Venezuela em disputa: o que dizem as ruas?

Camelôs, funcionários públicos e acadêmicos expõem suas preferências entre Maduro e a oposição, mas todos convergem: existe uma guerra, que se não for resolvida em breve, poderá ampliar insegurança econômica e social no país

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O texto faz parte de uma série de três reportagens produzidas pelo jornalista Gilberto Maringoni, que passou uma semana na Venezuela colhendo relatos e analisando a delicada situação pela qual o país vive. O projeto foi viabilizado a partir de um crowdfunding realizado pelo site Diário do Centro do Mundo.

Por Gilberto Maringoni, de Caracas, em especial para o DCM

Esta é minha 16ª. viagem à Venezuela. Estive aqui 14 vezes entre 2002 e 2007, no auge do período chavista. O preço do barril do petróleo subia incessantemente, na onda do boom das commodities.

Eram também tempos em que a chamada “revolução bolivariana” cativava a esquerda mundial e irritava a direita com sua ousadia na cena internacional.

A qualidade de vida – em especial dos setores mais pobres – parecia subir de maneira irrefreável e, aparentemente, a América Latina finalmente se descolaria de seu passado, em que a armadilha do subdesenvolvimento parecia condenar a região ao eterno atraso.

Voltei para cá em 2013, para acompanhar a eleição de Nicolás Maduro, um mês depois da morte de Hugo Chávez. Já encontrei um processo político que perdera boa parte de seu encanto inicial, mas que conseguia manter bons indicadores sociais e boas taxas de crescimento, apesar de nunca ter rompido com a monocultura do petróleo.

A desaceleração econômica ainda não havia entrado em seu mergulho pós-2013, quando os preços do petróleo desabaram.

Seis anos depois, a percepção da decadência se expressa na visão das ruas. Há um estado geral de má conservação da cidade, combinado com o aumento do número de camelôs e envelhecimento da frota de veículos. Nada diferente da imensa maioria das cidades brasileiras.

Ao mesmo tempo, há uma normalidade e uma calma que não bate com a expectativa do visitante encontrar um país em ruínas. Para tentar entender um pouco mais do que se passa, nada melhor do que conversar com essa gente que lota vias públicas, shopping centers e que rala num dia absurdamente quente da quase primavera caraquenha.

“TEM DE MUDAR. DEPOIS A GENTE VÊ O QUE FAZ”

Alejandro Lemafifa tem cara de poucos amigos. O jovem atarracado e com um capacete de motociclista aguarda um chamado no calçadão do bairro de Sabana Grande, não longe do centro. Aos 22 anos, Alejandro se vira trabalhando como instalador de som para carros. Está há quatro anos no ofício e não sabe dizer se a vida piorou. “Sempre foi difícil”, murmura num sotaque quase ininteligível. Reclama que a comida está caríssima, que ganha pouco e que se vira vendendo eletrônicos de todo tipo. As cestas básicas distribuídas desde 2016 à população mais pobre não resolvem a situação, sublinha ele.

Ao mesmo tempo, há uma normalidade e uma calma que não bate com a expectativa do visitante encontrar um país em ruínas. Para tentar entender um pouco mais do que se passa, nada melhor do que conversar com essa gente que lota vias públicas, shopping centers e que rala num dia absurdamente quente da quase primavera caraquenha.

“TEM DE MUDAR. DEPOIS A GENTE VÊ O QUE FAZ”

Alejandro Lemafifa tem cara de poucos amigos. O jovem atarracado e com um capacete de motociclista aguarda um chamado no calçadão do bairro de Sabana Grande, não longe do centro. Aos 22 anos, Alejandro se vira trabalhando como instalador de som para carros. Está há quatro anos no ofício e não sabe dizer se a vida piorou. “Sempre foi difícil”, murmura num sotaque quase ininteligível. Reclama que a comida está caríssima, que ganha pouco e que se vira vendendo eletrônicos de todo tipo. As cestas básicas distribuídas desde 2016 à população mais pobre não resolvem a situação, sublinha ele.

E quem não saiu pensa em sair, diz a jovem que não pretende tomar o mesmo rumo. “Tenho compromisso com a mudança aqui, em minha vida profissional e social”, destaca. Ao seu lado, Maria José Angarita, 34, engenheira de petróleo que montou uma empresa de prestação de serviços com o marido, concorda e vai além.

“Apesar de tudo, em Caracas há a impressão que as coisas andam bem. Moro em Maracaibo, região rica pelas reservas de petróleo, e lá as coisas são piores”. Há apagões diários e forte intimidação por parte da polícia a protestos diários por parte da população. As duas amigas avaliam que um primeiro passo para a mudança seria a chegada da oposição ao governo.

“NEM GUAIDÓ E NEM MADURO”

No mesmo shopping trabalha Herbert Lovera, 24 anos, cartazista. Também reclama da vida difícil e os motivos são semelhantes: salários, preços altos e a necessidade de buscar vários trabalhos ao mesmo tempo para se manter. Diferentemente das duas mulheres, Herbert não sente muita firmeza na oposição.

“Mas a solução não é nem Guaidó e nem Maduro, que não são confiáveis”. Ao longo da conversa, o rapaz confessa preferir o presidente “que tem buscado fazer coisas reais pelo povo”, como resolver o problema de moradia através da “construção de casas para muita gente”, tentar acabar com a fome e atacar as carências da saúde. “A verdade é que muita gente quer mudar, mas não sabe como”.

