"A mudança árabe chegará ao Irã"

 

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Cineasta e jornalista Maziar Bahari diz que, embora não corrupta, cúpula teocrática do país é arrogante e tende a se isolar. E comenta “Odisseia Iraniana”, documentário em que denuncia derrubada de governo nacionalista por norte-americanos

Por João Novaes, no Opera Mundi

Os ventos da mudança também chegarão ao Irã. Essa convicção pode ser vista nos olhos do ativista, dramaturgo, cineasta e jornalista iraniano Maziar Bahari. Nascido em Teerã, em 1967, é um dos muitos iranianos que têm um histórico familiar marcado pelo longo período de repressão que perdura há décadas no país, tanto na monarquia ditatorial dos xás quanto pelo período dos aiatolás, pós-Revolução Islâmica.

Sua formação em Comunicação ocorreu no Canadá e, em pouco tempo, especializou-se em documentários. Já abordou temas como refugiados judeus, arquitetura africana e futebol. Mas os conflitos de sua terra natal sempre foram o foco de sua obra.

Em 2009, chegou a ser preso pelo regime entre junho e outubro,  acusado de espionagem. Encarcerado na célebre prisão de Evin, repetiu o destino de seu pai, na década de 50, e de sua irmã, na década de 80. Sua experiência o inspirou a escrever “Then They Came For Me” (Então Ele Vieram Para Mim, em tradução livre), no qual conta a história de sua família através das turbulências no cotidiano de de seu país.

O diretor esteve em São Paulo para participar do festival de documentários “É tudo Verdade”, ocorrido em abril e que apresentou 92 filmes de 29 países. Bahari mostrou seu trabalho com os documentários ‘A Queda do Xá’ (The Fall of a Shah), que trata do período anterior e imediato da Revolução Iraniana,  e ‘Odisseia Iraniana’ (An Iranian Odissey), sobre o golpe de Estado no país persa ocorrido com a ajuda da CIA (serviço de inteligência norte-americano).

Divulgação

Bahari recebeu a reportagem de Opera Mundi em abril, no hall do Hotel Mercure, zona oeste de São Paulo. Atencioso e bem-humorado, mostrava-se muito feliz com a receptividade e o apoio do público brasileiro por sua obra e trajetória.

Mostrando sempre muita segurança em suas convicções, o único momento o qual admitiu estar profundamente indeciso foi em relação a qual time passaria a torcer por aqui: Corinthians ou Santos.

Seus dois filmes tiveras sessões esgotadas. Como explicar o grande interesse do público brasileiro em relação ao Irã, ainda mais tratando-se de culturas tão díspares?

Creio que existem duas questões envolvidas. A primeira é que tanto Irã quanto Brasil são países muito religiosos. Claro, a maneira como essa fé é praticada é muito diferente em um e em outro.

Entretanto, o mais importante é que esses dois países possuem uma história ligada a regimes ditatoriais. Felizmente para o Brasil, já há mais de duas décadas que essa ditadura acabou. Vocês têm democracia, eleições livres. Já no Irã, inquestionavelmente, a era de chumbo não terminou. Mas o passado, de alguma maneira, une esses dois países.

Outra coisa que é fascinante nos brasileiros, especialmente nos políticos que, no passado, lutaram contra a ditadura, é que esse regime foi apoiado pelos Estados Unidos. Enquanto o regime islâmico iraniano é anti-norte-americano. Como resultado, muitas pessoas da esquerda e na esfera política local aqui têm certa simpatia pelo regime iraniano.

Creio que algumas coisas mudaram há dois anos, quando o Movimento da Onda Verde foi suprimido pelas autoridades iranianas. Posso sentir que o núcleo principal da esquerda brasileira é contra regimes autoritários, culpa os EUA por terem apoiado a ditadura (local). E, ao mesmo tempo, apoia os direitos humanos. O ex-presidente Lula tem um passado sindical ativista, a atual presidente Dilma Rousseff foi ativista de direitos humanos.

Quando figuras como essas vêem suas contrapartes no Irã serem espancadas, torturadas e presas; quando veem os abusos de direitos humanos que são cometidos… eles não podem apoiar esse regime somente por seu conteúdo anti-americano. Porque o Brasil não é apenas uma organização mercantil, que negocia cegamente sem levar em conta esses aspectos. As pessoas têm consciência.

Como resultado desses fatores, acho que o povo brasileiro tem um interesse no Irã. Querem saber mais sobre esse país.

Como você observa os movimento populares que eclodiram no Norte da África este ano? Acredita que há um risco de acontecer nesses países o mesmo que o Irã em 1979, quando uma revolução democrática desembocou num regime religioso totalitário?

Acho que há uma grande diferença entre o caso do Irã em 1979 e os de Tunísia e Egito no início desse ano. Não sei exatamente o que está ocorrendo, e mesmo quando eu estiver lá, não estarei apto a dizer o que ocorre exatamente.

Mas acredito que a consciência coletiva humana, em todo o mundo, é pró-democracia. As pessoas querem democracia, quer sejam chinesas, brasileiras, árabes, judias, brancas ou negras. Claro, elas entendem que a democracia não aparece de uma hora para outra. Não podemos esperar um governo como a Noruega ou a Dinamarca no Egito ou na Tunísia. Mas o primeiro passo que elas esperam é ter um governo relativamente confiável.

No Irã, não era esse o caso. As pessoas não lutavam por um governo confiável. Eles clamavam, em sua maioria, por um governo islâmico, ideológico. Isso foi feito reprimindo as pessoas, da mesma maneira que uma ditadura, mas diferentes por pessoas. Acho que essas ideologias já se foram no presente. Porque à época da Revolução Islâmica em 1979, havia diversos movimentos comunistas, assim como no Brasil.

Não lutavam por uma democracia, mas por uma ditadura do proletariado. No Irã, optavam por uma ditadura islâmica ao invés de uma monarquia secular.

Pelo que pesquisei até agora, a situação no norte da África é muito diferente. Elas querem suas instituições reforçadas. As pessoas nas ruas pertencem a diferentes ideologias. Outro elemento é que os exércitos, especialmente no Egito, são instituições muito fortes por lá. O exército não vai permitir o crescimento de um movimento islâmico. Mas também dependerá das ações do governo dos EUA, da sabedoria dos revolucionários nesses países, enfim, inúmeros outros fatores.

Há possibilidades de ocorrer no Irã um levante semelhante aos ocorridos no norte da África?

Como mencionei, todo ser humano quer a democracia. No Irã ocorre a mesma coisa. A situação nesses dois casos é diferente. O Irã é um país politicamente independente, seu exército não depende dos EUA ou do Ocidente. Por isso são menos confiáveis nos olhos estrangeiros.

No Egito e na Tunísia, as pessoas lutavam contra duas ditaduras corruptas e ilegítimas. No Irã, o ditador, aiatolá (Sayed Ali) Khamenei, fez realmente um grande esforço para deixar sua imagem limpa. Não se envolve diretamente em atividades financeiras, tem um modo de vida muito simples, não incentiva seu filho a ser seu sucessor.

Ele, na sua opinião, acredita e cumpre de fato o que ele mesmo apregoa?

Exatamente. Como resultado, ele tem um grupo de devotos que morreriam por ele. E que, ao mesmo tempo, matam por ele. Mubarak não tinha isso, mas um grupo de parasitas. Acredito que a principal diferença nesses dois episódios é que os iranianos têm a memória coletiva de 1979.

Como resultado, eles não querem conseqüências desastrosas. Não querem fazer algo que possa acabar em um novo desapontamento, uma nova tragédia. Portanto, eles estão muito cuidadosos com essas ações. Estão desacelerando o ritmo, pensam duas vezes antes de fazer alguma coisa. Preferem ser mais conservadores do que pró-ativos.

O longa metragem “A Queda do Xá” fala de um período anterior à Revolução Islâmica. Por que, então, você foi preso em 2009 ? Embora tenha algumas críticas, já que, ao falar do regime do xá, também critica indiretamente o regime islâmico.

Minha prisão acabou não tendo nada a ver com esses filmes. Um dos dois filmes que apresentei aqui ainda nem estava acabado. Eles queriam, na verdade, incriminar alguns reformistas. Eles prenderam um grupo de pessoas e as forçaram a incriminar uma às outras, e dizer que trabalhávamos para o Ocidente. E eu trabalhava para a imprensa ocidental na época, na Newsweek.

E quais as principais diferenças entre os dois regimes? O que mudou no regime do xá para o islâmico?

O regime atual é uma espécie de continuação da monarquia. Não do regime do xá, mas do regime que antecedeu a era Pahlavi, até 1925. Ao mesmo tempo, as principais diferenças entre os dois eram que o xá era uma ditadura nacionalista e ocidentalizada. Ele tinha boas intenções para o país, mas foi enganado por suas próprias limitações. O filho, Mohamed Pahlavi, tinha uma personalidade mais fraca.

Como resultado, quando a Revolução Islâmica chegou, ele não teve como se defender. O xá, mesmo com tudo o que fez, quando se pensa na quantidade de gente que foi morta, presa e torturada, comparado ao atual regime, não foi nada.

O atual regime é absolutamente esquizofrênico. Por outro lado, todos os elementos necessários para a democracia estão no Irã. Pessoas podem votar, há um parlamento, às vezes seus votos até contam. Mas ao mesmo tempo, de acordo com a Constituição, há uma única pessoa a governar o país, e que tudo pode. Ela está por trás de todas as decisões no país. E essa pessoa seria supostamente o “representante de Alá na Terra”. Ali Khamenei e, antes dele, [seu antecessor, o aiatolá Ruhollah] Khomeini. O xá nunca reivindicou essa condição. Ele se considerava a “sombra de Deus”.

Mas há muitas semelhanças. Podemos notar que Khamenei, assim como Khomeini no passado, está ficando megalomaníaco. Não ouve mais ninguém, está alienando a todos ao seu redor. Também ele, basicamente, está fazendo mais inimigos a cada dia, ao invés de aliados. Foi exatamente isso que provocou a queda do xá. E acredito também que será a causa da queda do aiatolá.

Você acredita então que a mudança chegará ao Irã em um curto período de tempo? Ou vai demorar mais um pouco? Como isso ocorreria?

É muito difícil dizer o que vai acontecer. Se alguém disser que sabe como, estará mentindo. Só sei que a mudança vai chegar. Pode acontecer em um ano, como George Soros disse, pode acontecer em dois, cinco ou vinte anos. Mas vai chegar, porque a situação se encontra insustentável. A economia desmorona, as pessoas estão cansadas desse governo, os jovens estão muito insatisfeitos.

E os religiosos?

Especialmente os religiosos estão insatisfeitos. Esse governo realmente alienou as pessoas mais religiosas no país. E, ao invés deles, quem está apoiando o regime é um grupo de charlatões. Como consequência, as pessoas estão perdendo o respeito pela religião.

Conte um pouco sobre o filme “Odisseia Iraniana”, que trata de um período pouco conhecido por aqui.

É um filme a respeito da dinastia do xá, entre 1950 a 1953. Trata sobre a nacionalização do petróleo, o que acaba virando um momento muito importante e decisivo na história do país.

Talvez por isso o filme tenha sido tão popular entre membros do governo dos EUA. O Departamento de Estado norte-americano chegou a me convidar para apresentá-lo em uma sessão especial na qual foram convidados diplomatas que lidam com as relações entre Estados Unidos e o meu país. Isso ocorreu porque esse período foi a rota que criou o ressentimento iraniano em relação aos EUA.

Após a Segunda Guerra, britânicos e soviéticos ocuparam o Irã. Os dois primeiros saíram depois, mas os soviéticos ficaram para ocupar a província do Azerbaijão. Os norte-americanos ajudaram o Irã a retomar essa província. Por isso, o Irã tinha, até então, excelente impressão dos EUA.

Porém, durante o golpe de 1953, os EUA interferiram diretamente no Irã. Eles apoiaram a ditadura do xá. O golpe de 1953 ocorreu, com a ajuda da CIA, porque o Irã queria nacionalizar seu petróleo. Os britânicos não queriam e os EUA ajudaram o Reino Unido. Esse é um exemplo histórico que está sendo usado para justificar o programa nuclear iraniano, que está arruinando a economia do país. Podemos ver as razões por trás, do por que estão fazendo isso.

E as sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU? Qual o efeito e as conseqüências que elas devem conseguir?

Acho que elas começaram a funcionar agora. Mas elas são ruins, de má qualidade. Por exemplo, sanções contra venda de aviões, remédios. As sanções deveriam ser melhor direcionadas, focadas no programa nuclear, essa sim é uma questão muito perigosa.

Esse é um governo que pratica bullying, ou seja, quer demonstrar força tentando intimidar seus opositores. As sanções deveriam também estar focadas em coibir a Guarda Revolucionária e seus abusos.

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