Os mortos que nós desprezamos

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A incrível (e ignorada) história de uma massacre que os EUA cometeram no Yêmen — acusando a Al Qaeda e pressionando pela prisão do jornalista que denunciou a verdade

Por Paulo Nogueira, em seu blog

Em dezembro de 2009, o jornalista iemenita Abdulelah Shaye foi a uma aldeia em seu país para investigar a morte de dezenas de pessoas num bombardeio. A alegação do governo do Iêmen era que se tratava de terroristas da Al-Qaeda, o grupo de bin Laden. As autoridades também disseram que o ataque foi obra do exército do Iêmen em sua guerra ao terror.

O que Shaye descobriu foi algo bem diferente.

Crianças e mulheres tinham sido mortas, e não terroristas. Ele também encontrou destroços em que estava escrito “made in USA”. O Iêmen não tem as armas utilizadas no bombardeio.

Fora, na verdade, uma ação americana, não do Iêmen. E o meio foram os controvertidos drones, os aviões teleguiados que disparam mísseis sem que haja tripulação. Um dos documentos vazados pelo Wikileaks sobre as atividades da diplomacia americana mostrava que a Casa Branca combinara com o Iêmen que este assumiria a responsabilidade em caso de ataques como o da aldeia para a qual fora, como jornalista, Shaye. Isso evitaria não só desgaste de imagem como a economia de dinheiro em indenizações por mortes de inocentes.

O furo de Shaye lhe valeu duas coisas. A primeira, aplausos entre os iemenistas, cansados de um governo corrupto, ditatorial e subserviente aos Estados Unidos. A segunda, a cadeia. O governo do Iêmen acusou-o de vínculos com a Al-Qaeda e o prendeu.

Recentemente, ele seria libertado, dado simplesente não haver prova de que ele pertença à Al-Qaeda. A informação chegou ao presidente americano Barack Obama. Obama pediu ao governo iemenita que mantivesse Shaye preso. Isso levou o jornalista americano Jeremy Scahill, editor de assuntos de segurança da revista The Nation, a viajar para o Iêmen, de onde escreveu um artigo em que pergunta: “O que leva o presidente Obama a manter um jornalista preso no Iêmen?” Scahill define Shaye, que ele já conhecia, como um jornalista investigativo “corajoso e de opiniões independentes”.

Dias atrás, a prestigiosa rede de mídia Jazeera, bancada pelo governo do Catar, dedicou um programa ao caso. O objetivo é dar dimensão internacional à história. É o mesmo que Scahill e a revista Nation estão fazendo nos Estados Unidos. No mundo contemporâneo, jornalistas presos valem muita indignação se, como disse Scahill, se tiverem passaporte ocidental. Não é o caso de Shaye.

Da mesma forma, os inocentes mortos no Iêmen – ou no Afeganistão, ou no Iraque – têm escasso valor, quando comparados aos inocentes mortos no Ocidente. São vítimas invisíveis, ignoradas no mundo — choradas apenas num canto que para nós, ocidentais, não é nada.

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2 comentários para "Os mortos que nós desprezamos"

  1. Stephanie D'Agnes disse:

    Os Estados Unidos sempre, sempre pisando na bola.
    “Da mesma forma, os inocentes mortos no Iêmen – ou no Afeganistão, ou no Iraque – têm escasso valor, quando comparados aos inocentes mortos no Ocidente. São vítimas invisíveis, ignoradas no mundo — choradas apenas num canto que para nós, ocidentais, não é nada.”
    Excelente!

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