Guerreiras porque é preciso triunfar sobre o trauma

Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, ganha nova edição. Romance, femininamente áspero e ensolarado, convida a acompanhar a viagem a pé de uma jovem retirante, de SP a Pernambuco, em busca de sua ancestralidade nordestina

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Por Tati Carlotti, na Carta Maior

Aos que acalentam o desejo de acompanhar ou de conhecer a literatura contemporânea brasileira: neste mês de junho, a editora Ubu traz a quarta edição de  As Mulheres de Tijucopapo, romance da escritora Marilene Felinto, publicado em 1982.

Nascida em Recife, ainda criança, Marilene viveu o drama do êxodo nordestino, e chegou em São Paulo em 1968:

Nós batemos em retirada no meio de porcos e galinhas e pedaços de tapioca amanhecida, entre catabius e sacolejos de um pau de arara, para um hotel imundo no Brás de São Paulo enquanto papai, o louco, alugava um porão qualquer onde nos socar (p.95).

Este e outros episódios são narrados por Rísia, alter ego da escritora, que escreveu o romance aos vinte e dois anos de idade:

Me disseram que eu vivo é em guerra. Em pé de guerra. E vivo mesmo, e acrescento que vivo em batalha, em bombardeio, em choque. E só vou conseguir sossegar quando matar um. É que quando eu era pequena alimentei durante todo o tempo a ideia de matar meu pai. Não matei. Não o matarei mais. Mas ficou a vontade, essa de matar um (p.20).

Com sua franqueza desconcertante, “vontade de matar um”, o romance conquistou a crítica e venceu os prêmios da União Brasileira dos Escritores (1982) e o Jabuti (1983). Conta com traduções para o inglês, francês, catalão e holandês.

Desde então, Marilene Felinto, que é também tradutora, publicou romances, contos e ensaios, entre eles Autobiografia de uma escrita de ficção – ou: porque as crianças brincam e os escritores escrevem (Ed. da autora, 2019), Fama e Infâmia: uma crítica ao jornalismo brasileiro (Ed. da autora, 2019); Contos reunidos (Ed. da autora, 2019) e Sinfonia de contos de infância (Ed. da autora, 2019).

A reedição inclui sólida fortuna crítica sobre o texto, com prefácio da editora e poeta Beatriz Bracher; posfácio da professora Leila Lehnen (Brown University) e ensaio do professor João Camillo Penna (UFRJ). Acompanham ainda textos publicados em ocasião das edições anteriores da poeta Ana Cristina César, da filósofa Marilena Chauí (USP) e dos professores Viviana Bosi (USP) e José Miguel Wisnik (USP).

Um panorama que faz jus ao texto, à personagem, à autora e aos leitores que, além do romance, poderão ter contato com a crítica em diferentes edições da obra, despertando novas sensibilidades e possibilidades de leitura.

Trauma e Triunfo

Uma dessas possibilidades é observá-lo como um livro de “trauma e triunfo” conforme nos convida José Wisnik, em texto de orelha para a primeira edição da obra:

“Livro de trauma e triunfo, criança recém-nascida (uma ´infância são ânsias´) que esperneia e estraçalha o céu em um canto temerário, mais uma visão inesperada do auto de Natal pernambucano em escala nacional, onde Severina é uma menina que já passou do cartão da Unicef à Universidade, e inventa o seu renascimento voltando às fontes míticas das fortes mulheres de Tijucopapo”. Remetendo-nos ao triunfo, Wisnik observa o caráter precursor da obra: “Marilene arrasa, cava sulcos cortantes no mapa do novo escrever brasileiro, refazendo em coriscos cruzados o circuito de sua infância nordeste-pernambucana e sua ida para o polo centro-sul São Paulo” (p. 229).

Nesta via do triunfo sobre o trauma, em meio à dilacerante perda de um amor, Rísia, “uma mulher sozinha na estrada”, uma “menina completamente esculhambada” quando criança, parte em busca de suas origens, da ancestralidade guerreira, negra, nordestina, de mulher, amazonas. Da sua filiação às mulheres de Tijucopapo, que lutam pelo que é justo. 

Donde vieram essas mulheres assim, a minha herança, mulheres da matéria do tijuco, cabelos grossos arrastando pela crina do cavalo, escanchadas no lombo do bicho sem sela, amazonas (p.71).

Tijucopapo se refere a Tejucupapo, distrito no litoral pernambucano marcado por um acontecimento histórico de 1646, a Batalha de Tejecupapo, em que as mulheres guerrearam contra os holandeses, expulsando-os da região, com as armas de que dispunham.

“Mulheres de Tejucupapo – Tributo a Goya”, da pintora pernambucana Tereza Costa Rêgo, resgata essa história:

Guerreiras porque é preciso triunfar sobre o trauma.

Era 1935, todos os raios da lua escapuliam do céu preto alumiando o caminho num atalho de serra por onde o jegue vinha empinando os caçuás. Minha avó nem sequer açoitava o bicho; vinha pachorrenta, os cabelos entrochados em cocó nas costas. Minha vó era tão negra que se arrastava. Ela levava minha mãe, a que seria dada. Minha mãe veio num caçuá. Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha avó não podia. Era o seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era toda de farinha e charque e falta d´água. Minha mãe seria dada. Minha mãe era novinha como um filhote. Eu chorava como nunca (p.24).

Miséria tamanha. Ruptura do elo. Interditado o passado. Sem origem, nem afeto. Mãe e filha, mulheres sem mãe nem irmãos, desgarradas, mulheres tão sem nada, mulheres tão de nada (p.42), teme Rísia. Em reação, observa Leila Lehnen, ela “irá criar uma genealogia de mulheres amazonas, as mulheres de Tijucopapo, inserindo a mãe, e salvando-a de seu destino”.