DEMOCRACIA COM PROBLEMAS

Javier Barrios tem um pequeno jipe Daihatsu e trabalha como taxista personalizado, atendendo uma rede de clientes acumulada ao longo dos anos. Tem 34 anos, é filho de imigrantes bolivianos e trabalhou por 15 anos no setor de vendas da Toyota.

Conseguiu comprar um pequeno apartamento numa área central e se vira com pequenos serviços ligados ao transporte. Tem certa preferência por Guaidó, mas o acha ainda inexperiente para assumir o comando do país. “Ele se desgastou nos últimos meses pelas decisões que tomou”, diz ele. Javier vê a Venezuela como uma democracia, com alguns problemas que podem ser resolvidos pela pressão popular.

“ESTÁ RUIM AQUI? VÁ AO INTERIOR”…

Ruth Ranger, 60, está sentada com a netinha no colo, num banco no centro da cidade, próximo à Assembleia Nacional. Apresenta-se como dona de casa. Assim como as duas amigas do shopping, afirma que não basta olhar para Caracas.

Moradora de Mérida, importante cidade do oeste venezuelano situada a 800 km de Caracas, Ruth testemunha que lá falta de tudo, “gasolina, comida e luz”. Com olhar resignado, ela só vê possibilidade de melhoria na situação se governo e oposição se entenderem. “Há uma guerra entre os dois lados e a população sai perdendo”, ressalta.

“ÀS VEZES PENSO EM IR EMBORA”

“Sim, é isso, o salário não consegue acompanhar os preços”. Quem fala é Ricardo Perez, 51, um vendedor bem vestido e de fala mansa, na entrada de um imponente edifício na praça Altamira, reduto de classe média alta. Para ele, o povo está desmotivado e desmobilizado para protestar. Apesar de sua situação relativamente estável, volta e meia pensa em ir embora do país.

“Acho que 95% de minha família saiu e a maioria de meus amigos foi tentar a vida fora”. Ricardo votou várias vezes na oposição, apesar de já ter escolhido Chávez anteriormente. “Havia uma certa expectativa de melhoria, que não se sustentou”. O vendedor não tem muita esperança em mudanças no curto prazo. “Muitos conhecidos torcem por uma intervenção externa, mas acho que nossos problemas têm de ser resolvidos aqui dentro”, completa.

“COMO ACHA QUE VIVO”?

“Uma caixa com 40 ovos custa 4 dólares. Ganho dois dólares de aposentadoria. Como você acha que vivo?”, pergunta rispidamente Javier Guevara, 58, ex-policial. “Há um descontentamento geral por aí”, reclama. “Não há controle de preços, não há supervisão de nada”.

Javier alega que sua cesta básica chega a cada quatro meses, com apenas quatro produtos. Javier pensa que a crise só se resolverá com uma iniciativa. “É o governo e a oposição reconhecerem-se uns aos outros”. Javier fala de forma desembaraçada. “O maior problema é o da produção. Sem se recuperar o aparato produtivo do país, nada anda”.

O PREÇO DA LUZ

José Graterol, 45, trabalha como leitor de relógios de luz. É empregado da Corpoelec, empresa estatal de energia. É claramente um defensor do governo. Ele reconhece as reclamações, mas afirma que os serviços públicos são todos subsidiados.

“Uma casa de classe média alta paga cerca de 3,5 dólares ao mês de conta de luz e a de um pobre paga menos de um dólar”. Seu argumento estende-se para as contas de água. “Aqui, os preços são ainda menores. Cada residência paga cerca de 2 dólares ao ano. Isso sem contar que o metrô em Caracas é gratuito”.

ESTAMOS EM GUERRA

Confrontado com esses depoimentos, Eduardo Piñate, 63, ministro do Trabalho e ex-dirigente sindical dos professores passa a mão no cabelo, franze a testa e sintetiza: “Estamos em guerra, meu irmão”. Em suas palavras, o governo elegeu uma questão prioritária em meio à crise da economia petroleira e do embargo estadunidense. “Não podemos deixar o povo passar fome. Se isso acontecer, o governo cai”.

Em sua sala, no quinto andar de um edifício situado numa área decadente do centro da cidade, Piñate enumera as iniciativas que a administração federal tem tomado. “Nós distribuímos a Caixa CLAP (Comitês Locais de Abastecimento e Produção) uma vez por mês para seis milhões de famílias, o que alcança 24 milhões de pessoas numa população de 32 milhões. Se a situação melhorar, a distribuição será quinzenal”

O ministro enumera outras iniciativas: um sistema de bônus para nove milhões de pessoas, que lhes entrega o equivalente a cinco dólares, mais uma compensação permanente de 13 dólares. As mulheres grávidas, a partir do segundo mês de gestação, ganham outro bônus.

Piñate relata ainda que as iniciativas emergenciais estão gerando, na área de alimentos, um processo de substituição de importações. “Quase todos os itens das cestas básicas são produzidos internamente, o que não acontecia há três anos. Isso dinamiza o produtor e expande o mercado interno”.

E completa: “É por isso que não há uma explosão social, nesse quadro de carências generalizadas, em que não podemos importar máquinas e equipamentos para modernizar o sistema elétrico e a indústria de petróleo”.

Piñate me atendeu tarde da noite, no intervalo de duas viagens ao interior. Depois de quase uma hora de conversa, ele se despede com uma frase. “Não se esqueça de escrever lá: estamos em guerra, irmão, em uma guerra não convencional. Cada dia é um dia”.

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