Trajetória, contradições e desafios do MST

Acossado por Bolsonaro, que o julga “terrorista”, movimento resiste e se reinventa. Muitas de suas ações, como cooperativas e agroecologia, seguem ignoradas pelo mundo urbano. Vale conhecê-las.


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Por Felipe Betim, em El País

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está na mira do novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PSL), que promete tratar o grupo, um dos maiores e mais articulados de toda a América Latina, como uma “organização terrorista”. Ainda que o movimento, que nasceu para pressionar pela reforma agrária num país historicamente concentrador da propriedade rural, oficialmente reprove a luta armada e nunca tenha promovido atentados contra autoridades e civis. Matar e roubar não faz parte da doutrina deste grupo, que promove ocupações em terras consideradas improdutivas e tira o sono de ruralistas. Montam acampamentos, plantam para o próprio sustento e comercializam o que sobra. É nesse ambiente que cresce a hostilidade ao movimento, que diz manter vínculos com cerca de 400.000 famílias assentadas e 120.000 acampadas em todo o Brasil e ganhou a fama de ser fora da lei. Centenas de seus militantes já morreram em ações e ocupações de terra que nem sempre ocorrem sem conflitos ou excessos. No dia 8 de dezembro, dois agricultores na Paraíba, líderes de um acampamento —fase em que estão ocupando a terra, antes de ser desapropriada para formar o assentamento— foram sumariamente executados por homens mascarados.

No Governo Bolsonaro estão tanto Sergio Moro, ministro da Justiça que disse discordar do presidente, quanto Ricardo Salles, o advogado que tentou se eleger deputado federal com uma campanha em que insinuava o uso de balas de pistola para conter o MST, na pasta de Meio Ambiente. Já o ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente da conservadora União Democrática Ruralista (UDR), foi indicado para secretaria especial de Assuntos Fundiários do ministério da Agricultura. Ficará responsável pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão do Governo Federal que cuida da titulação de territórios quilombolas e assentamentos de agricultores sem-terra, entre outras políticas relacionadas ao tema. Mas, segundo o ministério, questões relativas a demarcações e conflitos de terra serão submetidos a um conselho interministerial. O EL PAÍS tentou sem sucesso falar com Garcia.

O mais grave por ora, explica João Stédile, dirigente nacional do movimento, é a ameaça de lobos solitários. “Foi o que aconteceu na Paraíba. O fazendeiro, se achando impune, contrata três pistoleiros. Eles vão lá no acampamento de moto e matam os dois líderes, que estavam jantando em seu barraco”, acrescenta ele, que tem 65 anos, é filho de camponeses, economista pela PUC-RS e o principal rosto de um movimento que evoluiu para uma organização que também milita a favor da agroecologia em contraposição ao modelo do agronegócio. As famílias acampadas e assentadas estão hoje entre os principais produtores de orgânicos do país —no caso de arroz, já são os maiores da América Latina— e seus produtos chegam tanto em escolas públicas como a mercados europeus. Esta é a história desses homens e mulheres do campo.


Da pobreza à ocupação, do acampamento ao assentamento

Um imenso mar verde de plantações cerca o perímetro urbano de Laranjeiras do Sul, um município do oeste do Paraná com pouco mais de 30.000 habitantes, e se estende a outras cinco localidades vizinhas. É de lá, do chamado complexo da reforma agrária, que mais de 5.600 famílias assentadas pelo Governo Federal ou em acampamentos do MST tiram sua comida —e, com o que sobra, sua renda. Sadi Gomes Amorin vive com sua esposa e dois filhos no Assentamento 8 de Junho. 64 anos, pele marcada pelo tempo, baixa estatura, fala mansa, andar desapressado, um marcado sotaque paranaense. Há pouco mais de 20 anos passava dificuldades: compartilhava uma pequena chácara com as famílias de seus seis irmãos e de seu pai. Acabavam tendo que trabalhar fora como boia fria, diarista e outras funções precárias para sobreviver. Juntar-se a outros camponeses em uma ocupação de terra, em 1997, foi a saída. “Eu estava com 43 anos e desesperado, no fundo do poço. Foi por necessidade.”

