Covid: 7 medidas urgentes para frear segunda onda

Ela já fustiga EUA e Europa, e é praticamente certa no Brasil: dados apontam elevação de casos em SP, PR e RS. Mas ainda há chance de enfrentá-la. Exemplos exitosos de países como China, Tailândia e Nova Zelândia apontam caminhos

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Por André Biernath, na BBC Brasil

A situação da covid-19 voltou a se agravar na Europa e nos Estados Unidos há algumas semanas. Com o aumento de infectados, os hospitais estão próximos do limite de capacidade de atendimento. Para evitar um desastre ainda maior, líderes de nações como Reino Unido, Espanha e França decretaram toques de recolher e lockdowns.

Mas alguns indicadores sinalizam que o Brasil também pode estar à beira de uma segunda onda: informações vindas de hospitais particulares de São Paulo já registram um aumento do número de internações a partir da segunda ou da terceira semana de outubro.

O mesmo fenômeno ainda não foi observado na rede pública. Mas, se o comportamento dessa eventual segunda onda for igual à primeira, os números nessas instituições também apresentarão uma elevação em breve.

De acordo com epidemiologistas e matemáticos ouvidos pela BBC Brasil, é praticamente impossível impedir que esse rebote ocorra, como mostram experiências com pandemias do passado e a atual situação europeia. A dificuldade maior está em prever quando ela exatamente vai começar.

“Isso depende de uma série de fatores, como a mobilidade de pessoas e a atividade econômica das cidades, sobre os quais não temos controle nenhum”, admite o físico Silvio Ferreira, especializado em sistemas complexos e modelagem epidêmica e professor da Universidade Federal de Viçosa (MG).

Alguns cálculos indicam que a situação da pandemia em certos lugares do Brasil já está se agravando agora, quase como se estivéssemos emendando a primeira e a segunda onda.

Os gráficos sobre a incidência de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que são um indicativo sobre o estágio mais sério das doenças infecciosas que afetam nariz, garganta e pulmões (caso de gripe e covid-19), voltou a subir substancialmente nas últimas semanas em cidades como Florianópolis.

Os números de casos confirmados de covid-19 estão em alta em outros locais, como na Grande São Paulo e nos Estados do Paraná e Rio Grande do Sul.

“O cenário ainda não está igual ao da Europa e ainda não temos dados oficiais, mas pelo que estamos vendo e ouvindo dos colegas, os casos parecem já estar subindo de novo em alguns locais”, observa o médico José Luiz de Lima Filho, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco.

Ingredientes para a piora do cenário

Algumas projeções indicam que essa segunda onda pode ser agravada pelo final do ano, quando muitas pessoas vão viajar e se reunir com familiares e amigos para celebrar as festas ou aproveitar os dias de calor.

Outro fator que pode pesar no futuro é a chegada de temperaturas mais frias a partir de março e abril de 2020. Durante o outono e o inverno, as aglomerações em locais fechados se tornam mais frequentes, o que favorece a disseminação do vírus.

Não dá pra ignorar também o relaxamento das regras para o funcionamento de estabelecimentos comerciais e o cansaço das pessoas em continuarem em isolamento, por mais que ele continue necessário.

Diante de tantas possibilidades, a única certeza que os especialistas possuem é que o Brasil tem uma chance de se organizar bem pelas próximas semanas para criar ações e políticas capazes de diminuir infecções, internações e óbitos.

“Precisamos usar a ciência e os modelos preditivos para entender o que pode acontecer num futuro próximo. A partir daí, podemos lançar mãos de medidas que mitigam o impacto da covid-19 em nossa realidade”, analisa o matemático Eliandro Cirilo, da Universidade Estadual de Londrina (PR).

Confira abaixo sete ações que podem fazer a diferença na força que uma segunda onda terá no Brasil:

1. Melhorar o acesso e a qualidade dos dados

Ainda que o Brasil tenha uma estrutura considerável de informações na área da saúde, matemáticos, epidemiologistas e gestores públicos ainda encontram dificuldade para fazer comparações entre diferentes cidades e regiões ou colocar em práticas as ações corretas para cada estágio da pandemia.

“O grande problema está na qualidade dos dados. Não temos certeza sobre a precisão deles ou a frequência com que são disponibilizados. Durante uma pandemia, não basta saber que ocorreram 100 mil casos. Precisamos entender quando eles aconteceram, a faixa etária dos acometidos, sua localização, a gravidade…”, exemplifica Ferreira.

