Investigação sobre a Esperança, afeto rebelde

Freud, Nietzsche e Marx a subestimaram. Confundiram-na com otimismo, ilusão, ou vontade efêmera. Pensador mostra sua outra face: só a ação que deseja e espera um mundo transformado é consequente com o ato de se indignar

Foto publicada no site da universidade de Lancaster Castle
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Este texto foi publicado na edição 296 da Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras

Professor emérito de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford, o filósofo britânico Terry Eagleton, 80 anos, tornou-se um dos mais respeitados pensadores da história e da cultura contemporânea, com trabalhos que vão de Shakespeare a Marx, da religião ao futebol. À Cult, Eagleton falou sobre esperança – conceito que motiva seu mais recente livro lançado no Brasil – a partir de debates com autores como Santo Agostinho, Nietzsche e Benjamin

Em um de seus mais belos poemas, “A vida assim nos afeiçoa”, Manuel Bandeira diz que “Se fosse dor tudo na vida, / Seria a morte o grande bem. / Libertadora apetecida, / A alma dir-lhe-ia, ansiosa: — ‘Vem!’ (…)”. O problema, segue o poeta, são os instantes excepcionais que, qual “eternidades de segundos”, preenchem nossa transitoriedade precária de uma pujança que, quando passa, deixa um rastro de saudades; assim também a “ama de todos os mortais”, a “esperança prometedora”, nos sugere “coisas irreais” e assim perpetua nosso apego a ilusões.

Nietzsche, em Humano, demasiado humano, relia em chave melancólica semelhante à de Bandeira a esperança como sendo o “pior dos males” da caixa de Pandora, na mitologia grega; isso porque ela “prolonga o suplício dos homens” ao não nos fazer desistir da vida apesar de todas as outras desgraças (ódio, guerras, doenças e assim por diante) que nos teriam sido enviadas pelo Olimpo em castigo pelo fogo divino que tínhamos acabado de receber do rebelde Prometeu.

No ensaio Esperança sem otimismo, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Unesp e que discute na entrevista a seguir, Terry Eagleton reflete sobre a má reputação que cerca a esperança em boa parte do imaginário ocidental, inclusive em filosofias como a de Spinoza, que denuncia a esperança como uma paixão triste. É verdade que ela tem um posto nobre, com o amor e a fé, no rol das virtudes teologais do cristianismo. Mesmo aí, porém, a esperança tende a ser uma atitude com relação às promessas de Deus para a vida eterna, depois deste “vale de lágrimas” que é o mundo maculado pelo pecado de Adão e Eva.

Um dos maiores intelectuais da atualidade, Eagleton é professor de Literatura Inglesa na Universidade de Oxford. Há décadas se destaca pela profundidade com que faz da crítica literária um espaço aberto também à reflexão filosófica e política mais ampla, sobre as contradições ideológicas da sociedade capitalista e as possibilidades de emancipação do gênero humano.

Embora se esquive aqui da questão sobre uma possível religiosidade pessoal, Eagleton também é marcado pela sensibilidade teológica aguda. Na esteira de Ernst Bloch e Walter Benjamin, não reduz o sonho messiânico da fé a uma fantasmagoria anacrônica e alienante. Em contrário, encontra nele sementes revolucionárias que nos cumpre redimir dos reveses históricos e realizar (embora não com um ativismo ingênuo) em nome de nossa própria “salvação” neste mundo, cada vez mais incerta em tempos de pandemia, desastres ecológicos, escalada global do fascismo e novas ameaças nucleares.

Publicado originalmente em 2015, Esperança sem otimismo prima por uma rica articulação entre o ardor dos ideais socialistas e a sóbria admissão das dimensões sombrias da condição humana. Eagleton trata disso que exalta como a esperança trágica em sua conversa com a Cult, não sem se permitir tiradas bem-humoradas e comentar também temas como a celebração pelo mestre brasileiro Paulo Freire do esperançar como uma pedagogia libertadora para a escola e para a vida.

Por que o senhor avalia que a esperança é a menos considerada das virtudes?
Mesmo na tradição cristã, geralmente se dá mais atenção à fé e à caridade do que à esperança. Não tenho certeza do porquê, mas a caridade é evidentemente a virtude central para o cristianismo, aquela da qual todas as outras são derivadas. Talvez valha a pena acrescentar que a ideia cristã de fé é amplamente malcompreendida. Geralmente se acredita que você tem fé porque não pode ter certeza. Mas a doutrina cristã ortodoxa diz que a fé é uma forma de certeza. É só porque pensamos na certeza em termos científicos que isso não é compreendido. Nós temos certeza de todo tipo de coisas que não podemos comprovar cientificamente: que estamos apaixonados, que o genocídio é um mal, que Bolsonaro é um grave perigo para o bem-estar do povo brasileiro e assim por diante. A fé não é algo do tipo “Eu acho, mas não tenho certeza”: é uma convicção e um compromisso, algo do qual não podemos fugir por mais que tentemos, algo que faz parte de nossa própria identidade.

Já no título, o senhor enfatiza a diferença entre esperança e otimismo e mostra a predileção pela primeira. Gostaria que nos falasse mais sobre essa distinção.
Otimismo e pessimismo são essencialmente uma questão de temperamento. Algumas pessoas são otimistas do mesmo modo que algumas pessoas têm sarda ou caminham de um modo estranho. Não há muito que se possa fazer a respeito. A esperança, porém, deve ser trabalhada, alimentada, desenvolvida, testada. Eu argumento no livro pela importância do que chamo de esperança trágica, algo que pode soar como uma contradição intrínseca (como “ética dos negócios” ou “inteligência militar”), mas que significa que a única esperança genuína é aquela que surge de se confrontar o pior. A tragédia é a arte que busca transcender o horrendo e o impensável no próprio ato de confrontar a sua realidade – dar uma voz à catástrofe e ainda assim buscar seguir vivendo e afirmando. Ao passo que o otimismo é algo muito mais tênue, um refúgio para aqueles que se recusam a aceitar o pior e que insistem, da sua maneira aborrecida e animada, que tudo ficará bem porque é assim que se sentem. Há um nome para pessoas assim: estadunidenses. Os estadunidenses são patologicamente positivos e afirmativos, ao ponto de a dúvida ou o ceticismo serem vistos como crimes do pensamento.

Como evitar que a esperança se torne de fato uma ilusão, o pior dos males da caixa de Pandora, segundo Nietzsche?
A esperança é sempre suscetível a se tornar uma ilusão. Raramente há uma linha divisória nítida entre as duas. A crer em Freud, a ilusão é uma parte constitutiva de nossa consciência. O mesmo vale para Marx, pelo menos no que se refere à sociedade de classes, embora a palavra dele para ilusão seja ideologia. Talvez, se fôssemos expostos à plena verdade hedionda, nós definhássemos e morrêssemos, como se fitássemos a cabeça da Medusa, por isso precisamos de um certo escudo protetor. Por outro lado, algumas esperanças são inteiramente realistas. A maioria de nós espera ver Vladimir Putin pelas costas, e um dia veremos.

O senhor sublinha o valor das reflexões de Walter Benjamin para uma reflexão marxista sobre a esperança. Poderia nos resumir os aspectos mais importantes da contribuição dele?
Geralmente pensamos na esperança em termos de um olhar para o futuro, mas Walter Benjamin, curiosamente, a encontra principalmente no passado. Em sua visão, somos impelidos a um futuro transformado ao nos lembrarmos de quem morreu nas várias lutas por justiça que já aconteceram. É um tipo muito judaico de memorialização. A tarefa do presente e do futuro é levar essas lutas a frutificarem ao garantir que nossos ancestrais não morreram em vão. Como Benjamin observa, não são sonhos de netos libertos que impulsionam homens e mulheres à revolta, mas memórias de ancestrais escravizados.

O senhor poderia detalhar a diferença entre esperança e desejo?
Uma diferença entre esperança e desejo é que a esperança pode ser jubilosa, mas o desejo não. O desejo não é prazeroso, embora possa antecipar prazer. A esperança também tem um objeto distinto, digamos, pela igualdade humana, ou por uma passagem aérea gratuita para São Francisco, ao passo que o desejo só aparentemente tem um objeto específico. Na verdade, o escopo dele é infinito. Ele atravessa seu suposto objeto e emerge em algum lugar do outro lado. Não há desfecho para ele. Talvez o que o desejo deseje, no fim das contas, seja ele próprio. Santo Agostinho diz sobre si mesmo que nunca descansará até que descanse em Deus, que é onde todos os desejos terminam porque todos os desejos são consumados. Nós desejamos o que não temos, mas às vezes é possível desejar o que nós temos, ansiar pelo vazio no centro das coisas. Nós também desejamos que nosso desejo fosse obliterado, o que é o desejo mais estranho, mais perverso de todos, desejar não desejar. Essa é a pulsão de morte.

O senhor compara a esperança com as outras grandes virtudes teologais, fé e amor, de um modo muito interessante. Poderia nos resumir essas conexões?
Esperar por algo é ter fé nisso, e a fé é uma forma de amor. Devemos lembrar, Kierkegaard assinala, que o crente é alguém que ama apaixonadamente. Refiro-me a amor real, caritas ou agape, como o Novo Testamento o chama, não amor romântico ou sexual ou erótico, não luzes suaves e música doce, com os quais o mundo geralmente ama. Esse não é o tipo de amor que será executado pelo Estado. O teste do amor, para o Novo Testamento, não é se amamos nosso parceiro ou amigos ou filhos (quem não faz isso?), mas se amamos estranhos e inimigos. O que não significa sentir um calor no peito sempre que pensamos neles. Significa tratá-los com justiça e entender como, em outras circunstâncias, poderíamos igualmente ter feito o que eles fazem.

Neste e em outros livros o senhor se distingue de outros marxistas pelo olhar filosófico positivo que lança à tradição cristã. Isso envolve algum tipo de fé religiosa de sua parte?
Essa é uma questão que você deveria dirigir ao Todo-Poderoso. Tenho certeza de que ele tem uma ideia muito melhor do que eu sobre se eu tenho fé nele. Me avise sobre o que ele disser.

Em um certo ponto do livro, o senhor menciona a crítica de Sartre à “esperança obscena”. Por outro lado, a primeira peça dele, escrita e montada durante o cativeiro do autor nas mãos dos nazistas, foi Bariona ou o auto da dor e da esperança, que tive o privilégio de traduzir. Sartre ali reconta o mito natalino em termos existencialistas e quer insuflar em seus companheiros de cárcere a esperança, enquanto uma forma de resistência e autocriação, no sentido nietzschiano. Esperança e desespero poderiam formar uma tensão dialética de opostos, em pensadores como Sartre, Nietzsche e no senhor?
Esperança e desespero formam uma oposição dialética no sentido de que uma criatura que pode esperar é também aquela que pode se desesperar, assim como um animal que pode dar a vida pelos seus semelhantes é também o que pode torturá-los até a morte. Assim, a humanidade é muito superior ou muito inferior a seus semelhantes animais? Penso que a única resposta é: sim. O desespero tradicionalmente é pensado como um pecado contra o Espírito Santo, um Espírito que representa vida jubilosa, extática, superabundante – a vida como uma explosão, uma energia, um frenesi. Desesperar-se é negar o modo como a vida insiste em surgir novamente e fluir e brilhar até mesmo na mais calamitosa das circunstâncias. Por outro lado, se você não pode encarar o desespero de frente, então sua esperança não valerá grande coisa. Você corre o risco de barateá-la. Esse é o motivo pelo qual existe uma tradição cristã (isso não está nas Escrituras) que diz que, após sua morte, Cristo desceu ao inferno. A redenção dele não teria valor a não ser que abrangesse o desespero e a futilidade e o total ceticismo. Talvez valha a pena acrescentar que Jesus morreu do tipo de morte que os imperialistas romanos reservavam para os rebeldes políticos e escravos fugitivos.

