Na África, o imperialismo como de costume

Reviravoltas políticas no Sahel se inserem no cenário de guerra da Ucrânia. Juventude fala em combater a pilhagem praticada pelo Ocidente. Ultradireita espreita – e só uma agenda pan-africana popular pode reforçar soberania africana

Uma multidão reuniu-se na praça principal de Ouagadougou, Burkina Faso, um dia depois de os militares terem anunciado a sua tomada de poder na televisão estatal. Malin Fezehai/The New York Times
.

Por Boaventura Monjane, no Brasil de Fato

A agenda imperialista continua a fazer-se sentir na África através da interferência das potências globais. Não só as nações ocidentais, mas também, e cada vez mais, as nações não ocidentais e as empresas transnacionais impõem, amiúde, acordos comerciais nocivos e preconizam políticas neoliberais que prejudicam as economias locais e fomentam a dependência no capitalismo global. Essas pressões econômicas lesam a autonomia das nações africanas e perpetuam um ciclo de dependência na ajuda estrangeira.

A ascensão de governos populistas, autocráticos e não democráticos por todo o continente africano é uma tendência consternadora. Alguns desses regimes nasceram da colaboração com as potências ocidentais e o capitalismo global ou surgiram sob a influência dos mesmos e, apesar de reivindicarem virem dar poder às classes capitalistas locais, a história já comprovou que essas elites estão intimamente ligadas aos capitalistas globais aos quais servem. É evidente que essa situação não só exacerba a desigualdade, como também funciona como um travão ao progresso verdadeiro e à autodeterminação econômica das nações africanas.

Não há como negar a persistência do extrativismo como paradigma de desenvolvimento dominante no continental, um modelo que, controlado e supervisionado pelas transnacionais (TNC), consiste na exploração abusiva dos recursos minerais e, consequentemente, à acumulação de capital à custa das comunidades locais da periferia do mundo.

Na África Austral (e no Sul Global, mais genericamente), esse fenômeno manifesta-se na perpetuação de uma dependência na exportação de mercadorias, como culturas de rendimento e minerais, em detrimento de produção para responder às necessidades das populações e respeitar o ambiente. Normalmente, as empresas transnacionais beneficiam do apoio de acordos de comércio e energia que lhes facultam uma certa medida de impunidade e lhes permitem perpetrar os mais variados crimes económicos, incluindo fluxos financeiros ilícitos, evasão remuneratória e outras práticas danosas. Esses acordos proporcionam às transnacionais condições favoráveis que lhes permitem contornar as normas nacionais com o mínimo de penalizações. A anulação das condições conducentes ao exercício do poder e da impunidade das empresas transnacionais gera um meio favorável à instabilidade, ao conflito e, até, a conflagrações mais graves.

Os desenvolvimentos na África Ocidental/no Sael

O declínio das aspirações democráticas no Sael está intimamente ligado à influência de longa data do sistema françáfrica. Os interesses geopolíticos e as disputas entre o “Ocidente” e a Rússia complicam tudo, originando acontecimentos desestabilizadores como golpes de estado, por exemplo, o que ocorreu recentemente no Níger, cujo presidente, Mohamed Bazoum, foi deposto.

Embora os golpes militares contradigam claramente os princípios democráticos e não sejam recomendáveis, a situação no Níger tem contornos muito específicos. Trata-se de uma acção militar aparentemente apoiada pela população em geral, desejosa por acabar com uma relação prejudicial entre o país e a França e, portanto, que parece ter motivações legítimas. Essa ligação entre o Níger e a França, sobretudo no que respeita à exploração dos recursos minerais e, mais especificamente, ao urânio, demonstra ser a principal preocupação.

O manifesto apoio de um grande segmento da população denuncia uma insatisfação generalizada com a presença da França, cuja presença se justifica apenas e só pela necessidade dos recursos naturais, em particular, o urânio, para garantir a sua própria estabilidade energética.

Há quem sugira que uma guerra é iminente na região, desencadeada pelos acontecimentos no Níger. Com efeito, a França e algumas nações da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) suas aliadas manifestaram interesse numa intervenção militar no país, sob o pretexto de restaurar a ordem democrática e reinstalar Mohamed Bazoum no poder.

Por outro lado, o actual governo marcial no Níger e outros governos de países que sofreram recentemente golpes militares idênticos contra líderes com simpatias pela França, como o Mali e o Burkina Faso, demonstraram-se dispostos não só a intervir, mas também a ajudar o Níger a defender a sua integridade territorial, opondo-se a qualquer tentativa de interferência armada por parte do estrangeiro.

Numa declaração emitida pelo seu Secretário-geral, o Partido dos Trabalhadores da Argélia condena as ameaças de intervenção militar estrangeira no Níger, asseverando: “Conhecemos bem os interesses que subjazem ao desejo do imperialismo dos EUA e da União Europeia de intervir militarmente no Níger. Utilizam a legitimidade constitucional, tal como utilizaram a democracia e os direitos humanos como justificação para as intervenções militares criminosas na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, no Iémen e daí por diante. Para o imperialismo dos EUA e da UE, importa única e exclusivamente continuar a pilhar a riqueza do Níger, enquanto a população se vê desprovida das condições de vida mais básicas e mergulhada na mais abjecta pobreza. Importa igualmente impor a manutenção de uma presença militar multinacional no Níger”.

Não menos interessantes são as teses de uma possível intervenção do Grupo Wagner, uma empresa militar privada apoiada pelo Estado russo em defesa do regime golpista e contra a influência francesa, embora tais cenários sejam agora menos prováveis, dada a morte do respectivo líder, Yevgeny Prigozhin. A eventual deflagração do conflito na região com o envolvimento de mais de uma dúzia de países levanta sérias preocupações. A acontecer, esse desenvolvimento pode muito bem favorecer o imperialismo ocidental, dado a história nos mostrar claramente que exploração de recursos no continente africano tende a prosperar em tempos de guerra.

A insurreição da juventude

Aparentemente a apoiar os regimes pós-golpe, a insurreição da juventude nesta região reflecte uma geração que já não se dispõe a aceitar o status quo, mas, pelo contrário, procura desafiar os regimes corruptos e exigir que os seus líderes assumam as responsabilidades. As redes sociais e as plataformas de comunicação digital foram preponderantes na mobilização e galvanização dos jovens activistas dentro e fora das fronteiras, instilando neles o espírito de solidariedade e de acção colectiva.

Unindo-se para tornar a sua voz mais sonante, a juventude do Sael insta a uma governação inclusiva, a instituições transparentes e ao fim da corrupção, bem como a que se impeça a França de interferir nos assuntos internos e de saquear os recursos minerais do seu país. Os jovens organizaram mesmo acções de protesto prolongadas diante da embaixada francesa em Niamey, no Níger, que culminaram na “ocupação” e destruição das instalações.

A insurreição da juventude na África Ocidental e no Sael atesta bem o poder da acção colectiva e da crença de que o futuro da região está nas mãos da sua população juvenil. Apesar de estar a decorrer, a luta já marca um momento decisivo na história da região que traça o caminho para uma sociedade mais democrática, inclusiva e justa.

Mas subsiste a preocupação. Se não forem bem orientados do ponto de vista ideológico, estes jovens poderão muito bem ser terreno fértil para movimentos e grupos de extrema-direita ou, até, com tendências jihadistas. É urgente que os movimentos sociais e outros grupos progressistas ajam no sentido de cultivar a consciência política nestes jovens para, desse modo, os motivar a adoptar uma agenda progressista.

O conflito entre a Rússia e a Ucrânia

Recentemente, a África tornou-se um campo de batalha para perigosas manobras diplomáticas com repercussões econômicas derivantes do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. A dependência da África nas importações de trigo e crude da Ucrânia e da Rússia gerou um aumento considerável dos preços desses bens essenciais. As sanções sobre os portos do Mar Negro vieram perturbar os canais de exportação, provocar crises de escassez de oferta e subidas acentuadas de preços nos mercados africanos. Esta pressão económica é um aspecto fundamental do actual conflito e destaca nitidamente as suas repercussões à escala global.

