: seu filme grita (literalmente, quase) a existência de um submundo, da pobreza, da prostituição, das drogas. Embora o júri tenha tentado abraçar tanto a herança do Cinema Novo em embalagem moderna (Deserto Feliz) quanto a “ousadia” de um filme clássico (Mutum), o prêmio suplementar de melhor atriz para o filme de Paulo Caldas faz com que esse saia como “grande vencedor”.

Cannes e as “visões do inferno”

Cannes também apresentou duas obras de diretores brasileiros em competição, além de outros longas e curtas em mostras paralelas. Sobre os dois “brasileiros” da competição oficial, Linha de Passe, de Walter Salles e Blindness, de Fernando Meirelles (poderia questionar-se a nacionalidade desse segundo, que ostenta o nome da Miramax e de vários atores norte-americanos), a recepção foi fraca.

O filme de Meirelles abriu a competição. As críticas, decepcionantes. Blindness seria um tanto afetado, segundo os jornalistas; marcado por um estetismo que se sobreporia ao lado humano da obra. O diretor, visivelmente ferido pela opinião geral, defendeu o ineditismo de seu filme e acusou as críticas “apressadas” dos jornalistas.

Linha de Passe não teve críticas tão negativas, mas também não despertou grande entusiamo. Isso não impediu, no entanto, que ele ganhasse o prêmio de melhor atriz das mãos do presidente do júri, Sean Penn, que cumpriu a promessa de premiar filmes que “mostrem consciência do mundo que os cerca”. Sim, Linha de Passe trata de uma família carente, e o título juntou-se aos outros abertamente políticos da competição (Entre Les Murs, Il Divo, Gomorra), todos premiados.

Cannes deixou clara a importância do cinema político hoje em dia. No momento em que os documentários são valorizados por serem mais “reais”, o festival de cinema mais importante do mundo despreza os filmes fictícios e intimistas. Estabelece-se uma hierarquia temática: é mais importante falar de sociedade do que falar do indivíduo; do público do que do privado. Acima de tudo, fica evidente a perda da capacidade de abstração do olhar contemporâneo: o filme político tem que ser explícito, não há espaço para a poesia e metáfora. Ficção torna-se sinônimo de alienação.

Pode-se notar certas semelhanças entre os resultados dos dois festivais, pelo menos nas reflexões sobre cinema do Brasil. Assim como Deserto Feliz foi elogiado pelo imediatismo da obra (“seu filme fala sobre o real”, exclamou um crítico de cinema que compunha o júri), Linha de Passe foi elogiado pelo jornal Le Monde pelo “retrato do inferno” sobre São Paulo.

Nesse contexto, o filme torna-se um produto útil, uma arma militante. O engajamento contemporâneo, mesmo que louvável em sua intenção, só permite uma relação com o real: a reprodução da realidade (e não a construção ou significação do mesmo). Não é de se estranhar que as cinematografias de países subdesenvolvidos estejam em voga nos festivais europeus. A partir do momento em que as atenções dos países ricos dirigem-se para o sul do globo, o cinema brasileiro tem tudo para aproveitar seu crescimento qualitativo e destacar-se.

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2 comentários para "Tem que ser político"

  1. Vito Ramon disse:

    Acho muito bom que haja essa renovação na cultura cinematográfica, e que os filmes comecem a falar mais da realidade que nos cerca. No atual estado das coisas no mundo é preciso um tratamento de choque de realidade para as pessoas despetarem sobre a importância de se fazerem algo para o mundo mudar, e neste a cultura tem um papel destacado e muito relevante. Estou cheio destes filmes norte americanos que são sempre a mesma coisa, o mesmo roteiro enfadonho sobre um indivíduo, um ataque terrorista e pessoas do mau que querem destruir o EUA e a “civilização”.
    Está na hora do cinema despertar e de nós despertarmos.
    Os melhores filmes ultimamente em grande escala são os documentários sem sombra de dúvida, pois fazem a realidade virar ficção só pelo simples ligar da camêra.

  2. Lúcia Nunes disse:

    Já há alguns anos venho me perguntando o que se passa nas mentes dos roteiristas do cinema que é produzido no Brasil. Eu concordo com o articulista totalmente: se o mundo desenvolvido está se voltando para o sul do Planeta, que bom; no entanto esta “overdose” de realismo (ainda que muito bem intencionada) sobre a nossa realidade, a meu ver, acaba tornando o conjunto da obra quase surreal. Todo excesso, em termos de produção artística, que visa mostrar o todo ou um recorte de qualquer realidade do que “nos cerca – parafraseando o Sean Penn, acaba tornado a mensagem quase uma “caricatura” desta mesma realidade… Acredito que não encontramos o “caminho do meio” para nos comunicarmos com o mundo fora daqui. Se há intimismo, excessivas metáforas na produção européia e norte-americana, creio que não temos ousado (há exceções, por certo) experimentar o terreno das metáforas. Por que desistimos desse inteligente e encantador recurso dentro da produção brasileira de cinema?

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