O ideal seria que todos os municípios do país possuíssem um sistema online igual (ou similar) e uma padronização de como as informações deveriam ser preenchidas segundo alguns critérios.

Assim, os dados seriam repassados de maneira uniforme para as cidades e os Estados até chegarem ao governo federal. Pelo que comentam especialistas, isso ainda não está bem organizado no Brasil.

2. Considerar as realidades locais

Os epidemiologistas são unânimes em afirmar que não faz sentido analisar um gráfico da covid-19 do Brasil todo. Cada região do país tem sua própria característica e apresenta particularidades sobre os números de casos, hospitalizações e óbitos.

“Quando analisamos um país continental como o Brasil, o gráfico pode ser generalista demais. A soma do que ocorre em todos os Estados acaba não representando nenhum Estado. É necessário analisar lugar a lugar para entender o que está acontecendo”, constata o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19.

Em alguns locais, como Manaus e Belém, por exemplo, houve um pico de infectados e mortos. Passadas algumas semanas, a curva caiu e ficou relativamente controlada. Outros lugares, como São Paulo, vivenciaram um platô alto de indivíduos afetados durante muitos meses. Os números não baixaram, nem subiram: ficaram praticamente nivelados por um longo período.

É necessário, portanto, levar em conta cada cidade, Estado ou região na hora de implementar ou reforçar as regras que restringem a circulação de pessoas. “Precisamos desenvolver algum tipo de medida customizada que permita relaxar ou endurecer as políticas de acordo com o estágio da pandemia e com a realidade local”, pensa Cirilo, da Universidade Estadual de Londrina (PR).

Essa foi a estratégia usada em outubro na cidade de Nova York, nos Estados Unidos: o prefeito propôs que os bairros onde o coronavírus estava em maior circulação, como Brooklyn e Queens, tivessem o comércio e as escolas fechadas.

3. Ampliar a testagem

“Onde a gente não faz testes, não encontra casos”, raciocina Ferreira. A única maneira de entender o real cenário da pandemia é criar um programa de testagem populacional, incluindo as pessoas que não apresentam sintomas sugestivos.

Só assim será possível detectar os casos assintomáticos ou com poucos sinais, que representam a grande maioria dos infectados. Apesar de não sofrerem grandes abalos na própria saúde, essas pessoas podem transmitir o vírus para outras.

Vamos aos números: de acordo com o site Worldometers, o Brasil tem cerca de 5,3 milhões de casos confirmados de covid-19 e 164 mil mortos. Desde março, o país realizou 21 milhões de testes.

Apesar de ser a terceira nação com os números mais altos da pandemia (só fica atrás de Estados Unidos e Índia), nosso país ocupa a 98ª posição no ranking de exames feitos em relação ao tamanho da população. Aparecemos atrás de nações como Colômbia, Omã e Bósnia e Herzegovina.

E há outro agravante nessa história: cerca da metade dos testes feitos no Brasil são os rápidos, aqueles que só informam se a pessoa já teve covid-19 no passado, não se ela está com o vírus naquele momento. Para descobrir a doença ativa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza o exame conhecido pela sigla PCR.

A testagem em massa permite ter um panorama mais certeiro de como está a situação e quais ações são necessárias para conter a disseminação do coronavírus. Foi o que aconteceu na cidade de Kashgar, na China, na última semana de outubro: após um surto local, as autoridades fizeram 4,7 milhões de testes de uma só vez.

“A China tem feito isso com regularidade. Quando eles detectam um aumento pequeno de casos de covid-19 num lugar, fazem milhões de testes para flagrar aqueles indivíduos que estão assintomáticos. Eles são isolados, o que interrompe a cadeia de transmissão”, contextualiza Schrarstzhaupt.

Especialista insere bastonete na boca de paciente para fazer um teste de covid-19
Os programas de testagem são uma das estratégias bem-sucedidas para lidar com o coronavírus

4. Isolar e rastrear contatos

Vamos supor que o programa de testes em larga escala estivesse implementado. Qual seria o próximo passo? Isolar aqueles que foram diagnosticados com a covid-19.

Os protocolos mais bem-sucedidos indicam que esses indivíduos devem ficar em casa (se possível, em um quarto sem contato com familiares ou amigos) pelas próximas duas semanas. Se, no meio do processo, os sintomas se agravarem ou aparecer falta de ar, é preciso buscar a orientação médica ou o pronto-socorro.

O terceiro passo dessa estratégia é o rastreamento. Na prática, isso significa perguntar aos pacientes recém-diagnosticados com quem eles tiveram contato físico nos últimos dias. Essas pessoas são, então, avisadas e orientadas a fazer uma quarentena ou realizar os exames.

Testar, isolar e rastrear, inclusive, são as ações que permitem a países como Tailândia e Nova Zelândia o controle da covid-19 dentro de seus territórios.

5. Coordenar as ações

Em meio à maior pandemia do século, o Brasil teve três ministros da saúde e acompanhou de perto brigas públicas entre prefeitos, governadores e o presidente Jair Bolsonaro.

A falta de coordenação entre setores do poder público no país fica evidente em um estudo feito pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, a partir de dados fornecidos pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Eles fizeram entrevistas com prefeitos ou gestores de saúde de 4.061 cidades brasileiras entre março e agosto de 2020.

A principal conclusão do trabalho é que a maioria dos locais até adotou medidas de contenção (como fechamento de escolas e do comércio), mas não houve nenhuma decisão conjunta entre municípios vizinhos — portanto, havia um total descompasso que não respeitava as realidades regionais.

A limitação da circulação de pessoas também parece ter durado pouco tempo: logo no final de março, a maioria das cidades já começou a flexibilizar suas regras por causa da pressão das empresas e dos cidadãos. Tudo isso foi feito sem nenhuma sincronia com os governos estadual ou federal.

6. Divulgar orientações claras sobre as medidas básicas de proteção

“As pessoas estão cansadas e estressadas com toda a situação. Por outro lado, muitas não têm como sobreviver se ficarem em casa. Elas não têm escolha: vão às ruas e se arriscam para garantir o sustento, mesmo com o risco de se infectar”, constata Cirilo.

Agora imagine o barril de pólvora que pode ser criado quando os gestores precisarem retomar as medidas mais restritivas para barrar a segunda onda? Na Europa, os toques de recolher e as quarentenas motivaram uma série de protestos e confrontos com a polícia.

Para evitar o mesmo efeito aqui no Brasil, é urgente pensar em formas de comunicar à população a necessidade de novas restrições. “Devemos explicar de alguma maneira que talvez seja melhor paralisar as atividades agora do que fechar tudo por muito mais tempo daqui a três meses”, propõe Schrarstzhaupt.

Outro ponto que merece reforço constante por meio de campanhas públicas são as medidas individuais de proteção. “Vamos continuar a manter a distância segura dos outros, usar máscaras e lavar sempre as mãos”, orienta Lima Filho.

7. Se antecipar à dinâmica da doença (e ao comportamento das pessoas)

Os especialistas sugerem que os gestores de saúde pública não tomem decisões precipitadas ou atrasadas e acompanhem a dinâmica da doença. Mas o que significa isso?

“Há uma latência natural, uma demora, para começarmos a ver os efeitos de uma segunda onda. Existe um tempo até o exame ser feito, ele ser analisado e sair o resultado”, observa o especialista em ciência da computação Jones Oliveira de Albuquerque, do Departamento de Estatística e Informática da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

A demora não se limita ao diagnóstico: entre o aparecimento dos primeiros sintomas, o agravamento do quadro, a internação e a morte (ou a recuperação e a alta), o processo todo leva quatro semanas ou mais.

Portanto, os impactos de uma segunda onda sobre a mortalidade só são percebidos muito tempo depois. Se as autoridades esperarem para agir, será tarde demais.

“Nossos representantes deveriam estar pensando desde ontem em como capacitar o sistema de saúde e reabrir ou ampliar hospitais e UTIs”, alerta Lima Filho.

Por fim, é importante prestar atenção no comportamento das pessoas. Além do cansaço natural com a pandemia e as restrições que ela demanda, a tendência é que mais gente viaje para curtir o verão e as festas de final de ano com amigos e familiares. Isso pode ser evitado de alguma forma?

Na sequência, depois dos meses de calor, a temperatura vai cair. Como evitar que as pessoas se aglomerem em locais fechados, onde o risco de transmissão do coronavírus é alto?

Essas são algumas perguntas para as quais as autoridades brasileiras precisam encontrar respostas com rapidez.

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