Representantes da Rússia e da Ucrânia tentam ativamente influenciar, cada qual a seu favor, a opinião pública e a governação na África. Apesar dos seus esforços, ambos os países têm tido êxito em diferentes medidas. O envolvimento da Ucrânia com a União Africana não produziu grandes resultados, enquanto a Rússia envidou esforços diplomáticos exaustivos, como atestam a recente visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação Internacional russo e a cimeira Rússia-África em que participaram muitos estados africanos em São Petersburgo, na semana passada, e que alguns consideraram um apoio africano implícito à guerra de Putin. Há quem acredite que a cimeira foi “um êxito diplomático notável” para a Rússia.

A relutância dos países africanos em condenar a invasão russa nas Nações Unidas foi parcialmente atribuída a uma afinidade histórica. A herança do apoio da União Soviética, tanto logístico como político, sobretudo, na era das lutas de libertação da África Austral contra a colonização e o apartheid na África do Sul ainda está bem viva em algumas nações africanas. Esse elo histórico continua a influenciar a posição do continente face aos conflitos internacionais. Outro argumento que a Rússia utiliza a seu “favor” é que, ao contrário de algumas potências ocidentais (membros da Otan), é (ainda?) não ter colonizado nem explorado o continente africano.

A África encontra-se no centro das ramificações diplomáticas e consequências económicas do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. É fundamental reconhecer que o apoio da União Soviética à África já pertence ao passado e que, entretanto, a paisagem geopolítica evoluiu consideravelmente. A aliança entre a Ucrânia e a Otan, que a alinha com a Europa e os Estados Unidos, alterou a dinâmica das relações afro-russas. As nações africanas talvez precisem de reavaliar as suas filiações históricas e tomar decisões informadas com base nas realidades geopolíticas actuais.

As potências ocidentais face à presença da China na África

A asserção de que a China é a nova potência imperialista na África, superando o envolvimento histórico da Europa e dos Estados Unidos, tem de ser sujeita a uma avaliação crítica. Embora a China tenha, com efeito, penetrado de forma activa no continente africano para fazer negócio, cooperar e fornecer créditos atractivos, a comparação da sua presença com a da França, da Grã-Bretanha, da Itália, de Portugal e dos Estados Unidos é extremamente simplista.

Desde logo, o envolvimento económico da China na África é um mero grão de areia quando comparado com a influência de longa data das potências ocidentais. Os números demonstram o quanto, ao longo da história, os países colonizadores foram explorando os recursos africanos para seu próprio proveito através da usurpação de terras e do extrativismo em grande escala.

Além disso, as potências ocidentais impuseram condições rigorosas aos créditos e às ajudas económicas na África, perpetuando, amiúde, um ciclo de dependência e controlo. Os créditos da China, em contrapartida, apesar de muito criticados pelos seus custos elevados, não implicam o mesmo nível de condicionalismos e interferência política que os do Ocidente.

Acresce que, ao insistirem nas suas disputas em torno da influência e do apoio militar na África, a Rússia, a França e os Estados Unidos só revelam ainda estar fortemente imiscuídos nos assuntos do continente. A empresa paramilitar russa, Grupo Wagner, e as bases e drones militares americanos são bons exemplos dos persistentes interesses militares na África destas nações.

Já a abordagem da China caracteriza-se por um enfoque no desenvolvimento económico-comercial e não na intromissão na política local. Esta estratégia permite-lhe dar prioridade à cooperação económica e a projectos infra-estruturais, como a Iniciativa OBOR, a construção de aeroportos, pontos e outros grandes empreendimentos.

Apesar de a sua presença na África merecer atenção e dever ser alvo de um acompanhamento rigoroso, dizer que a China é uma nova potência imperialista vai de encontro ao que está a acontecer, que é complexo. É importante reconhecer que as potências ocidentais ainda detêm uma influência significativa sobre a África, em muitos casos, com consequências ainda mais devastadoras. Reconhecendo esses matizes, poderemos ter debates mais informados sobre a dinâmica político-económica que moldará o futuro do continente africano.

