Pasternak e o que Luis Felipe Miguel não entendeu

Autor de Outras Palavras rebate crítica do cientista político. Freud pretendeu que a psicanálise fosse ciência dura, mas hoje fundamenta-se nas ciências da linguagem. Visões totalizantes são erro: terras estrangeiras não são promessas de ocupação

Imagem: Pickenoy The Osteology Lesson of Dr. Sebastiaen Egbertsz (1619), Thomas de Keyser
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Leia o artigo de Eduardo Guimarães sobre o Que bobagem!, de Pasternak e Orsi

Como diria Forrest Gump: “a vida é como uma caixa de chocolates [ou de bombons]. Você nunca sabe o que vai encontrar”. Foi assim que me senti quando notei que meu artigo anterior sobre o livro Que bobagem!, de Pasternak e Orsi, havia sido citado em uma postagem do professor Luís Felipe Miguel, em 24 de agosto. Na verdade, não foi citado: apesar de o trecho transcrito ter sido extraído de meu artigo, sua autoria não foi revelada. Luís Felipe contentou-se em se referir a mim como “um psicanalista [que] ‘lacrou’” e, em seus comentários, arrematou: “Eu não conheço o autor, nunca tinha ouvido falar nele. Mas o texto foi republicado muitas vezes.”

Lacrando ou não, fiquei muito contente em ser indiretamente mencionado em uma postagem de um professor que admiro há algum tempo – ainda que as pistas deixadas por ele não contribuam muito para linkar o leitor ao meu artigo. Mas em um segundo momento percebi que Luís Felipe cometia o equívoco atribuído por ele a mim. Em sua postagem, declarou que “muitos de seus críticos nem a leram”, referindo-se ao livro Que bobagem!, e ao ser publicado em Diário do Centro do Mundo, o artigo recebeu o título Críticos de Pasternak nem sequer leram o livro dela (26 ago.). Ora, eu li Que bobagem! E o próprio Luís Miguel parece reconhecer isso ao criticar o trecho transcrito de meu artigo.

Para esclarecer o que estou dizendo, transcrevo aqui o trecho de meu artigo que foi citado na postagem do prof. Luís Miguel:

“Para diversas questões, a ciência é incapaz de estabelecer um veredito universal e aplicável a toda e qualquer situação. E nem é preciso mencionar que na escolha amorosa, por exemplo, diversos fatores nada científicos pesam muito mais que um tratado de microbiologia”.

Esse argumento foi utilizado por mim para criticar esta passagem do livro Que bobagem!: “seguir usando impressões, vivências e narrativas como guias, quando há informação científica disponível, é não só perigoso como também irresponsável” (p. 20). Trata-se, portanto, de recuperar uma crítica antiga ao cientificismo e às pretensões totalizantes da ciência, e não à ciência propriamente dita. Que fique claro de uma vez por todas: reconhecer as potencialidades e os limites da ciência não é negacionismo, mas é próprio do discurso científico. Não sou o primeiro nem o único a dizer isso. Não estou dizendo nada de original.

Mas Luís Felipe me acusa de ter utilizado, “para ‘destruir’ a obra” – nem sabia que eu tinha tanto poder assim –, um exemplo que “já é contemplado pelos próprios autores”. Para justificar sua acusação, transcreve um trecho da página 9 (e não da página 8, como indicou): “A constatação de que há ‘outros saberes’ ou ‘outras epistemes’ importantes para a vida humana, além da ciência, é muito verdadeira – ninguém pensa em conduzir um teste duplo-cego com grupo placebo antes de escolher um namorado, por exemplo”.

Em primeiro lugar, vale lembrar que o final do trecho transcrito foi suprimido pelo professor. No original, está assim: “ninguém pensa em conduzir um teste duplo-cego com grupo placebo antes de escolher um namorado, por exemplo (embora essa talvez fosse uma boa ideia)”. Entretanto, não foi esse trecho suprimido que me motivou a argumentar criticamente o livro. E por que não? Porque os autores estão sendo irônicos. Justamente por serem irônicos, eu decidi levar esse argumento a sério.

Em segundo lugar, é justamente esse um dos maiores problemas do livro Que bobagem!: os argumentos não são levados devidamente a sério. Tentarei me explicar a esse respeito. São os próprios autores que declaram não haver ninguém que realize um teste duplo-cego para escolher um namorado ou namorada ou que existem outros saberes e epistemes importantes para a vida humana. Esses dois argumentos nos mostram que a ciência é o melhor caminho para tomar decisões, mas não é o melhor caminho para tomar decisões. Recorremos à ciência para estabelecer protocolos de saúde e para descobrirmos uma vacina contra a covid-19, mas recorremos aos nossos valores, aos nossos ideais e à nossa história amorosa para escolher um namorado ou namorada.

O que estou dizendo? Estou dizendo que as pretensões totalizantes do discurso de Pasternak e Orsi a respeito da ciência devem, sim, ser criticadas. A ciência é universalista, mas não é totalizante. Há aqui uma diferença fundamental que precisa ser sublinhada. As terras estrangeiras da atividade científica não são necessariamente promessas de ocupação. Apesar dos progressos científicos, sempre haverá o estrangeiro da ciência, não por carência ou por falta, e sim por uma clivagem estabelecida pela própria atividade científica.

Por fim, retornando à postagem do professor Luís Felipe Miguel, quero comentar mais três pontos. O primeiro deles diz respeito ao trecho em que o professor declara que Freud “cogitava substituir a terapia por drogas, quando a química do cérebro fosse melhor compreendida”. O professor deve estar se referindo ao seguinte trecho extraído da obra Esboço de psicanálise (1940 [1938]) – também traduzida como Compêndio de psicanálise:

“No futuro, pode ser que aprendamos a influenciar diretamente, com substâncias químicas especiais, as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho psíquico. Talvez surjam outras possibilidades terapêuticas ainda insuspeitadas. Atualmente, não dispomos de nada melhor que a técnica psicanalítica, e por isso não se deve desprezá-la, não obstante suas limitações”.

Freud não cogitava “substituir a terapia por drogas”, mas vislumbrava a possibilidade de surgirem “outras possibilidades terapêuticas” com a utilização de “substâncias químicas especiais”. Esse vislumbre foi mencionado em apenas um parágrafo de suas mais variadas obras, mas é coerente com a visão freudiana a respeito da relação entre a psicanálise e a ciência. Para Freud, o paradigma da investigação psicanalítica eram as ciências da natureza, mas, por uma carência das ciências da natureza, a psicanálise ainda não havia sido capaz de descrever os processos psíquicos em termos neurofisiológicos. Vale sublinhar que essa expectativa é mencionada pouquíssimas vezes na obra freudiana, não constituindo uma questão fundamental.

Em que pé se encontra a psicanálise hoje? Hoje, o paradigma da psicanálise, principalmente a lacaniana, não são mais as ciências da natureza, e sim as ciências da linguagem. Isso não significa que a psicanálise rejeite a utilização de medicamentos para o tratamento do sofrimento humano, e sim que abandonou por completo a expectativa de um dia os processos psíquicos investigados pela psicanálise serem mais bem descritos em termos neurofisiológicos. Não haveria mais uma redução analítica da psicanálise à neurociência, e sim a possibilidade de trabalhos frutíferos entre ambos os campos de conhecimento.

Em segundo lugar, também é verdade que Freud baseou alguns de seus estudos culturais e antropológicos na “teoria lamarckiana dos caracteres adquiridos” e que, segundo Luís Felipe, Freud teria temido que, se essa teoria “fosse invalidada inteiramente (como de fato foi), […] toda a sua obra ruiria junto”. Novamente, vamos à obra freudiana, particularmente Moisés e o monoteísmo: três ensaios (1939):

“Nossa situação é dificultada ainda pela posição atual da biologia, que rejeita a transmissão hereditária de caracteres adquiridos. Mas devemos confessar, com toda a modéstia, que mesmo assim não podemos prescindir desse fator no desenvolvimento biológico.”

Freud não somente não temia que a teoria lamarckiana dos caracteres adquiridos fosse invalidada como já sabia que essa teoria havia sido rejeitada pela biologia da época. Ainda assim, manteve sua posição, mesmo contrariando a ciência. Mas vale mais um comentário. Alguém ainda acredita no conceito de herança arcaica, na transmissão hereditária de caracteres adquiridos ou na hipótese histórica do pai da horda primeva? Não! Mas não são esses conceitos e hipóteses que sustentam a psicanálise. A psicanálise freudiana se sustenta, apesar de alguns equívocos de Sigmund Freud – como sua teoria filogenética. Ou alguém ainda acredita que Freud não cometeu nenhum equívoco?

Em terceiro lugar, de acordo com o professor, os autores talvez até reconheçam que “a psicanálise pode fornecer ferramentas úteis para a compreensão de comportamentos individuais, de produtos culturais, da sociedade”, mas sua discussão se dirige contra “a pretensão [da psicanálise] de ‘ciência dura’”.

Se Luís Felipe tivesse realmente lido meu artigo, não teria esquecido o último parágrafo: “Afinal, depois de tudo isso, a psicanálise é ciência? Esse debate está em aberto. Se considerarmos a física como modelo de disciplina científica, não: a psicanálise não é ciência.”

Minha conclusão é que Luís Felipe, infelizmente, não acompanhou todo o debate realizado pelos psicanalistas a respeito do tema. Desconsiderou psicanalistas de renome, como Antonio Quinet, Christian Dunker, Vera Iaconelli, Paulo Beer e Mário Eduardo Costa Pereira. Mas isso não invalida toda sua produção acadêmica e intervenção política no cenário nacional. Espero que possamos novamente nos posicionar do mesmo lado da trincheira nas batalhas que ainda enfrentaremos no Brasil contemporâneo.


Leia o texto de Luis Felipe Miguel, publicado em sua página no Facebook

Louvada por sua atitude corajosa na denúncia do governo Bolsonaro durante a pandemia, a bióloga Natália Pasternak tem sido atacada por defender o método científico – sobretudo desde a publicação do livro Que bobagem!, escrito com Carlos Orsi.

Mas parece que muitos de seus críticos nem a leram.

Método científico nos olhos dos outros é refresco.

É chato quando ficam dizendo que coisas que a gente gosta não passam no crivo. A gente só quer poder criticar os cloroquiners em paz, não é mesmo?

Então é bem óbvio porque o livro de Pasternak e Orsi incomoda. As pessoas não querem desgrudar de suas crenças.

Mas o método científico continua sendo o melhor caminho para controlar nossas armadilhas mentais, como o viés de confirmação, que faz com que se dê mais atenção àquilo que confirma o que já pensamos, e identificar o que realmente funciona e o que não funciona.

O livro de Pasternak e Orsi apresenta uma descrição cuidadosa do funcionamento do método científico, de como vieses cognitivos podem contaminar nossas percepções e porque é necessário controlá-los. Também decifra o funcionamento dos placebos, incluindo seus mecanismos tanto psicológicos quanto bioquímicos.

Feito para causar, o título do livro não ajuda. Mas o tom geral é cuidadoso.

A frase que está sendo sempre citada para acusá-los de positivismo raso – “a ciência pode reivindicar o posto de melhor descrição possível da realidade factual” – costuma ser citada sem contexto. Ela pode reivindicar, palavras que muitas vezes são omitidas nas citações, não necessariamente é.

E eles prosseguem: “Isso não significa que ela nunca erra, ou que uma descrição alternativa qualquer, obtida por outros meios, estará sempre, necessariamente, errada. Mas significa que, na maioria das vezes, havendo uma divergência entre descrições, aquela que foi produzida segundo a atitude científica é a que tem a maior chance de estar certa (ou menos errada)”.

No afã de condenar o livro, a desatenção ao que os autores escrevem por vezes chega à má-fé.

Um psicanalista “lacrou” assim: “Para diversas questões, a ciência é incapaz de estabelecer um veredito universal e aplicável a toda e qualquer situação. E nem é preciso mencionar que na escolha amorosa, por exemplo, diversos fatores nada científicos pesam muito mais que um tratado de microbiologia”.