Sadi permaneceu acampado por quatro anos, até 2001, ano em que o INCRA cedeu lotes de 12 hectares —um hectare tem 10.000 metros quadros— para cada uma das 74 famílias do Assentamento 8 de Junho. A principal produção da região é a de leite, que a maioria vende in natura. “Mas também tem de grão, que a gente vende para outras cooperativas. E a parte de hortifrúti, feijão, arroz…”, explica o agricultor. Os moradores também se reuniram em uma cooperativa que fornece alimento orgânico para as escolas municipais e estaduais da região. Também vendem seus produtos na feira do centro de Laranjeiras do Sul. Com uma fonte de renda diversificada, cada família ganha, em média, 3.000 reais líquidos por mês.

A meia hora de onde vive Sadi, na altura do município Rio Bonito do Iguaçu, dezenas de quilômetros de estrada de terra adentram um imenso horizonte de terrenos e comunidades e percorrem o acampamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio, o maior de todos, onde atualmente vivem 1.240 famílias em lotes de terra divididos pelo próprio MST. A área pertence à madeireira Araupel, que mantinha o local improdutivo e havia conseguido a maior parte de seus 80.000 hectares de forma irregular, segundo a versão do movimento. Apesar do conflito, que vem dos anos 1990 e resultou em outros acampamentos e assentamentos, existe uma política de boa vizinhança com a empresa, que reflorestou uma área com pinus e eucalipto e retira sua madeira normalmente, enquanto os agricultores conseguem plantar em paz. Há seis meses, o casal Claudir Antonio e Maria Bee adquiriu o seu próprio pedaço de chão. Enquanto ele, que tem 57 anos, construía a pequena casa de madeira com sala, cozinha e dois quartos, ela, que tem 65, pegava na enxada para limpar o terreno e plantar arroz, mandioca, milho e várias variedades de feijão. Tudo orgânico.

“A princípio [o que se colhe] é para o gasto, e se sobrar a gente negocia”, explica Maria, uma mulher de estatura baixa, pele morena, cabelos grisalhos e uma voz doce que esconde quem realmente manda na família. Nascidos no campo, foram para a cidade ainda jovens para trabalhar e melhorar de vida: ele como pedreiro, ela como faxineira e outros ofícios. “A gente tinha um sonho de comprar uma chácara para ter uma vida mais sossegada no final dos tempos”, conta Claudir, um homem meio grisalho e meio calvo, magro e discreto. Quando se juntaram ao acampamento, há dois anos, não tiveram dúvidas dos motivos: “Eu disse queria fazer aquilo que meu pai me ensinou, trabalhar e viver da terra”, diz ele. Filhos e netos continuam vivendo na cidade de Beltrão, enquanto o casal cultiva seus grãos e hortaliças à espera de que o INCRA desaproprie o espaço e o transforme num assentamento oficial.

Um assentamento é apenas a última fase de um processo que pode durar anos, às vezes décadas. Começa com militantes e sem-terra do MST ocupando propriedades rurais que não cumprem uma função social determinada pela Constituição, isto é, que está improdutiva, comete crimes ambientais ou foi autuada por trabalho análogo à escravidão, entre outras irregularidades. “Todas as nossas formas de luta são pacíficas. Temos uma concepção ideológica de que a nossa força está no número de pessoas que mobilizamos. A luta armada não resolve nada”, explica Stédile, um dos fundadores do movimento.

A fase em que as famílias permanecem acampadas aguardando a vistoria e desapropriação do INCRA gera muitas desistências. É preciso união para se conseguir coisas básicas como luz elétrica e água encanada. Outras acabam se afastando do movimento com o passar do tempo. Um afastamento que, somado à entrada de igrejas evangélicas nos territórios, fez com que alguns dos agricultores acampados e assentados inclusive votassem em Bolsonaro. “Aqui todo mundo tem zap. Soube que uma das pessoas que mais se engajou para construir a escola do acampamento votou nele”, conta o militante Wellington Lenon Ferreira Lima, que também vive no Acampamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio. As pessoas são livres, lembra ele. Inclusive para contribuir ou não com 10 reais por mês para a manutenção do grupo, que depende de doações e parcerias nacionais e internacionais para manter funcionando sua estrutura.

Entre os adversários do MST estão representantes de grandes proprietários e do agronegócio como a poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) e a UDR de Nabhan Garcia. As divergências começam pela gramática. Enquanto o MST fala em “ocupações”, seus críticos preferem o termo “invasões” e julgam que há um desrespeito ao direito à propriedade privada. “Não acho que seja um grupo terrorista, mas atua na ilegalidade”, opina o professor Antônio Márcio Buainain, especialista em questões agrárias da UNICAMP. “É legitimo pressionar por uma demanda, mas o limite dessa legitimidade é a lei. E não chamar de ocupação quando na prática estou invadindo uma propriedade privada. Se está em desacordo com a lei, eu só posso fazer pressão para que ela seja desapropriada nos limites da lei”, argumenta.

Stédile rebate: “O Código Penal diz que uma invasão ocorre quando uma pessoa invade a propriedade do outro em proveito próprio, o que se caracteriza em esbulho possessório e, portanto, ele é penalizado”, explica. “Ocupação é quando é feito de forma massiva por muitas pessoas. Não para tirar proveito próprio, mas para fazer pressão política para que o Governo aplique a lei, desaproprie aquela fazenda que não cumpre sua função social, pague uma indenização ao proprietário e distribua aquela terra para reforma agrária”, acrescenta. As famílias só podem ser expulsas de um acampamento mediante uma ação de reintegração de posse autorizada por um juiz, algo que o MST teme que ocorrerá com mais frequência sob Bolsonaro. Quase aconteceu em novembro deste ano no Acampamento Quilombo Campo Grande, onde 450 famílias vivem há 14 anos nas terras de uma usina falida. A liminar acabou sendo suspensa por um desembargador.

Stédile admite, no entanto, que há momentos de radicalização. Como quando militantes invadiram e destruíram, em 2015, um viveiro de mudas de eucalipto transgênicos da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul. Naquele mesmo ano, um grupo de mulheres do movimento fez o mesmo em um laboratório da Suzano Papel e Celulose, em São Paulo. “Estavam disseminando monocultivo de eucalipto sem licença ambiental, e eram variedades de transgênicos que não estavam liberados. Claro, veio a imprensa dizendo que era laboratório, que era pesquisa”, justifica. Porém, o gaúcho admite o que chama de “erros políticos”. Por exemplo, quando ocuparam uma fazenda do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como provocação. “Também me lembro de um caso em São Paulo em que os ocupantes, além de ocupar as terras, ocuparam a casa do fazendeiro e quebraram tudo. E isso não é legal, não é a orientação do movimento”, admite.

Por episódios como esses, bastante explorados na mídia, a fama do MST é negativa. “As pessoas acham que o MST tem que ser perfeito. Somos um grupo de gente, com nossas contradições”, explica Wellington Lenon. “Às vezes um assentado pela reforma agrária só quer a terra para produzir, nem é militante do movimento. Se uma pessoa vai por conta própria na cidade para roubar, vão dizer que é do MST. Vamos todos responder coletivamente pelo seu erro”, lamenta.


A incompleta reforma agrária e seus números

A referência do MST não é a coletivização do campo que ocorreu na socialista União Soviética, mas, sim, a reforma agrária ocorrida no capitalista Estados Unidos a partir do século XIX e no resto do ocidente até meados do século XX. Lotes de terra foram distribuídos a agricultores, impulsando ao mesmo tempo o capitalismo industrial. “Antes da crise de 1930, os EUA já possuíam 1,2 milhão de tratores”, afirma Stédile. Já no Brasil fazia-se o contrário. Em 1850, a Lei de Terras instituiu que só poderiam ser proprietários rurais aqueles que tivessem dinheiro para comprar terra pública do Império, impedindo o avanço das pequenas propriedades. Até então, sesmeiros e posseiros utilizavam brechas legais para conseguir a posse das chamadas terras devolutas. Ex-escravos negros e imigrantes, aqueles que realmente trabalhavam na terra, acabaram ficando pelo caminho.