“Essas mulheres são guiadas por um ethos que rejeita as soluções simples. São mulheres que floresceram na ambiguidade e no conflito, nas lutas inevitáveis de suas vidas, e nas batalhas históricas de que são protagonistas – ainda que não sejam reconhecidas como tais. Rísia é Dandara, é Luiza Mahin, é Carolina de Jesus, é Marielle” (p.180).

Origem e deslocamentos

Ao longo de nove meses e 33 capítulos, Rísia seguirá em direção a Tijucopapo, e como a paisagem ao seu redor, vai ganhando força, retomando a vitalidade, cada vez mais distante dessa São Paulo sempre não, sempre nada. Sem o Recife da sua infância.

Nesta cidade de onde saio, essas tardes de domingo sem pipoqueiro a passar na rua, sem eu de roupa limpa sentada na calçada à espera do vendedor de roletes de cana. Nada, não há nada mais. Eu vejo entardecer. Eu precisei ir-me embora. Não pude aguentar essas tardes (p.86).

Esse contínuo deslocamento rumo às origens promove outros olhares sobre o romance. Beatriz Bracher, por exemplo, classifica-o como livro de viagem. Ela explica que, em geral, livros de viagem trabalham “com a fricção entre o personagem e o mundo”, que pode permanecer estático ou estar em transformação (em guerra, por exemplo). O mundo “oferece obstáculos, encontros e desencontros ao personagem que se transforma ao vivê-los”. Neste romance, “o mundo está sendo construído. É um ser tão orgânico quanto a narradora, Rísia, e com ele se mistura. A estrada é a escrita, e o mundo, o passado de Rísia” (p.8).

Marilena Chauí, por sua vez, analisa-o como livro bíblico. É bíblico porque “interroga a origem da culpa”. E “a culpa é da mãe, dessa mãe que não pôde nascer, grávida pra abortar, dada, flácida, traída e traidora, cuja resignação – ´você pensa que o céu é perto?´ – oculta a impossibilidade de todo afeto”. A culpa é desse pai “sempre ausente, cheio de amantes, açougueiro e contrabandista, engravidando a mulher, surrando a filha”, dos irmãos, das amantes do pai, da casa “onde a semana se passa na violência recíproca e o domingo se arrasta no silêncio mútuo”. Em última instância, “a culpa – maior e única – é a miséria” (p.225-227).

Em seu ensaio, João Camillo Pena considera a escrita de Marilene “essencialmente genealógica”. Nela, “a língua destruidora e justiceira retira sua força da injustiça que escreveu no corpo o destino de traições”. Pretende-se “assassinar a língua materna, estruturada e possuída pelo pai; destruir São Paulo, a capital do capital; por meio de um força coletiva feminina originária”. Ele defende que As Mulheres de Tijucopapo pertence a um projeto novo dentro da literatura brasileira, caracterizado pela “temática persistente do exílio e da diferença, em suas múltiplas formas – sexual, racial, de classe e regional – numa constante busca de exterioridade” (p.190-191).

Já Leila Lehnen, em seu posfácio, afirma que “lido a partir de uma perspectiva contemporânea, “As Mulheres de Tijucopapo se insere na reflexão sobre a marginalização socioeconômica e sobre como esta determina a geografia física e imaginária que encontramos em muitos escritos da chamada literatura periférica”. Ela também observa que “o linguajar forte, por vezes pleno da oralidade característica dessa literatura também ressoa na narrativa de Felinto” (p.185)

Femininamente sem meios tons

Em artigo publicado na Folha, em 1992, por ocasião do lançamento da segunda edição da obra, a professora Viviana Bosi analisa a prosa poética que “alterna ritmos pesados e leves, em cadência de arrebentação: espraia e reflui, arreganha ou alarga. Há momentos pedregosos, ásperos, pontudos, que vêm de encontro ao leitor para feri-lo, para cuspir torrões de terra; e outros aplainados, em remanso”.

“Não há, em geral, meios tons”, destaca. “A enunciação é imperativa, genuína como o agreste nordestino: ensolarada, áspera. Isto confere ao livro um tom abrupto, de criança exasperada e ressentida ardendo por reencontrar o seu trono interior. Mas, para recuperar essa pureza invicta do animal, carece vomitar as traições engolidas, as esculhambações com que a vida a foi castigando” (p.234).

E aqui fechando esse caleidoscópio crítico sobre o romance, as palavras de Ana Cristina César que, em resenha de 1982, um ano antes de sua morte, descreveu As Mulheres de Tijucopapo como um “livro vital, intenso, loucamente atormentado pela questão do feminino”.

“Femininamente significa aqui: de forma errante, descontínua, desnivelada, expondo com intensidade muito sentimento em estado bruto. Significa também: dirigindo-se eternamente a um interlocutor, falando sempre para alguém como numa carta imensa. Mas ao mesmo tempo, esse feminino transborda um excesso inquietante. Ao longo do livro trava-se uma luta com esse feminino excessivo, com esse a-mais, porque o excesso se situa à beira de uma amedrontadora indefinição, à beira de uma impossibilidade de afirmar, afirmar-se, dar forma, acabar-se”.

“O mais interessante – e promissor – do texto, está antes na sua superfície, no seu falar errante, solto, desarticulado, desnivelado. Corta esta superfície a angústia da pergunta: como não sucumbir ao a-mais de loucura das mulheres?” (230-231).

Tantas perspectivas apenas corroboram a potência literária e a complexidade deste romance de estreia de Marilene Felinto na literatura. Um texto de absoluta atualidade, que explicita a guerra, convoca à luta, e anuncia:

A próxima batalha das mulheres de Tijucopapo acontecerá na Av. Paulista.

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