Pois vejam o que se lê na página 8: “A constatação de que há ‘outros saberes’ ou ‘outras epistemes’ importantes para a vida humana, além da ciência, é muito verdadeira – ninguém pensa em conduzir um teste duplo-cego com grupo placebo antes de escolher um namorado, por exemplo!”

Ou seja: o exemplo que ele apresenta para “destruir” a obra já é contemplado pelos próprios autores.

Pasternak e Orsi assumem que a defesa da ciência pode assumir um tom desrespeitoso ou se confundir com práticas colonialistas. Mas isso não os leva a descartar o universalismo.

O escritor Saul Bellow certa vez fez uma provocação racista: “Quem é o Tolstói dos zulus?” Um jornalista negro, Ralph Wiley, respondeu: “Tolstói é o Tolstói dos zulus. A não ser que se considere vantajoso cercar de muros as propriedades universais da humanidade, convertendo-as em domínios tribais exclusivos”.

Vale para Tolstói, vale para o método científico.

Os autores escrevem que muitas das doutrinas que criticam às vezes se dizem apoiadas em métodos científicos, às vezes baseadas em outras lógicas. Mas é necessário escolher um só dos dois caminhos.

A polêmica relativa à psicanálise ilustra o ponto. Freud se via como cientista. Cogitava substituir a terapia por drogas, quando a química do cérebro fosse melhor compreendida. No final da vida, manifestava a preocupação de que a teoria lamarckiana dos caracteres adquiridos fosse invalidada inteiramente (como de fato foi), porque toda a sua obra ruiria junto.

A psicanálise pode fornecer ferramentas úteis para a compreensão de comportamentos individuais, de produtos culturais, da sociedade? Talvez. Pasternak e Orsi não discutem isso. É a pretensão de “ciência dura” que se dirigem.

A nova polêmica é por Pasternak ter criticado a decisão do Conselho Nacional de Saúde, que inclui os locais de culto das religiões de matriz africana como “equipamentos de saúde pública”.

Até Joel Pinheiro da Fonseca, o ex-direitista radical que hoje se esforça para ser progressista, veio dar pancada em Pasternak. Entre os argumentos, dele e de outros, a “insensibilidade” por publicar o texto “no momento em que o Brasil investiga o assassinato de uma mãe de santo”.

Um argumento capcioso. Ser contra a decisão do Conselho não implica nenhum preconceito contra religiões de matriz africana, muito menos ser indiferente à violência. Seria bom ler o texto de Pasternak antes de falar.

Ela é cuidadosa. Diz que a diretriz pode ser positiva se visar uma parceria entre locais de culto e serviços de saúde. Como muitas vezes esses locais são “portas de entrada para queixas de saúde física e mental”, os líderes religiosos poderiam encaminhar os fiéis para o atendimento médico.

Sua crítica é dirigida à declaração do Ministério da Saúde, de que as práticas dos locais de culto poderão integrar as práticas complementares do SUS. Isso significa dar a um ritual religioso o estatuto de tratamento médico.

A crítica à incorporação desregrada de práticas complementares, desprovidas de comprovação científica, de homeopatia e reiki a florais e constelação familiar, deve ser levada a sério.

Não tenho o que objetar à conclusão dela:

“É possível imaginar dois desfechos: um cenário onde um ministério comprometido com as evidências científicas submete as PICs [práticas integrativas e complementares] para avaliação científica, e cria um programa para incluir líderes religiosos e locais de culto como parceiros para facilitar o acesso da população a uma saúde pública baseada em medicina de verdade; outro, o cenário, populista, onde um ministério feito mais de slogans fáceis do que de substância, preocupado em agradar lobistas e nichos eleitorais, mantém as PICs, ignora a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde] e abre as portas para incluir não só ritos de matriz africana, mas de todos os tipos e origens, como “tecnologias” de saúde. Quem acha absurdo a ozonioterapia no SUS é porque ainda não viu o exorcismo.”

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