Como se constrói um “novo Consenso de Washington”

EUA delineiam “economia moderna do lado da oferta”. Significa apenas que irão convocar países ricos a sustentar hegemonia diante da ameaça chinesa, com protecionismo – impondo a velha austeridade aos “parceiros” que agonizam na crise

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Por Michael Roberts, com tradução em A Terra é Redonda

No mês de março deste ano, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, delineou a política econômica internacional do governo americano. Fez um discurso fundamental porque, como graduado funcionário, nele explicou em que consiste o chamado de “Novo Consenso de Washington” sobre a política externa dos EUA.

O Consenso de Washington original constituía-se de um conjunto de dez prescrições de política econômica consideradas como um pacote de reformas “padrão” destinado aos países em desenvolvimento em crise de crescimento. Ele seria fomentado por instituições sediadas em Washington, D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Tesouro dos EUA. O termo foi usado pela primeira vez, em 1989, pelo economista inglês John Williamson.

As prescrições abrangeram políticas de promoção do livre mercado, como a “liberalização” comercial e financeira e a privatização de ativos estatais. Recomendavam também políticas monetárias e de gasto público destinadas a minimizar os déficits orçamentários e a despesa pública. Era o modelo de política neoclássico aplicado ao mundo e imposto aos países pobres pelo imperialismo norte-americano e suas instituições aliadas. A chave era o “livre comércio” sem tarifas e outras barreiras, o livre fluxo de capitais e a regulação mínima – um modelo que beneficiava especificamente a posição hegemônica dos EUA.

Mas as coisas mudaram desde a década de 1990 – em particular, com a ascensão da China como uma potência econômica rival globalmente, mas também diante do fracasso do modelo econômico internacional neoliberal em gerar crescimento econômico e reduzir a desigualdade entre as nações e dentro das nações.

Particularmente desde o fim da Grande Recessão, em 2009, e no correr da Longa Depressão dos anos 2010 em diante, os EUA e as outras economias capitalistas avançadas – normalmente consideradas como líderes – passaram a rastejar. A “globalização”, baseada no rápido aumento do comércio e dos fluxos de capitais, estagnou e se inverteu. O aquecimento global aumentou o risco de catástrofe ambiental e econômica. A ameaça à hegemonia do dólar se expandiu um bocado. Era, pois, necessário um novo “consenso”.

A ascensão da China com um governo e um sistema econômico que não se curva aos desejos dos EUA é um sinal vermelho para os estrategistas norte-americanas. Os números do Banco Mundial abaixo falam por si mesmos. A participação dos EUA no PIB global subiu de 25% para 30% entre 1980 e 2000, mas nas duas primeiras décadas do século XXI caiu para menos de 25%. Nessas duas décadas, a participação da China subiu de menos de 4% para mais de 17% – ou seja, quadruplicou. A participação de outros países do G7 – Japão, Itália, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá – caiu acentuadamente, enquanto os países em desenvolvimento (excluindo a China) estagnaram como proporção do PIB global. E essas participações têm mudado conforme se alteram os preços das commodities e eclodem as crises da dívida.

O Novo Consenso de Washington visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados juniores mediante uma nova abordagem. Eis o que Sullivan assentou: “Diante do agravamento das crises – estagnação econômica, polarização política e emergência climática – uma nova agenda de reconstrução é necessária.” Nesse quadro, os EUA devem manter sua hegemonia, completou, mas é preciso ver que “hegemonia (…) não consiste na capacidade de prevalecer – isso é de dominar os outros – mas na disposição dos outros de nos seguir (sob constrangimento, é claro) e na nossa capacidade de definir a agenda global”. Em outras palavras, os EUA definirão um novo programa e seus parceiros juniores deverão segui-lo – trata-se, pois, de uma aliança dos dispostos a serem liderados. Quem não segue as novas orientações, entretanto, pode enfrentar consequências.

Mas o que é esse novo consenso? O livre comércio e os fluxos de capitais e nenhuma intervenção governamental devem ser substituídos por uma “estratégia industrial” em que os governos intervêm para subsidiar e tributar as empresas capitalistas para que os objetivos nacionais sejam alcançados. Haverá mais controles comerciais e de capital, mais investimento público e mais tributação dos ricos.

Circundando essas metas, de 2020 para frente, cada nação deve se manter por si mesma – isto é, sem pactos globais, mas mediante acordos regionais e bilaterais; não se prescreve mais a livre circulação do capital, mas esse último e o trabalho deverão ser controlados nacionalmente. E em torno disso, novas alianças militares serão necessárias para impor esse novo consenso.

Esse tipo de mudança não é nova na história do capitalismo. Sempre que um país se torna dominante economicamente em escala internacional, ele quer livre comércio e mercados livres para seus bens e serviços, mas quando começa a perder a sua posição relativa, quer passar do livre-comércio para formas de gestão mais protecionistas e nacionalistas.

Em meados do século XIX, o Reino Unido era a potência econômica dominante e defendia o livre comércio e a exportação internacional de seu capital, enquanto as potências econômicas emergentes da Europa e da América (após a guerra civil) contavam com medidas protecionistas e “estratégia industrial” para construir sua base industrial.

No final do século XIX, entretanto, o Reino Unido perdeu o seu domínio e, por isso, passou a defender uma política protecionista. Então, em 1945, depois que os EUA “venceram” a Segunda Guerra Mundial, o consenso Bretton Woods-Washington entrou em cena e a política econômica voltou-se para a “globalização” sob a hegemonia dos EUA. Agora é a vez dos norte-americanos passarem do livre mercado para estratégias protecionistas orientadas pelo governo – mas com uma diferença. Os EUA esperam que seus aliados também sigam o seu caminho e que seus inimigos sejam esmagados como resultado.

Dentro do Novo Consenso de Washington encontra-se uma tentativa de introduzir, ainda sob a égide da economia convencional, o que está sendo chamado de “moderna economia do lado da oferta”. A antiga “economia do lado da oferta” era uma abordagem neoclássica que se opunha à economia keynesiana; ela argumentava que tudo o que era necessário para promover o crescimento eram medidas macroeconômicas, fiscais e monetárias para garantir uma “demanda agregada” suficiente no sistema econômico; se isso ocorria, tudo ficaria bem.

Os economistas mais liberais não gostaram da implicação de que os governos deveriam intervir na economia, argumentando que a macrogestão não funcionaria, mas apenas “distorceria” as forças e os preços de mercado. Nisso eles estavam certos, como mostrou a experiência dos anos 1970 em diante.

A alternativa para promover a economia do lado da oferta era se concentrar no aumento da produtividade e na ampliação do comércio, ou seja, na oferta – e não na procura. No entanto, os mais liberais também se opuseram totalmente à intervenção do governo no abastecimento. O mercado, as empresas e os bancos – argumentavam – poderiam fazer o trabalho de sustentar o crescimento econômico e a renda real, se deixados sozinhos. Isso também se provou falso.

Então, agora, dentro do Novo Consenso de Washington, tem-se pretensamente uma “economia moderna do lado da oferta”. Isso foi delineado pela atual secretária do Tesouro dos EUA e ex-presidente do Federal Reserve, Janet Yellen, em um discurso no Stanford Institute for Economic Policy Research. Janet Yellen é a última neokeynesiana que ainda defende tanto políticas de demanda agregada como medidas do lado da oferta.

Janet Yellen explicou: “o termo ‘moderna economia do lado da oferta’ descreve a estratégia de crescimento econômico do governo Biden; para que entendam, vou contrastá-la com as abordagens keynesianas e tradicionais do lado da oferta”. Dito isso, continuou: “estamos realmente comparando a nossa ‘nova abordagem’ com a ‘tradicional’ economia do lado da oferta”; esta última – notem – buscava expandir o produto potencial da economia por meio de uma desregulamentação agressiva combinada com cortes de impostos destinados a promover o investimento de capital privado”.

Então, o que tem de diferente essa nova política do governo Biden? “A moderna economia do lado da oferta, em contraste com a anterior, prioriza a oferta de trabalho, capital humano, infraestrutura pública, pesquisa e desenvolvimento e investimentos em um ambiente sustentável. A preocupação com essas áreas destina-se a aumentar o crescimento econômico e a resolver problemas estruturais de longo prazo, em particular a desigualdade”.

Janet Yellen descarta assim a velha abordagem: “a nossa nova abordagem é muito mais promissora do que a velha economia do lado da oferta, que vejo como tendo sido uma estratégia fracassada para aumentar o crescimento. Cortes significativos de impostos sobre o capital não alcançaram os ganhos prometidos. E a desregulamentação tem um histórico muito ruim em geral; mas foi muitíssimo ruim no que diz respeito às políticas ambientais – especialmente no que diz respeito à redução das emissões de CO2.” Realmente!

Janet Yellen observa, então, aquilo que foi discutido neste blog [The next recession blog] muitas vezes. “Na última década, o crescimento da produtividade do trabalho nos EUA foi, em média, de apenas 1,1% – cerca de metade do que nos cinquenta anos anteriores. Isso contribuiu para um crescimento lento dos salários e das remunerações, com ganhos históricos especialmente lentos para os trabalhadores na base da distribuição salarial.”

Janet Yellen quer direcionar a preocupação de seu público de economistas do “mainstream” para a natureza específica da moderna economia do lado da oferta. “O potencial de crescimento de longo prazo de um país depende do tamanho de sua força de trabalho, da produtividade de seus trabalhadores, da capacidade de renovação de seus recursos e da estabilidade de seus sistemas políticos”.

Assim, “a moderna economia do lado da oferta busca estimular o crescimento econômico, aumentando a oferta de trabalho e aumentando a produtividade, ao mesmo tempo em que reduz a desigualdade e os danos ambientais. Essencialmente, estamos focados em alcançar um alto crescimento que seja sustentável, que seja inclusivo e verde.” Assim, a “moderna economia do lado da oferta” visa, segundo ela, resolver as falhas do capitalismo no final do século XX e início do XXI.

Porém – pergunta-se – como isso deve ser feito? Basicamente, por meio de subsídios governamentais destinados à indústria. Mas não se entenda por isso que o Estado vai controlar os setores-chave do lado da oferta. Mas sim que ele vai tributar as empresas tanto a nível nacional como por meio de acordos internacionais visando acabar com a evasão fiscal em paraísos fiscais e outros truques de elisão fiscal praticados pelas empresas.

Como disse e em resumo: “a estratégia econômica do governo Biden abraça, em vez de rejeitar, a colaboração com o setor privado por meio de uma combinação de melhores incentivos baseados no mercado e gastos diretos baseados em estratégias empiricamente comprovadas. Por exemplo, um pacote de incentivos e descontos para energia limpa, veículos elétricos e descarbonização incentivará as empresas a fazer esses investimentos críticos para o nosso desenvolvimento.”

Em minha opinião, os “incentivos” e as “regulamentações fiscais” não produzirão mais sucesso do lado da oferta do que a versão neoclássica dessa mesma política porque a estrutura existente de produção e investimento capitalista permanecerá amplamente intocada. A moderna economia do lado da oferta olha para o investimento privado para resolver problemas econômicos, supondo apenas que o governo vai “orientar” esse investimento na direção certa. Mas a estrutura existente depende da rentabilidade do capital. De fato, tributar as empresas e a regulamentação governamental é mais provável que diminua a lucratividade mais do que quaisquer incentivos e subsídios governamentais irão aumentá-la.

A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington combinam a política econômica doméstica e internacional para as principais economias capitalistas em uma aliança daqueles que estão dispostos a colaborar. Mas esse novo modelo econômico não oferece nada aos países que enfrentam níveis crescentes de dívida e custos de serviço que estão levando muitos deles ao calote e à depressão.

O Banco Mundial informou esta semana que o crescimento econômico no Sul Global (fora a China) cairá de 4,1% em 2022 para 2,9% em 2023. Atingidos pela alta inflação, pelo aumento das taxas de juros e por níveis recordes de dívida, muitos países estavam ficando mais pobres. Quatorze países de baixa renda já estão em alto risco de endividamento, contra apenas seis em 2015. “Até o final de 2024, o crescimento da renda per capita em cerca de um terço das economias ditas em desenvolvimento será menor do que era às vésperas da pandemia. Nos países de baixa renda – especialmente os mais pobres – os danos são ainda maiores: em cerca de um terço desses países, a renda per capita em 2024 permanecerá abaixo dos níveis de 2019 em uma média de 6%.”

E não há mudança nas condições de empréstimo do FMI, da OCDE ou do Banco Mundial: espera-se que os países endividados imponham medidas fiscais austeras nos gastos do governo e privatizem as empresas estatais restantes. O cancelamento da dívida não está na agenda do Novo Consenso de Washington… [assim como não está uma renovação da social-democracia].

Além disso, veja-se o que disse Adam Tooze recentemente: “Janet Yellen procurou demarcar as fronteiras para que a competição e a cooperação sejam saudáveis, mas não deixou dúvidas de que a segurança nacional, hoje como sempre, supera qualquer outra consideração por parte de Washington”. A moderna economia do lado da oferta e o Novo Consenso de Washington são modelos, não para que haja melhores condições econômicas e ambientais para o mundo como um todo, mas para oferecer uma nova estratégia global que seja capaz de sustentar o capitalismo nos EUA, ou seja, em casa, e para sustentar o imperialismo desse país, no exterior.

Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The great recession: a marxist view.

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente em The next recession blog.

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