Breve exame da história do cristianismo revela: construção suntuosa de Macedo indica, muito mais que megalomania, possível deriva fundamentalista do sistema
Por Hugo Albuquerque, no Descurvo | Imagem: Viktor Vasnetsov, Os quatro cavaleiros do apocalipse
O Novo Brasil é uma terra curiosa. Libertação e servidão espreitam, ambas em potência máxima. Fato emblemático dos novos tempos foi
a inauguração do “Templo de Salomão” em São Paulo, gigantesco templo maior da Igreja Universal do Reino de Deus: a obra, feita ao custo de centenas de milhões de reais, reuniu em sua inauguração a presidente da república, o governador do estado e o prefeito municipal, além de outras autoridades. Na terra dos estádios padrão-FIFA, tem-se agora o equivalente na forma de templo “cristão”. Isso não expressa apenas um fenômeno cultural, em um sentido raso, ou um evento político e comercial, mas algo mais profundo.
Nada disso é à toa: no momento em que uma expressão do cristianismo faz um novo e espetacular movimento no Brasil —
com repercussão pelo mundo todo –, isso envolveu justamente a edificação de sua nova sede. A morada,
o habitat, é central ao cristianismo desde sempre. Porque a diferença entre o cristianismo primitivo e o institucional é a liberação que o primeiro tinha em relação ao confinamento e, em sentido inverso, a dependência do segundo em relação às edificações suntuosas. Isso é parte de uma história importantíssima.
Como sabemos, o cristianismo foi o bom encontro entre as tradições heleno-romanas e judaicas, produzindo uma resultante nova, libertadora, anti-imperial. Cristo e seus apóstolos pregavam nas ruas. E faziam uso do léxico político: Igreja e assembleia são equivalentes na etimologia, pois ambas vêm da palavra grega ekklesia, isto é, os encontros públicos nos quais os cidadãos apresentam demandas à pólis. Em Roma, o mesmo se chamava comicius. O cristianismo, em sua luta anti-imperial, não tornou a política religiosa, ao contrário, ela ativou a religião colocando-a em sintonia com a realidade política existente.
As coisas mudam quando o Império Romano absorve o movimento que lhe contestava mais agudamente. O cristianismo se torna parte da estrutura imperial, em tempos que o velho culto público greco-romano não dava mais conta de legitimar um Império em frangalhos. A partir daí, as assembleias não encontram mais seu lugar na praça, nem nas reuniões livres na clandestinidade, ao contrário: é em edifícios suntuosos que os cristão passam a se reunir. Afinal, as próprias assembleias no Império são representações feitas em basílicas: edifícios que substituíram as velhas ágoras colunatas, sedes por excelência das velhas assembleias de cidadãos livres.
Na falta de basílicas, o cristianismo se reunia em paróquias, palavra que em grego significa “casa vicarial”, isto é, “casa que substitui [uma basílica]”. Isso não é só simbólico: significa a passagem do cristianismo da política para a economia. A organização cristã passa a se dar, em toda parte, em termos econômico-administrativos (como bem observa Agamben em o Reino e a Glória): “bispo” é a palavra portuguesa que vem de “episkopo”, administrador. A racionalidade da casa, das regras absolutamente factuais e verticais que caracterizavam a casa do mundo antigo passam, não à toa, a ordenar o cristianismo.
A passagem da praça pública para o ambiente doméstico cria, obviamente, um cristianismo domesticado. Não é apenas uma nova forma de físico-geográfica de culto, mas um realinhamento que implica em uma nova prática. Se o mundo antigo é feito da dualidade entre a casa e a cidade, a oikia e a pólis, ambas com ordens próprias, complementares e, ao mesmo tempo, antagônicas, o mundo medieval é outro: não há mais cidade, apenas os feudos que são, na prática, “casas grandes” e a religião confinada — a ordem econômica, enfim, triunfou, com a política e o direito reaparecendo apenas nas fissuras desse sistema.
