Direito no Cárcere: um projeto para a “liberdade” dentro da prisão

Há um ano, Carmela Grunes leva a cultura popular, como instrumento de educação inclusiva, para presidiários em tratamento de dependência química no Presídio Central de Porto Alegre.

Por José Francisco Neto, no Brasil de Fato

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Há um ano, Carmela Grunes leva a cultura popular, como instrumento de educação inclusiva, para presidiários em tratamento de dependência química no Presídio Central de Porto Alegre

Por José Francisco Neto, no Brasil de Fato

Com as frases “o que está preso é o corpo e não a mente” e “cidadania sem expressão gera opressão”, a gaúcha Carmela Grunes, idealizadora do projeto Direito no Cárcere e diretora do jornal Estado de Direito, busca estabelecer plataformas de expressão aos apenados do Presídio Central de Porto Alegre (RS), por meio da cultura popular e de uma educação inclusiva.

Há um ano, a ala em que trabalha com o projeto é a galeria E-1, em que ficam os detentos em tratamento de dependência química. A iniciativa contribui, segundo ela, para o desenvolvimento de uma cultura mais plural, livre de preconceitos, resgatando a auto-estima do presidiário dependente para redescobrir um caminho para uma vida mais digna.

Carmela, que em abril lançou dois livros – “Samba no pé e direito na cabeça” e “Participação cidadã na gestão pública” – também discorda da política de “combate às drogas”. “O sistema carcerário brasileiro poderia ter muito menos detentos se tratasse a questão da criminalização das drogas de outra maneira.” Assim como do modelo do governo de São Paulo de militarizar as periferias. “Se houvesse uma política de controle da utilização da droga, e não criminalização, seria diferente […] é caso de polícia ou de saúde pública? Tem que saber diferenciar”, pondera.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Carmela conta como foi seu primeiro contato com os presidiários, como o problema da dependência química, ao seu ver, deveria ser tratado e os resultados positivos que geraram seu projeto neste um ano de existência. “Eles já produziram artigos, umas 30 músicas, tem muito artista, inclusive há alguns que estão na rua e mesmo assim ligam pra me falar que estão bem, que buscaram outro caminho. Pra mim, esse é o melhor reconhecimento que o projeto pode ter.”

Brasil de Fato – O que fez você ter essa iniciativa com o projeto Direito no Cárcere?

Carmela Grunes – Eu sempre tive interesse em legitimar e buscar formas de sensibilização do ensino do direito. Como eu vou fazer as pessoas terem interesse em conhecer o direito, se muitas vezes elas apreendem esse conhecimento pela opressão, pela repressão, pelo normativismo? Então, quando a gente trabalha o conhecimento, temos também que trabalhar a prática junto a ele. No caso da área penal, eu comecei a ter o contato com os presídios, com delegacias, com a situação do sistema carcerário lá no Rio de Janeiro, visitando o projeto “Carcerária e Cidadã”, que na época era coordenado por Orlando Zaccone e pelo Marcelo Yuka. Só que o projeto deles era diferente, mas mesmo assim, me motivou a começar um diálogo dentro do sistema prisional.

Como foi seu primeiro contato?

Meu primeiro contato foi como estudante, numa turma que estava indo visitar o presídio, e na oportunidade eu me identifiquei para o major, que era subdiretor da penitenciária na época. Disse que tinha vontade de fazer um projeto dentro da cadeia. O presídio Central de Porto Alegre é considerado o pior da América Latina, com o maior foco de tuberculose no mundo, por falta de condições sanitárias, de não ter construções adequadas, enfim, todos esses problemas que acabaram criando uma resistência em quem administra para não permitir colocar um projeto lá dentro. Comecei a visitar semanalmente o presídio, passava o dia inteiro com os administradores, sem contato com os presidiários, então eles começaram a me conhecer, começaram a ter mais confiança e depois conheci pessoas que também trabalham lá dentro para a melhoria do sistema prisional. Foi através de algumas reuniões com as pessoas que administram o presídio mais com as assistentes sociais que começou então a projetar uma área livre de drogas dentro do presídio Central. Então, para essa ala teria que criar atividades. Essas pessoas que vão pra galeria, que vão para o tratamento da dependência química, ficam 20 dias internadas num hospital, onde fazem um tratamento de desintoxicação. Após o tratamento elas vão para uma ala que é acordado entre os presos que não pode haver o uso de droga. Mas, infelizmente, quem tem acesso a esse tratamento são apenas 60 presos, do total de 4.519 (sendo que a capacidade do presídio é para 2.069 detentos). É um número muito pequeno, mas é uma esperança, um projeto piloto. Então, o “Direito no Cárcere” entra nessa ideia de que o tempo do detento seja um tempo que ele possa desenvolver alguma atividade.

Como é o método de trabalho do projeto?

Em primeiro lugar, a gente trabalha o diálogo: como foi a semana, como que está a família, se está indo visitar […] então é um trabalho de psicologia, de neurociência, de arte e de direito. O objetivo central do projeto é trabalhar plataformas de expressão da cidadania no cárcere, mas para chegar nesse objetivo, temos que trabalhar a pessoa, pois ela está oprimida, violentada, frágil, enfim, está perdida por diversos fatores: pela droga, pelo crime, pelo arrependimento, pela falta de afetividade […] então, todas essas perdas geram uma falta de estrutura. Cada um tem um tipo de perda diferente, mas todos eles sofrem algum tipo de violência, que acaba sendo uma violência social. A gente sabe que o sistema prisional fecha as portas e contém pessoas numa panela de pressão, mas não dá conta de cuidar dessas pessoas. O que oportunizar pra que elas enxerguem outras formas, outros caminhos pra viver? Portanto, pra chegar a expressão da cidadania no cárcere, nós trabalhamos o lado emocional, o diálogo, a relação de respeito, de afeto e de companheirismo. Então fazemos isso. Delego junto com eles algumas atividades: quem é que vai ler livro, quem é que vai compor música, quem é que vai pensar uma coisa diferente pra gente fazer, que tipo de debate a gente vai fazer. Tenho estudado o caminho da neurociência e do direito pra gerar outros comportamentos de apreensão do conhecimento do direito. Então, o projeto “Direito no Cárcere” também é uma experiência para mim de como estimular para que o direito seja vivenciado diferentemente, como que a música, a fotografia e a arte podem fazer com que o direito seja visto de uma maneira diferente. Então, se eu não trabalhar a pessoa, como eu vou expressar algo que ela não consegue se expressar?

Por que você escolheu trabalhar com os dependentes químicos, e não com os outros presos?

Porque foi onde me abriram a porta. Abriram uma ala com 20 ou 30 detentos, hoje está em 60. Abriram essa ala e disseram: aqui tu vai poder trabalhar. Então quer dizer, eles também estão me experimentando. O projeto completou um ano, eles já produziram artigos, umas 30 músicas, tem muito artista, inclusive tem alguns que estão na rua e mesmo assim ligam pra me falar que estão bem, que buscaram outro caminho. Pra mim, esse é o melhor reconhecimento que o projeto pode ter.

Se houvesse maiores investimentos públicos voltados para essa questão, reduziriam os casos de dependência?

Faltam investimentos públicos sim. O estado marginal faz um trabalho que o estado democrático deveria fazer. Não estou dizendo que eles estão certos, mas quando a gente fala que uma pessoa foi para esse caminho, é muito fácil recriminar sem ver o ambiente em que ela foi criada. Se tu vais numa comunidade e o ambiente é com arma, com apologia ao crime, a criança terá uma referência diferente. Então, políticas públicas para isso significa criar referências.

Quais tipos de referência, por exemplo?

Criar referência de moradia, da cultura popular local, manifestações periféricas, tudo isso são mecanismos elementares pra gente poder fazer uma modificação dessa maneira de trabalhar a droga.

Eu estive em várias comunidades lá no Rio de Janeiro, e quando eu estava saindo da comunidade, estava entrando o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais). Então, o Estado entra pra fazer guerra contra o tráfico, ele não entra para instalar uma biblioteca na comunidade e criar um centro de referência. Não adianta querer contratar um fulano de tal, uma pessoa que não seja referência na comunidade, porque a partir do momento que tu contrata e mostra uma pessoa de dentro da comunidade que está trabalhando no local, aquilo fortalece. As prefeituras querem fazer coisas caras trazendo pessoas de fora, que vão gerar um impacto midiático maior, mas se pegasse todo o dinheiro que se investiu numa pessoa só e aplicasse em ações de um ano inteiro com administração estado – sociedade, com certeza teria muito mais efeito. Portanto, esse centro de referência e o sentimento de pertencimento estão na construção de um novo olhar da periferia e do cárcere. Porque lá (no cárcere) você ouve assim: “E aí, o que tu fez bandido?”. Aí tu vês aquela coisa da banalização do crime. Mas qual é a história desse cara, como ele foi criado, em que contexto ele vivia, quantas pessoas fecharam a porta pra ele quando tentou alguma coisa? A expressão do cárcere é um reflexo da sociedade. Quem está lá dentro é tanto igual quanto nós. A diferença é o dinheiro, a classe social. Os direitos humanos são iguais, mas existem as classes sociais. Esse é o desequilíbrio. Precisamos fazer com que se reduzam esses desequilíbrios gerando auto-estima, elevando o potencial de expressão e de cidadania das pessoas. Todos nós temos um potencial, mas se ele ficar parada dentro da gente, poderá ir para o lado negativo. O governo tem que gerar políticas públicas de empreendedorismo social dentro e fora do presídio. O que significa isso: uma capacidade criativa de uma coletividade de utilizar todos os seus conhecimentos intelectuais, suas potencialidades regionais pra construir e inovar um produto e um serviço que geram retorno social, cultural, educacional ou ambiental.

O projeto tem continuidade fora da cadeia?

Eu fico em contato com eles, mas não com todos. Como é um trabalho braçalmente sozinho, praticamente, hoje, eu não tenho uma ONG, uma cooperativa de presos que me ajudem a fazer isso. Tenho ideias de fazer junto com eles para dar uma orientação, gerar um protagonismo fora, porque lá dentro a gente trabalha a questão de ser um empreendedor social, e para ser, temos que nos descobrir. Então, eles vão se descobrindo pela arte, pela leitura, pelo desenho, pela fotografia e pela capacidade crítica. Fora do sistema o contato que eu tenho é familiar e tento encaminhar para um trabalho formal.

Todos que me ligam eu tento fazer isso. Alguns me dão retorno. O Anderson Dutra, que fez parte do tratamento, ligou pra mim e disse que está bem. Muitos que estavam no regime fechado, que é onde eu trabalho, foram pro regime semi-aberto. Lá, alguns me ligam, outros eu ligo pra saber. Eu dedico o máximo possível pra poder fazer isso.

O que seria o ideal, portanto, para o projeto ter uma extensão do lado de fora da cadeia?

Tem instituições que atendem no regime semi-aberto para dar profissionalização e trabalho. O Patronato Lima Drummond, por exemplo. Só que ele tem no máximo 80 vagas, e está super lotado. Então, falta ter mais investimento público para que as pessoas tenham a profissionalização no semi-aberto e ingressem no trabalho. Mas para as pessoas investirem no cárcere, elas precisam conhecer quem está lá dentro. Para isso que veio o projeto “Direito no Cárcere”, pra mostrar às pessoas que estão lá dentro a sua expressão da cidadania. Conhecer as histórias de vida, saber que o detento é uma pessoa que tem tanta inteligência ou mais do que a pessoa que está assistindo. Tem muitas potencialidades que precisam ser vistas, pois hoje estão invisíveis aos olhos de muitos.

E sua opinião sobre a criminalização das drogas?

Esses crimes contra a vida deveriam ser tratados de maneira diferente. Não estou dizendo que tem que tratar mal, mas eles tinham que ter outro tipo de tratamento psicossocial diferente. Essas pessoas que estão lá por crimes de tráfico de drogas, que é de 70 a 80% da demanda do presídio central e creio que no Brasil todo seja assim, precisamter outro tratamento. O sistema carcerário brasileiro poderia ter muito menos detentos se tratasse a questão da criminalização das drogas de outra maneira. Se a sociedade criminaliza a droga ou o porte da pessoa com droga, dizendo que a pessoa que usa droga é perigosa para estar presa, deveria partir de perguntas como: toda pessoa que é presa com droga é uma pessoa perigosa? Ela pode causar danos à sociedade? Essas são as perguntas que as pessoas não estão parando para fazer. A mídia generaliza como se todo mundo fosse uma pessoa que gostasse de matar, que atingisse os crimes contra a vida. Quem acaba alimentando todo esse sistema não são os pobres, não são as pessoas pobres que consomem esse dinheiro. Quem acaba consumindo esse tipo de conteúdo é a pessoa que tem recurso. Se houvesse uma política de controle da utilização da droga, e não criminalização, seria diferente. Não adianta a gente criminalizar pessoas que não são perigosas. É caso de polícia ou de saúde pública? Tem que saber diferenciar. O cara está com cinco pedras de crack, é caso de polícia ou de saúde pública?

Como resolver esse problema, já que o combate as drogas não é a maneira correta?

O dependente químico é um doente que acaba indo pro caminho da criminalidade, porque a doença gera necessidade de consumo imediato. Essa necessidade que envolve aciona o disparador no cérebro dizendo “eu preciso de droga”. Ele vai fazer de tudo pra conseguir o dinheiro. O limite disso passa da racionalidade. A política, portanto, deveria ser de prevenção, tem que ser de esclarecimento a começar pela pior droga que nós temos hoje: o álcool. A gente vê, por exemplo, um jogador de futebol fazendo campanha pra consumir o álcool em horário nobre na televisão. Teria que ser cortado isso da mídia, pois passa no horário que uma criança está assistindo a TV. Deveria ter mais controle de quem consome o álcool, pois ele na família gera efeitos desastrosos: causa mortes, violência doméstica, acidentes no trânsito […]

Hoje as pessoas de maneira geral não estão se expressando, não estão se relacionando mais, então quando chega nesse ponto, qual caminho ela vai? Ela vai ou pro caminho das drogas ou do individualismo, que pode ser o poder a qualquer preço e passar por cima dos outros, que acaba sendo uma maneira de fuga. Então, é mais fácil ficar dentro de casa consumindo aquilo que a tevê passa. Inclusive, saiu recentemente numa pesquisa que no orçamento da renda familiar do brasileiro aumentou o consumo de entretenimento pra ficar dentro de casa, consumindo prazer ao invés de ir pra livrarias, do que ir para um centro cultural. Por que? Será que as pessoas não querem dar conta dos problemas sociais? Elas não querem olhar para a pessoa que está na calçada pedindo ajuda? Tudo isso é uma maneira de a gente se isolar dos problemas sociais. Esse comportamento individualista é gerado por uma cultura que diz que eu tenho que cuidar só de mim. Temos que refletir em como ser mais iguais mesmo diante das diferenças a partir de um olhar mais humano, e não de um olhar de exclusão.

O governo do estado de São Paulo tem uma política de colocar viaturas dentro das favelas e dizer que quem usa drogas tem que ser morto pela polícia. Esse tipo de enfrentamento, em sua opinião, é um enfrentamento contra a periferia?

Isso pra mim é a criminalização da pobreza. Hoje tu ser pobre, preto e favelado já é motivo pra ser considerado um potencial ofensivo à sociedade. Infelizmente é uma maneira de exterminar com a pobreza, com quem vive de uma fonte ilegal que, na verdade, é uma pequena ponta do iceberg. Na verdade, as grandes pessoas que trazem as drogas estão nos palácios por aí a fora e nem tocam nela. Quem toca é quem está lá na miséria. Eles estão pegando as pessoas erradas. Teve um político que disse que ia colocar iluminação em São Paulo porque bandido não gosta de luz. Ele estava querendo dizer que “ia limpar a cidade retirando as pessoas que vivem em situação de miséria”, porque o miserável não acha bonito morar na rua, ninguém gosta de ser miserável. Pra mim o bandido que gosta de luz é o político, as pessoas que sonegam impostos e que estão lá exaltando o dinheiro do povo. São essas pessoas que colocam a polícia pra dentro da favela pra matar o pequeno traficante ou o usuário de drogas. Se a polícia está agindo assim, não é só por causa da instituição, pois a instituição é o reflexo de uma ordem social. Parte da sociedade, que não quer enxergar, que fica lá só vendo a televisão, quer que as pessoas ajam dessa maneira. Essas mesmas pessoas que não querem sair de casa porque têm medo da segurança e preferem ficar em seu ninho, são as mesmas que estimulam e geram uma política de uma polícia violenta. Os policiais são o reflexo do que essa classe quer ver. A gente tem que construir uma modificação do olhar, de como lidar com o problema da violência social que acaba gerando o cárcere. Se a gente não mudar esse olhar de como tratar o sistema carcerário brasileiro de direito penal, vamos continuar segregando, excluindo e violentando comunidades com o terrorismo, com as guerras urbanas vistas no cotidiano de uma periferia, que é lamentável. Um lado quer proteger o sistema da droga e o outro quer exterminar a droga. Mas será que o “exterminar” tem a ver com a droga ou com a pessoa? Qual é o objetivo? Então, retira-se a droga, se for o caso, mas e a pessoa, como tratá-la? A gente não tem política de pena de morte institucionalizada na lei, mas no estado de exceção que hoje o Brasil vive dentro das periferias. A política de extermínio virou uma coisa comum. A polícia está na boca da panela de pressão, ou seja, ela segura as broncas que o Estado não costura. Não costura na educação, moradia, não dá saúde pública e isso gera revolta, violência e outros caminhos não-lícitos. Quando tu não tratas de outro problema sobra para quem está na linha extrema.

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