Herdeiro de várias organizações camponesas ligadas a partidos e à Igreja que foram reprimidos pela ditadura militar, o MST surgiu entre os anos de 1979 e 84, quando os diversos movimentos sem-terra autônomos em vários Estados se reuniram em um só grupo. Sob a liderança de Stédile, que tem 40 anos de militância e está atrelado ao grupo desde o início, deu o tom de uma lenta reforma agrária levada a cabo nos últimos 30 anos. Ela é feita a partir da concessão de terras públicas ou de desapropriações de terras improdutivas —mediante pagamento de indenização ao proprietário— e sua posterior divisão em lotes para distribuição. Os critérios estão estabelecidos na lei 8629/1993, que regulamenta a função social da terra determinada pela Constituição, e sofreram alterações com a lei 13465/2017, sancionada pelo Governo de Michel Temer. Até 2016, mais de 1,3 milhão de famílias foram assentadas pelo Governo em mais de 88 milhões de hectares de área, desapropriados ou cedidos pela União, segundo dados do INCRA.

Há regras para evitar uma reconcentração de terra. Os lotes dos assentamentos, que em regra continuam sendo da União, podem ser passados de pai para filho, mas não podem, em tese, ser comercializados. Se uma família desiste da terra, o Governo deve assentar outra em seu lugar. Há dificuldades de fiscalização, algo que o INCRA diz estar tentando contornar com meios tecnológicos. Em 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a apontar indícios de irregularidades diversas em cerca de 500.000 assentamentos, como “sinais exteriores de riqueza” ou assentados eleitos para cargos públicos ou que se tornaram servidores. Os critérios e resultados apresentados foram contestados por parlamentares da esquerda, que consideram que o sucesso da reforma agrária também se expressa no aumento do poder de compra e na melhoria da educação das famílias.

O auge das desapropriações ocorreu durante o Governo FHC (1995-2001). Época de grandes marchas e ocupações que pressionavam o Executivo, assim como de um incidente que marcou a história do grupo: o Massacre de Eldorado de Carajás, no Pará. Em abril de 1996, milhares de sem-terra que estavam acampados em uma fazenda faziam uma manifestação para pressionar por sua desapropriação. Foi quando a Polícia Militar interferiu e matou 19 pessoas. O episódio sensibilizou a opinião pública —o tema da reforma agrária foi inclusive abordado na novela O Rei do Gado, da TV Globo— e acelerou os decretos de desapropriação. Só em 1998 mais de 2,2 milhões de hectares foram desapropriados —um recorde— e mais de 100.000 famílias foram assentadas.

Já os governos petistas —apoiados pelo grupo— aumentaram as políticas públicas e leis em benefício ao pequeno agricultor. Mas foi também quando os decretos desapropriatórios começaram a desacelerar. A maior cifra é de 2005, quando 976.185 hectares foram adquiridos pelo Governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2015, a gestão Dilma Rousseff não desapropriou nenhum imóvel. A política só foi retomada no ano seguinte, às vésperas do impeachment, quando 35.089 hectares foram desapropriados. Mais dados: se em 2006 mais de 135.000 famílias foram assentadas —outro recorde—, em 2017 o Governo Temer não concedeu nenhum lote de terra. O MST calcula que a reforma agrária ainda precisa chegar para 4 milhões de famílias. “Vivem hoje como assalariados, arrendatários, meeiros, ou vivem nas periferias de pequenas cidades e trabalham em fazendas”, conta Stédile. 

Com a lei 13465/2017, o Governo Temer simplificou a venda de terras dos assentamentos para as famílias assentadas, sob a justificativa de que o título de propriedade garante segurança jurídica e acesso a programas de crédito, explica Leonardo Góes, presidente do INCRA. O MST teme que isso possa aumentar o envidamento das famílias e a venda dos lotes, resultando em mais concentração fundiária. Goés admite que a maior demanda por terras se concentra no Nordeste do país, enquanto os conflitos por recursos naturais se dão majoritariamente no Norte, onde está localizada a maior parte da Amazônia, rica em minérios e que tem sentido a pressão da ampliação da fronteira agrícola. Isso se traduz em sangrentos conflitos no campo: em 2017, a Comissão Pastoral da Terra contabilizou 71 mortes de sem-terra, indígenas e ativistas. Foi o maior número em 14 anos. E isso sem contar as ações de despejos, ameaças e prisões. Nos últimos 30 anos, foram mais de 1.600 assassinatos.