Talvez por isso, o fato mais relevante em matéria de cristianismo foi, vejamos só, as reformas cristãs católicas do século 19 e 20 e o fortalecimento de um modelo pastoral que, mais tarde, desembocou na teologia da libertação. Pela primeira vez desde o Concílio da Niceia se discutiu o embate entre a “hierarquia” — a instituição — e os fiéis — em obra social, espalhados em comunidades eclesiais e pastorais. Tal como como o cristianismo primitivo, e fiéis ao evangelho, misticismo e política passaram novamente a andar de mãos dadas. Daí a reação, violentíssima, da própria hierarquia católica e do protestantismo, contra isso. Do novo catolicismo conservador à teologia da prosperidade, dos tele-evangelistas americanos e da Igreja Universal, se fez de tudo contra isso.
Mas isso não é uma história de infidelidade a uma suposta tradição cristã pura: como bem observou
Deleuze ao comentar D.H.
Lawrence, nem só dos evangelhos se fez o cristianismo, ele também se fez do apocalipse, o fecho curioso e antitético da trama. E se os evangelhos são uma narrativa sobre fatos históricos, ou pretensamente, o apocalipse é profecia pura, isto é:
projeção. E a projeção, mais do que a subjetivação ou a objetificação, é a parte realmente “ideológica” de uma narrativa. Ela visa tão somente a influenciar, ela é pura prescrição. É no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de messias que chama os outros de “irmãos”, ele se torna um soberano vingativo que irá decidir sobre a vida e a morte absolutas. O horizontal se torna vertical, mantendo uma contradição em termos tão absurda quanto aquela havida entre Paulo e Pedro.
O apocalipse é central no pensamento ocidental. É lá que nasce uma filosofia do juízo [final], uma filosofia baseada no julgamento — logo, incapaz de aceitar uma diferença intensa para supô-la apenas na extensão e, aliás, pela ação de uma força externa, transcendente e implacável. Só a autoridade suprema, que combina também o império e o poder, pode diferenciar o joio do trigo, isto é, pode criar, cindindo e hierarquizando, negando a singularidade.
Voltando ao Brasil, não é à toa que a teologia da prosperidade 2.0 recorra ao Templo de Salomão, uma imagem tão central no texto do apocalipse. É ali que se julga de maneira final, separando os bons que habitarão o céu (a cobertura dos prédios) e o inferno (as prisões), de uma maneira absolutamente utilitarista, fluida, na qual quem está em cima estará sempre em risco de queda e, por outro lado, os caídos poderão ascender — desde que paguem continuamente o seu naco para a intermediadora divina, a Igreja e seu mandatário maior, o bispo Edir Macedo.
Obviamente, o modelo da IURD, gigantesco, é uma absurdidade para o Sistema tal como ele existe. Mas o fato de, mesmo assim, ela prosperar e crescer, sendo um sucesso financeiro e um fenômeno político capaz de amarrar as principais lideranças políticas, significa uma coisa: trata-se de um arcaísmo reservado pelo mesmo sistema para, caso for preciso, vir à tona. No momento em que a democracia liberal se torna um discurso cada vez mais frágil, sendo cada vez menos capaz de administrar a dívida e organizar o trabalho, a possibilidade do discurso “fundamentalista cristão”, na forma da teologia da prosperidade, se tornar o rótulo da vez do Sistema é cada vez mais real. Além de sua viabilidade econômica em si, ele se torna um gigantesco ativo que poderá, tão logo, ser bem mais que um agregador de votos imediato.
O cristianismo, em sua exacerbação, se descristianiza e desevangeliza, a subsunção ao juízo final elimina o Cristo e deixa apenas a dor da Cruz.
Que as religiões são um dos negócios mais rentáveis do mundo, assim como o comércio de armamentos, a fome , as doenças e os bancos, não temos dúvida, até aí tudo bem. É da natureza humana a crueldade. A coisa começa a complicar, quando as liberdades individuais passam a ser ameaçadas por fundamentalismos. O Brasil às duras penas conquistou um pouquinho desta
liberdade, ao longo dos séculos. Recentemente estamos respirando um ar
de Nação Livre e Soberana, perante o mundo. Que os religiosos acreditem
em A, B, C…milagres, renascer, reencarnação, tudo bem, têm todo o direito,
inclusive garantido pela nossa Constituição, que diga-se de passagem, é uma das mais modernas do mundo. O problema é quererem transformar uma sociedade como a Brasileira, com toda a sua diversidade cultural e étnica, num “povo fanático” , em que mulher não tem direitos iguais aos dos homens,
que a ciência não pode evoluir sem pedir a “benção” aos valores “morais???”
das religiões…como tentaram no caso das pesquisas com células troncos e
etc…etc…Isto é INACEITÁVEL, numa sociedade evoluída! Fiquem os religiosos com suas crenças, seus milagres, seus canais de mídia, seus tem-
plos humildes ou suntuosos, depende da competência de cada Empresário,
no negócio. Só não puxem a sociedade para retroceder, porque aí é guerra,
pois quem busca liberdade não aceita prisão. E na guerra quem lucra…são
os fabricantes de armas…o resto todo perde!!