Por que o senhor discorda do famoso slogan de Gramsci: “Pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”?
Penso que o comentário de Gramsci compartimentaliza demais a vontade e o intelecto. Eu também suspeito da própria ideia da vontade como um tipo de força ou faculdade autônoma. Só com Descartes as pessoas começaram a pensar desse modo. A vontade, para Agostinho e [Tomás de] Aquino, é uma forma de assentimento amoroso ao que nós queremos. Há um culto à vontade conhecido como voluntarismo, segundo o qual você só tem de querer o bastante para obter o que quer. Essa forma de idealismo ensandecido é evidente na cultura estadunidense hoje: “Eu posso ser tudo o que eu quiser!”, e outras bobagens do tipo. Assim, um garoto negro da classe trabalhadora do sul de Chicago simplesmente tem de querer o bastante para se tornar presidente.

Para essa imperial vontade ocidental, o mundo é simplesmente uma matéria-prima a ser retorcida e dobrada em qualquer forma que se escolha, tal como o corpo parece existir sobretudo para ser emagrecido, bronzeado, inflado ou tatuado. Quando os antigos testemunhavam esse tipo de hybris [excesso ou orgulho trágico], eles tremiam e olhavam com medo para os céus.

Paulo Freire, patrono da educação brasileira, “bête noire” para a extrema direita, criou um neologismo, esperançar, para enfatizar que a verdadeira esperança é um verbo, uma ação. Gostaria de saber se o senhor concorda com as seguintes palavras dele: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”.
As palavras de Freire são inspiradoras, certamente. Mas devemos ter cuidado com um culto do ativismo, tanto quanto com um estado de inércia. Freire põe a verdadeira esperança [hoping] acima da espera [waiting] passiva; mas, na peça de Beckett Esperando Godot, o valor reside não nessa ou naquela ação, mas no simples fato de que, apesar de tudo, apesar do tédio e desespero e ilusão, Vladimir e Estragon realmente esperaram [waited]. Eles foram fiéis em sua própria passividade. Eles ficaram onde lhe disseram para ficar, cega e fielmente. Eles foram fiéis de seu jeito próprio – fiéis talvez a alguém que nem sequer existe. Heidegger tem um conceito que ele chama de Gelassenheit, que significa algo como abertura, receptividade tranquila, vigilância, expectativa. Penso que isso é de grande valor, apesar da detestável política de Heidegger, em uma era de incessante ativismo. Theodor Adorno pergunta se, quando a esquerda política fala de ação ou práxis, ela não emprestou de modo apressado demais seus próprios conceitos da prática daqueles aos quais ela se opõe. A prática não é uma noção que precisamos repensar, em vez de simplesmente adotar?

Líderes como Trump e Bolsonaro, pandemia, desastres ecológicos considerados como o “novo normal”, novas ameaças nucleares… Como manter a esperança na humanidade, dado um cenário tão distópico, que parece novamente humilhar as teorias de que a História é o campo por excelência do “progresso” humano?
Como manter a esperança em um mundo que pode estar galopando para a catástrofe? Essa é a questão de nossos tempos. Bem, e se não sobrevivermos a nós mesmos, a nossas próprias ações, a nossa história? Isso então erradicará do mundo o valor? Não acredito nisso. Como Benjamin poderia dizer, cada luta por amor e justiça remete à eternidade, mesmo se finalmente fracassarmos enquanto espécie. Mesmo se as águas estão subindo em torno de nós, ou as pessoas estão se matando por comida, sempre haverá quem pare, pegue uma criancinha e cuide de suas necessidades. Assim, a humanidade não viveu em vão. Nosso problema é hoje o que sempre foi – não sermos destruídos pelas forças que nossa história magnífica de criatividade e de engenho quase infinito nos permite desencadear.

Termino com uma breve história. Um amigo meu inglês visitou Lisboa pela primeira vez, e aprendeu o português para dizer “Desculpe-me, você pode me dizer o caminho para…” Ele praticou a frase várias vezes em seu quarto de hotel, tentando apagar seu sotaque inglês, e então se aventurou na rua, parou um pedestre que passava e experimentou com ele. “Sinto muito”, respondeu o homem em inglês muito ruim, “mas eu não falo inglês”.

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