O Brasil vive uma contradição. Dados do censo agropecuário do IBGE indicam que cerca de 1% do total de propriedades rurais ocupa aproximadamente 50% da área rural do país. E a concentração não para de crescer. Ao mesmo tempo, com uma desindustrialização que se acentua ano após ano, o Brasil é dependente do cada vez mais moderno agronegócio e da exportação de commodities dessas imensas propriedades agrícolas para crescer, gerar emprego e distribuir renda. Segundo a CNA, a agricultura contribuiu para 23,5% do PIB em 2017. O problema é que, com a mecanização do campo, nos últimos 11 anos caiu em 1,5 milhão o total de trabalhadores em propriedades rurais. Hoje são 15 milhões, enquanto em 1985 eram mais de 23 milhões. Já o número de tratores não para de subir.

Para o professor Buainain, o atual modelo de reforma agrária deveria ser interrompido por considerar que ele é caro, já cumpriu sua função e que existe uma mudança de público no meio rural. “No passado havia um grande número de agricultores que trabalhavam na lavoura, na modalidade de parceria ou pequeno arrendamento, que tinham pouquíssima ou nenhuma terra”, explica ele. “Este público mudou completamente. Um boia fria de hoje é um trabalhador braçal, mas nunca foi um agricultor. Perdeu o vínculo com a terra, com a produção”, opina. Ele também questiona a natureza da improdutividade das terras de hoje. “Antes, refletia o absenteísmo, o atraso e o rentismo dos proprietários. Hoje, são improdutivas por razões econômicas, porque os investimentos necessários para torná-las produtivas superariam o retorno. Estamos distribuindo terras ruins e mal localizadas para gente que tem condições ainda piores de produzir e enfrentar as condições de mercado”.

Da produção com agrotóxicos a agroecologia e agroindústria

O MST não só considera que a reforma agrária deve continuar —Stédile acredita que podem coexistir diversos modelos e tamanhos de propriedade—, como atualizou seu programa em meados dos anos 2000. As grandes ocupações e marchas diminuíram, mas o movimento passou a advogar pela agroecologia —técnicas para produzir alimentos orgânicos— e agroindústria, em paralelo a investimentos em educação em todos os níveis e capacitação técnica no campo. “O grito de ordem ‘terra para quem nela trabalha’ foi se superando pelas novas realidades”, explica Stédile. Há cada vez mais assentados e acampados incorporando esse novo conceito e conseguindo o selo de certificação de produtos orgânicos. O casal Claudir e Maria Bee é um deles. “É voltar ao tempo do [meu] pai, tudo natural”, conta ele. A maioria ainda trabalha com agrotóxicos porque assim aprenderam e se acostumaram. Mudar para a agroecologia requer aprendizado e técnicas, algo que o grupo tenta suprir através de seus braços educativos, como o Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia (CEAGRO). “Não adianta você querer plantar bastante. Você tem que plantar pouco e ter um produto bom”, ensina Claudir.

No sul do país isso já é uma realidade. O Instituto Riograndense do Arroz (IRGA), do Governo do Rio Grande Sul, conta que os assentados do MST são os maiores produtores de arroz orgânico da América Latina. A estimativa do grupo para a safra 2017-18 era de 24.000 toneladas vindas de 501 famílias que vivem em 21 assentamentos de 16 municípios gaúchos. Parte da produção é vendida para empresas como a Solstbio para ser exportada a países como EUA, Alemanha, Espanha e Nova Zelândia. Outra parte da produção —que não é só de arroz— é comercializada em feiras e mercados sob o selo Terra Livre em cidades e capitais. Em São Paulo, o grupo abriu há dois anos a loja Armazém do Campo no centro da cidade, que comercializa produtos vindos dos assentamentos e serve como uma espécie de vitrine do movimento para a classe média urbana.

Além disso, cooperativas formadas por assentados como Sadi fazem com que o produto orgânico chegue na merenda de várias escolas públicas municipais e estaduais. A lei 11.947, sancionada em 2009, estabelece que 30% dos recursos financeiros “deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas”. Já no âmbito municipal, cidades como São Paulo ainda criaram leis que destinam parte do orçamento para uma alimentação livre de agrotóxicos na merenda escolar. “No sul do Piauí serviam um pacotinho de bolacha mequetrefe americana que chegava de caminhão, um alimento que não tinha nada a ver com a realidade daquelas crianças. Com essa nova política, as prefeituras passaram a comprar dos assentados uva, melancia, ovo caipira…”, conta Stédile.

É através das cooperativas que os assentados também conseguem comprar máquinas e tratores e desenvolver a agroindústria. Significa não vender apenas a matéria-prima, mas sim agregar valor ao produto e aumentar a renda das famílias. “Atrai o jovem que vai para a universidade e já não pega na enxada, dá emprego para as mulheres, te conecta com o resto da sociedade. Quem vai dar a máquina? A indústria. Quem compra o leite? O supermercado”, explica Stédile. Algumas cooperativas vendem produtos como leite orgânico, cachaça ou queijo. Mas para dar certo e se disseminar, também requer capacitação técnica. Algo que o MST tenta suprir a partir de cursos em gestão de cooperativas e parcerias educacionais, como a que possui com a espanhola Mondragon, uma das maiores cooperativas do mundo.

Para o economista Adriano Paranaiba, mestre em agronegócios, professor do Instituto Federal de Goiás e membro do Instituto Mises, os assentados do MST, abertamente de esquerda, são os verdadeiros capitalistas do campo: “Adotaram o capitalismo, que toma forma através da economia colaborativa, cooperativas, pequenos empreendedores e empresários e que precisam da criatividade para que seu capital aumente”, explica. E continua: “Dentro das cooperativas de assentados, você tem essa experiência de livre mercado, de livre cooperação, baseada na propriedade privada onde você tem a liberdade para negociar seus excedentes”. Stédile discorda. Afirma que o camponês não é nem capitalista nem socialista. Possui uma lógica própria “que se baseia em trabalho familiar e vida comunitária, na sobra ao invés do lucro, para primeiro produzir alimentos para si e depois vender o excedente”. E acrescenta: “Ele nasceu no feudalismo, perdurou no capitalismo comercial, sobreviveu e se integrou ao capitalismo industrial, sobreviveu no socialismo…”. Além disso, argumenta que a lógica capitalista prevê a acumulação de riquezas nas mãos de poucos. Já as cooperativas de assentados resultam em progresso econômico para as famílias e têm por objetivo fazer a riqueza circular localmente.

O professor Buainain chama atenção para o fato de que nem todos os assentamentos têm o mesmo desempenho. Muitos continuam pobres, diz ele. “O determinante não é a terra, é a capacitação técnica, de investimento, conexão com mercados, empreendedorismo. Há farta evidência que os investimentos maciços em educação de qualidade são uma melhor resposta do ponto de vista redistributivo do que redistribuição de ativos”. O agricultor Sadi vê a questão da seguinte forma: “Há assentados que ficaram parados no tempo. Depois que conquista a terra, acha que é o suficiente. A gente costuma dizer que a primeira coisa é a terra, mas não basta isso. Tem que ter crédito, educação, qualidade de vida… E isso tudo a gente consegue através do movimento social”.

Das escolas itinerantes à universidade federal

Para viabilizar os recursos para organizar a produção, as famílias também se organizam em cooperativas de crédito que oferecem empréstimos com juros abaixo do mercado. Mas não basta. O desafio constante está na educação, através da qual esses acampados e assentados se aprimoram tecnicamente e seus filhos podem vislumbrar um futuro melhor, mais livre e com mais renda. Não à toa uma das primeiras medidas tomadas pelas famílias ao ocupar e acampar em uma terra é construir uma escola. No Paraná, uma lei estadual reconhece esses centros de ensino como escolas itinerantes e fornece recursos e professores concursados. A base curricular nacional é seguida, ainda que o movimento adote métodos próprios para ensinar aos alunos de acordo com a realidade do campo em que vivem. Há quem diga que os alunos recebem doutrinação socialista dentro delas. “Bobagem, aqui na escola temos inclusive professores que votaram no Bolsonaro. Mas que gostam de nosso método de ensino”, explica Ana Ribas, diretora da escola Herdeiros do Saber, onde cada chalé de madeira é uma turma e todas formam um imenso círculo, como se estivessem olhando uma para a outra, em torno de um pátio. Depois que o assentamento é formalizado, esses centros de ensino se transformam em instituições públicas municipais e estaduais convencionais.

Uma das demandas era com relação ao acesso a Ensino Superior, muito concentrado nas capitais e pouco presente no interior dos Estados. E a conquista veio em 2009 com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). São cinco campus, um em Santa Catarina, dois no Rio Grande do Sul e dois no Paraná. Um deles em Laranjeiras do Sul. Dentro do Assentamento 8 de Junho. Possui sete cursos: Agronomia, Engenharia de Alimentos, Aquicultura, duas licenciaturas em Educação do Campo, Pedagogia e Economia. A instituição também oferece cursos de alternância, em que os estudantes passam parte do tempo em sala de aula e outra parte em seus territórios aplicando os conhecimentos. “A universidade veio porque, além de ser uma área descoberta, tem um público enorme quilombola, sem-terra e indígena que nunca conseguia acessar o Ensino Superior porque tinha que sair daqui. Os cursos foram pensados no sentido do desenvolvimento regional”, explica a professora e educadora Ana Cristina Hamel. Ela explica que 55% dos estudantes possuem algum tipo de auxílio transporte, alimentação e até moradia. Em seu curso de Educação do Campo, 53% são indígenas e 20% são assentados.

Apesar da influência do MST, Hamel lembra que a universidade é pública, aberta a todo tipo de estudantes via ENEM e também com professores vinculados a ideologias de todo o tipo. “As disputas e embates presentes na sociedade também estão em nossas áreas. A UFFS tem vários professores que, embora soubessem do caráter da instituição, querem usar em suas pesquisas o agrotóxico para fazer pesquisa para o agronegócio”, explica. “O MST precisa fazer esse diálogo na sociedade e disputar. Na escola, trabalhamos outra matriz de campo, a agroecologia e a cooperação, para que a criança possa entender que existe outra possibilidade de produzir sem tantas consequências para o planeta e sem se envenenar”.

Com 19 anos, Jaine Amorin, filha de Sadi, cursa economia na UFFS. Vai caminhando de sua casa até a sala de aula. Um dia, herdará o lote de seu pai e pretende dar continuidade ao seu trabalho. Mas também quer ser parte do futuro do MST, contribuindo “aonde estiver a demanda”. A jovem, loira e de pele muito clara, nasceu quando sua família ainda estava acampada. Foi para o lote cedido pelo INCRA com apenas dois anos. Hoje, trabalha no setor de comunicação do grupo e tem ciência dos desafios futuros. “Tentar reconquistar pessoas que se afastaram do movimento, principalmente as próprias famílias assentadas, e tentar fazer políticas, dentro das próprias cooperativas, para manter os jovens na militância”, argumenta. “E também mostrar que o grupo não é criminoso, mas sim de luta, que as famílias buscam o mínimo, que é a sobrevivência, um lugar para morar”.

Hoje aposentado, Sadi mostra com orgulho as plantações no fundo de sua casa que mantém para a subsistência da família. Tudo orgânico. O que mais mudou em sua vida desde que decidiu acampar e lutar por um pedaço de terra? “A liberdade, você tem o direito de escolher o que você quer. Se você está trabalhando fora, como empregado, é imposto o que você tem que fazer. E aqui, além de trabalhar, você produz o que consome, com a qualidade que você deseja para a sua família. Todos aqui têm uma qualidade de vida boa, têm seu carro…”, conta. Maria Bee, apesar de ainda estar acampada, opina o mesmo: “A gente se manda, é a liberdade que nós temos aqui. Você planta o que gosta, faz o que gosta. Na cidade você tem que fazer o que a situação obriga. E o custo de vida lá está difícil. Aqui a gente tem fartura, tem galinha, ovos, porco… A gente compra muito pouca coisa. Para nós foi uma bênção”.

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