A instituição religiosa por si própria é uma falácia. Esse poder exercido por autoridades ditas “cristãs” tem subjugado multidões ao explorar as fragilidades humanas. Curas, milagres são um espetáculo à parte. Mas vejamos, pelo menos, a transparência quanto as reais intenções da Igreja Universal são dadas a conhecer :” não se glorie o sábio na sua sabedoria, mas em conhecer a Deus” Jeremias. O autor deste texto tem um vasto conhecimento histórico realmente. E não apenas isso, sua análise condiz com as transformações ideológicas das pregações cristãs. Mas as ironias são terriveis indignas de um Machado de Assis.
Boa noite, este texto me trouxe dúvidas, observações e uma impressão geral sobre o texto, que listarei abaixo. POR favor, respondem as primeiras.
Dúvidas:
1-essa idéia do cristianismo primitivo não vai de encontro ao estado laico?
isto, não é uma das características da democracia??
Observações:
1- A impressao que tive é que indepedente de cristianismo primitivo ou institucionalsempre haverão pessoas/instituições mal intencionadas p/ se aproveitar disso.
2- “É no apocalipse que Cristo retorna como uma espécie de rei-juiz; de messias que
chama os outros de “irmãos”, ele se torna um soberano vingativo que irá decidir sobre
a vida e a morte absolutas. O horizontal se torna vertical” É por isso que pe. Fábio de Melo fala que acredita num julgamento final em que cada pessoa será seu juíz?
3- Não entendi: teoria da libertação e da prosperidade são o mesmo? Sim.
4-Correntes como a universal foram impulsionadas pela teologia da Libertação? Sim, pois esta prega a vivência material( no sentido marxista) da religião.
5-Qual a relação entre o texto do apocalipse e o templo de salomão? a seletividade, a hierarquia.
Impressão geral:
O autor argumenta que diante da fragilidade do Estado em desenvolver a economia, correntes provindas da teologia da prosperidade apresentam-se como instrumento para movimentação da economia através da reprogramação mental de massas que permitem que essas se tornem massas de manobra econômicas e políticas.
(ou seja criam um exército disposto a Agir de acordo com o interesse de poucos). É DIANTE dessa estrutura que a universal tem dado certo, apesar de todos os seus exageros.
Sem dúvidas, o suntuoso Templo de Salomão, uma tentativa nefasta de recriar a Casa de Deus dos tempos de outrora, inaugurado e consagrado pelo Rei Salomão, e aceito por Deus, o que consta nos registros históricos do povo de Israel, não passa de um delírio de grandeza de quem quer controle e governo.
Edir Macedo, é um grande empresário, mas ele, e nem sua denominação, refletem a realidade do Reino de Deus que Jesus Cristo idealizou quando esteve por aqui, dividindo a história.
Não é correto classificar o Cristianismo (Sistema ideológico baseado nos princípios pregados por Cristo), como sendo uma representação fidedigna de apenas uma denominação, e repito, apenas uma denominação. Valendo ainda lembrar que a Igreja Universal do Reino de Deus, pertence ao sistema doutrinário Neopentecostal, que surgiu por volta do início da década de 70. O que difere, naturalmente, por diversas razões e interpretações, do sistema tradicional e mesmo pentecostal.
Colocar o Cristianismo como um sistema que nasceu em Cristo e culminou na IURD, revela desconhecimento e análise medíocre da rica História Eclesiástica que remonta a séculos primitivos e não exatamente no início da era cristã.
Sendo assim, é bom ter um pouco de calma ao analisar milhares de anos de história, com vistas a megalomania de alguns, em meio a história de milhões. Concordo com você, diante de tal monumento e sistema doutrinário tão distante do idealizado por Jesus Cristo, mas reafirmo, eles não refletem a realidade do verdadeiro Reino de Deus, e nem os princípios de Seu Rei.