A insurgência e o fundamentalismo “islâmicos”

A insurgência islâmica, cujo reduto original se encontrava na África Ocidental, expandiu a sua presença para a África Austral, deixando o norte de Moçambique a ferro e fogo desde 2017. As motivações variam, mas identificam-se dois fios condutores: conflitos de recursos e exclusão socioeconómica dos cidadãos de oportunidades político-económicas.

Em Moçambique, na raiz do problema parecem estar a frustração e a marginalização da juventude a quem é negado o acesso a uma participação político-económica significativa. O desespero que daí resulta conduz os jovens a aderir a ideologias extremistas e a recorrer à violência para conseguir obter reconhecimento e mudança.

A resposta mais comum à exacerbação destes conflitos passou a ser a intervenção estrangeira, sobretudo, das forças ocidentais, nomeadamente, francesas. No caso de Moçambique, a presença de tropas russas da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) e do Ruanda só agudiza a complexidade da situação. As forças estrangeiras assumem geralmente a liderança em nome da luta contra os jihadistas e o terrorismo. Embora possa ajudar a resolver ameaças imediatas à segurança, a mobilização de tropas estrangeiras também suscita o receio de que traga com ela interesses estrangeiros para influenciar os assuntos locais. Substituir os exércitos locais por forças externas pode exacerbar inadvertidamente as tensões existentes e criar dependência na ajuda e no apoio militar do exterior.

Para percebermos o que está na base destas insurgências, temos de adoptar uma abordagem abrangente sobre o desenvolvimento socioeconómico, a capacitação da juventude e a integração política. Proporcionar oportunidades para a inclusão económica e a participação significativa na governação é uma forma de reduzir o apelo das ideologias extremistas e, assim, diminuir a margem para a violência e o conflito.

A urgência de construir uma agenda pan-africana popular

Entre estes desafios, o continente requer um projecto pan-africanista popular que una os movimentos sociais e os intelectuais progressistas. Tal projecto almejaria a resistir a projectos imperialistas e neoliberais e a contrapor governos antidemocráticos e desfavoráveis para os pobres.

Trabalhadores com diferentes interesses têm de colaborar e forjar alianças pelo desenvolvimento sustentável e a protecção da soberania. É preciso criar uma agenda pan-africanista popular e progressista que procure a união, a solidariedade e a autodeterminação económica para todos os africanos. Que aborde as injustiças históricas, as disparidades económicas e os desafios políticos, sempre com a visão de uma África unida e próspera. Para isso, é preciso erradicar a pobreza e a desigualdade, garantir uma distribuição justa dos recursos (especialmente, da terra e dos bens de produção), educação de qualidade, cuidados de saúde e habitação, entre outros elementos fundamentais.

Quanto à política, a agenda defende uma liderança responsável e a participação dos cidadãos para lá das urnas. Promove a integração regional e uma verdadeira liberdade de circulação. Relativamente ao ambiente, há que dar prioridade à agricultura sustentável, à industrialização amiga do ambiente e a meios de produção das próprias pessoas.

É fundamental capacitar os jovens através da educação e da geração de empregos. Resolver a dívida externa e promover a soberania económica são prioridades para conquistar o controlo sobre os recursos e as políticas. A solidariedade global para com os intelectuais e os movimentos progressistas destaca a interligação da libertação africana com as lutas pela justiça global.

Na sua essência, uma agenda pan-africanista de base tem de se enraizar inextricavelmente no anti-imperialismo e no anticolonialismo, tudo, sob uma robusta perspectiva feminista.

Boaventura Monjane é jornalista e ativista moçambicano, com doutorado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal); atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Instituto para Estudos sobre Pobreza, Terra e Questões Agrárias da Universidade do Cabo Ociedental (África do Sul); é membro do Conselho de Administração da Focus on the Global South e oficial de solidariedade para a África Ocidental e Haiti da Grassroots International.

Leia Também: