Diário: Indígenas ocupam av. Paulista por terra, florestas e justiça

Contra atrocidades como grilagem, extermínio e religiosos extremistas, manifestação reúne pequena mas diversa multidão. Sob holofotes da grande cidade não houve violência

.

Por Gavin Adams. Fotografias: Alice Vergueiro

31 de janeiro

Saí na estação Trianon-MASP do metrô para o Ato “Sangue Indígena, Nenhuma gota a mais”. Eram 17h:30.

Caminhei até o museu e vi povo no vão. O dia estava claro, quente e sem ameaça de chuva. Já tinha bastante gente, talvez umas mil. Vi gente de todas as idades e de todas as cores.

Percorri o espaço e dei uma olhada geral.

Vi indígenas de várias etnias, cada um com seu jeito. Tinha de tudo, desde o mais modesto conjunto havaiana/bermuda/boné até corpos totalmente paramentados com peças e pinturas tradicionais. Os fotógrafos tinham um prato cheio, já que muitos retratos interessantes estavam lá à espera de serem tomados. Além disso, muita gente não necessariamente indígena também pintou o rosto e o corpo, o que dava um ar festivo ao encontro.

Uma roda de indígenas dançava e cantava ao som de um violão. Um dos moços indígenas vestia uma camiseta onde se lia: “Eu nunca vou te abandonar”. Já uma outra roda tinha 12 pessoas sentadas à volta de um pano redondo, e meditavam de olhos fechados. Não eram indígenas e o pano trazia a mensagem “Demarcação Já”.

Anotei algumas faixas:

“Mulheres indígenas, luta e resistência”

“FUNAI é da Justiça”

“Nhãderu nos proteja”

“Judeus pela Democracia”

“Todo dia é dia de índio”

Quando anotava a faixa “Sem pacto com a mata o céu vai cair”, uma moça fotógrafa me falou “Nossa, acabei de ler isso hoje!”, referindo-se ao livro de Davi Kopenawa, que traz a frase.

Vi que a Fanfarra Clandestina estava lá, e nova oportunidade fotográfica apareceu na forma de um moço barbado que trazia seu gato nos ombros.

Encontrei a fotógrafa A e conversamos. Também AT, G e M.

Vi os cartazes “Respeita a tradição! Sangue indígena, nenhuma gota a mais. Missionários não!”, “FUNAI inteira e não pela metade”, “FUNAI no MJ” e “Kopenawa para Xamã do Brasil”.

Vi também as faixas:

“O Brasil foi invadido, não foi descoberto. Nossa história não começa em 1988”.

“Ruralista, desbravador, latifundiário, garimpeiro, usurpador, madeireiro, grileiro canalha”

“Força indígena é vital”

“NHANHANGAREKO Planeta RE”

“A vida na Vale nada”

“Muita terra pra pouco fazendeiro”

Encontrei M, que é do campo indigenista. Perguntei qual era o clima atual na área e ele resumiu: “os indigenistas estão em pânico, mas os indígenas não. Pode parecer um clichê, mas os índios têm uma visão mais longa da luta e sabem que vão sobreviver. Está ruim, já esteve um pouco melhor, mas estão preparados para o longo prazo”. Contou que a assinatura de um acordo de compensação ambiental grande de uma empresa, feita com os índios, mediada por um ONG e aprovada na FUNAI, foi sendo postergada depois da eleição e acabou que não foi realizada. As mineradoras, madeireiras e o agronegócio estão agora à vontade para não cumprir ou fechar acordos, contando com o novo ambiente político.

Falou também das ONGs cristãs missionárias que atuam em áreas indígenas praticam o evangelismo predador. A ministra Damares é dessa cultura, e que a história do sequestro de Lulu não é absurda e que tem de fato um processo em andamento contra a ONG da ministra. Ele disse que o infanticídio (acusação que justifica o sequestro de crianças indígenas) é um evento raríssimo na cultura indígena.

Lembrei de um caminhoneiro que conheci no ano passado. Ele tinha participado das mobilizações de sua categoria em 2018. Ele disse que na juventude tinha sido matador para seu patrão fazendeiro no Nordeste, de onde é natural. Ele afirma ter feito um pacto com o demônio, no passado, mas que hoje anda em Jesus. Ele contou que sua avó era “índia brava. Tiveram que amarrar no toco meses até ela amansar”.

Fiquei muito impressionado com o relato dessa prática ainda recente de sequestro e cativeiro de indígenas., especialmente mulheres, na formação do Brasil.

Chegou o companheiro E e nos cumprimentamos.

Vi um grupo de jovens do Greenpeace, vi bandeiras do MTST, PCB, PSTU, CONLUTAS-CSP, ANEL e UJR.

Anotei mais faixas:

“Jaraguá é Guarani”

“A luta continua até todas as terras indígenas serem demarcadas”

“Sangue indígena: nenhuma gota a mais. #janeirovermelho #demarcaçãojá”

“TEKOÁ PARANAPUÃ Terra Sagrada”

“Exigimos o retorno da FUNAI para o Ministério da Justiça”

“Stop indigenous genocide”

“Grupo mensageiro paranapuã. Demarcação Já”

Eram 18h:15 quando chegou o carro de som. Até então, prevaleciam as rodas de conversa e um ou outro megafone de baixa potência.

No geral, o carro de som trouxe um outro tom ao ato. As falas mais discursivas e gritadas dominaram daí para frente.

Alguns amigos criticaram a falta de pautas mais abrangentes e inclusivas, e também a estética trazida pelo carro de som: as falas muito gritadas de níveis distintos de articulação e comunicação. Também apontaram que a presença hoje não era massiva, o que enfraquecia a pauta.

Avaliei ao final que estavam presentes quase duas mil pessoas.

Encontrei G, G, L e A. Esta última atua pelo PSOL em Itapecerica, onde tenta defender um terreno vizinho a uma pedreira da Votorantim, que extrai minério de lá. Não apenas uma importante reserva de Mata Atlântica está em perigo, mas também a saúde dos trabalhadores da empresa está ameaçada devido ao silício que se desprende da rocha e assenta sobre a terra. Inalado, o silício se aloja no pulmão. Ela já sofreu duas tentativas de assassinato.

Dei um giro com G quando, às 18h:30, o povo tomou a avenida. Uma roda se formara ao redor de uma mulher que falava ao microfone, mas não era possível ouvir de onde estávamos. Checamos a situação da polícia e parecia que era bem tranquila. Poucas viaturas e soldados, nenhum escudo ou atirador à vista. Mas ouvi alguém me contar que a PM só tinha dado autorização para ocupar 200m da avenida.

Aos poucos, o ato tomou a formação de passeata, com faixas posicionando-se à frente, deixando o carro de som mais para trás. Vimos um grupo de meninos indígenas fumando um cachimbo. Um deles, de cabelo hipster, vestia uma camiseta do Black Sabbath. Vi também, em outras pessoas, uma camisa do Corinthians, uma do Fluminense e outra camiseta que trazia “Não chegamos a nenhuma conclusão. Profa. Adri”, e ainda outra “School ruined my life”.

Vimos um grupo de indígenas fazer uma linha, uma espécie de linha de frente, avante de todos os outros.

Várias faixas e cartazes agora eram visíveis, segurados ao alto:

“Índio vivo, floresta em pé”

“De natureza política”

“Contra o genocídio”

“Damares levou Lulu”

“Floresta de pé, fascismo no chão”

“Somos todos indígenas”

Conversava com E e ele comentou sobre a cena à nossa volta: uma multidão de indígenas e apoiadores pintados, ao som de suas canções e chocalhos, tudo isso emoldurado pelos altos prédios da avenida iluminados pela luz que agora fraqueava.

Trouxeram duas faixas longas e vermelhas daquele tecido que é tão fino que parece papel. Estenderam-nas ao longo da multidão, ficou bonito.

M e J vieram nos cumprimentar. Apareceu também M, que não víamos faz tempo. Comentamos que o mais legal deste ato parecia ser o encontro com gente legal e da luta, gente que não sempre aparece em outros tipos de manifestação. O leque hoje parecia mais amplo.

Reparei que um edifício próximo realizava algum evento com a subcelebridade Palmirinha, anunciado através de um cartaz e de uma foto sua de corpo inteiro, recortada no papelão.

Encontrei E e conversamos. Ele agora está envolvido com o CAAF Centro de Arqueologia e Antropologia Forense, da UNIFESP. Este centro recebeu as ossadas de assassinados políticos da vala clandestina de Perus e conseguiram identificar duas pessoas. Disse que o Centro tem agora segurança institucional. Fiquei tocado que ele leia este diário assiduamente.

Vi as bandeiras da Unidade Classista, do SINTRAJUD, da APEOESP e das Mulheres Em Luta CSP-CONLUTAS. Vi uma moça com uma bandeira muito curiosa. Fui perguntar e ela disse que era o pavilhão da cidade de Macapá.

A passeata evoluía muito devagar. O companheiro E recordou que as passeatas indígenas andam mesmo sem nenhuma pressa. Eram 19h:30 e ainda não tínhamos passado da rua Peixoto Gomide. Concordei com G quando ela disse que assim era bom, pois os mais velhos, como nós, podíamos acompanhar. Meus pés ainda doíam da intensa caminhada do MPL ontem.

Passou V da Fanfarra e pude confirmar que a antiga Fanfarra do MAL, que era uma fanfarra de protestos, já se desfez e a banda que tenho visto é a Fanfarra Clandestina. Ela confirmou que eles tinham tocado no Largo da Memória, no centro da cidade, meses atrás. Contou que era um festival internacional de fanfarras, o HONK, que acontece em São Paulo e no Rio. Ela apontou que as fanfarras têm grande tradição de esquerda em países de língua inglesa, e que este festival era organizado por esse pessoal.

Eram 19:45 e estava perto do carro de som. As falas mencionaram Dória e Bolsonaro. “Nós iremos morrer, mas vamos resistir”. Um grupo cantou e dançou no carro de som uma canção bela, cuja letra o povo parecia conhecer: “Quem deu esse nó soube dar.”

Anunciaram a presença de Criolo e do Racionais MC.

Eram quase 20h quando decidi deixar o local e seguir meu caminho. A passeata não tinha chegado ainda até a rua Ministro rocha Azevedo. Caminhei com E até a estação Consolação. No caminho, vimos o banco Safra protegido por 9 seguranças e 4 soldados da Guarda Municipal.

Vi uma camiseta que trazia “Só mais um pedido”.

Tomei o metrô e fui para casa.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *