A marcante (porém esquecida) presença chinesa no Brasil

Por séculos, ela influenciou arte, arquitetura e costumes. Foi diluída pelo embranquecimento, a partir do século XIX. Sua marca, notada num conto de Guimarães Rosa, está descrita em detalhes num livro que vale conhecer

Dragão de luminária na Igreja do Pilar, Ouro Preto, com evidente influência chinesa. Nas artes, ela está presente em especial no barroco miniero
.

Por Alexandre G. de B. Figueiredo, no A Terra é Redonda

“Tudo cabe no globo”, diz o narrador de Orientação, conto de João Guimarães Rosa publicado em Tutaméia. A expressão era também uma explicação para um fato um tanto extraordinário: a presença de um chinês -“vivido, vindo, ido” – no sertão de Minas Gerais. O conto de Rosa tem como pano de fundo justamente o choque e o estranhamento entre os dois mundos já de si muito distantes e diferentes. Mas as dessemelhanças escondem, à primeira vista, as proximidades, os laços e as influências que existem.

No último dia 15 de agosto, foram celebrados os 120 anos da imigração chinesa no Brasil. Trata-se da data de entrada no porto do Rio de Janeiro do navio Malange, em 1900, vindo de Lisboa com imigrantes chineses na sua tripulação. A data é significativa para demarcar uma posição de amizade e cooperação em um contexto em que atores do governo federal brasileiro se esforçam no sentido oposto. Contudo, trata-se apenas de um marco oficial. Muito antes do século XX, mesmo quando poucos ou nenhum chinês seria encontrado por aqui, havia sua marca na arte e no cotidiano dos habitantes do Brasil.

Rugendas, quando viajou pelo país acompanhando a expedição Langsdorff na década de 1820, desenhou chineses trabalhando em uma plantação de chá no Rio de Janeiro ao lado de escravos negros. Quantos olhares e culturas distintas se cruzam na mesma cena? O que passava pela cabeça desses mundos que se olhavam pela primeira vez? O europeu, o escravo africano e o asiático cruzavam seus olhares e histórias em uma terra muito distante de onde haviam nascido.

Cristos chineses, em peça de mobiliário no Museu da Ordem Terceira do Carmo
de Cachoeira (BA) — Foto Adélia Soares

A gravura esconde a extrema violência que marcava o cotidiano do trabalho certamente também para aqueles chineses. Não sabemos se a representação deles em roupas típicas e bem feitas em contraste com o torso nu dos escravos negros eram uma realidade ou uma interpretação em uma imagem concluída apenas em 1835, mais de 10 anos depois da cena que chamou atenção de Rugendas. De todo modo, naquele contexto em que ainda não existia o “Brasil”, a presença dos chineses trabalhando ao lado dos escravos, de onde se origina a maior parte da população do país contemporâneo, mostra uma história mais longa dos contatos e estranhamentos.

Ainda são muito poucas as pesquisas que tratam desse tema. O que não é surpreendente, já que mesmo a memória e a influência dos povos originários e dos escravizados só há pouco tempo ganharam mais espaço na universidade, que ainda não transbordou para o ensino público em geral, apesar dos esforços e legislação nesse sentido. Por isso, não espanta que estudos sobre a presença da China no Brasil sejam raros.

Uma exceção é a obra do professor José Roberto Teixeira Leite, publicado pela Unicamp na década de 1990. A pesquisa, A China no BrasilInfluências, Marcas, Ecos e Sobrevivências Chinesas na Sociedade e na Arte Brasileiras, continua atual e, sobretudo, necessária. Nela, estão apresentadas e mapeadas a presença chinesa na arte colonial brasileira, em especial a arte sacra, e no cotidiano da população. Ecos da antiga rota da seda: navios vindos da China chegavam a Salvador, então capital da colônia, carregados de porcelanas, leques e, claro, seda.

Telhados em forma de pagode, Rio de Janeiro, 1818. Ilustração de Jean Baptiste Debret

Para além dos produtos em si, vinham também as influências. Em diversas cidades de nove estados do país, como Bahia, Minas Gerais e São Paulo, são encontradas as chamadas “chinesices” (ou chinoiseries), introduzidas entre os séculos XVI e XIX. São marcas na arte sacra, na arquitetura, que refletem a influência do oriente em, por exemplo, rostos dos santos e dragões esculpidos em templos. A igreja de Nossa Sonhara do Rosário, em Embu das Artes, próxima a São Paulo, dentre outras, possui chinesices.

Também existiam evidências dessa presença no cotidiano, tais como o hábito de empinar pipas, estourar fogos de artifício (já conhecidos no Brasil colonial), usar roupas de seda ornamentadas e coloridas e até mesmo homens ricos ostentando unhas exageradamente compridas, para mostrar que não precisavam fazer trabalhos manuais, tal qual os mandarins da China. Ou seja, as marcas do contato com a China estão presentes entre nós desde os momentos fundadores.

Portanto, o estranhamento não se deve exclusivamente às disparidades entre os povos. O Brasil é formado pela integração de diferenças, mesmo que violentamente. Como escreveu Leopoldo Zea, se há uma identidade para nós é justamente a de termos todas as identidades juntas, em constante processo de transculturação[i]. O estranhamento se deve mais a uma opção tomada pelo estado imperial, ainda no século XIX, de se apresentar como “europeu”, negando todas as outras identidades que confluíram no Brasil e na sua multiplicidade.

O personagem do conto de Rosa, citado no início, é descrito como o representante de uma civilização milenar. Era ético, sábio, observador, educado, trabalhador: “sábio como sal no saleiro, bem inclinado. Polvilhava de mais alma as maneiras, sem pressa, com velocidade. Sabia pensar de-banda? Dele a gente gostava. O chinês tem outro modo de ter cara”.

Cristo chinês. Museu da ordem terceira do Carmo de Cachoeira (BA)

Cozinhava para o Dr. Dayrell, engenheiro de nome inglês. Rosa não explicita esse ponto, mas foram muitos os engenheiros ingleses que vieram ao Brasil trabalhar na construção de ferrovias (o Império Britânico exercia seu poder sobre o Brasil e, de forma ainda mais cruel e direta, sobre a China). O personagem se chamava Yao Tsing-Lao e, aqui, acabou sendo Joaquim, o Sêo Quim. Diligente, conseguiu comprar terras e tornar-se chacareiro.

Seu mundo se abala quando se apaixona por uma sertaneja, a Rita Rola, o oposto da personalidade do Quim: feia, sem modos, falava muito (seria ela uma visão mais crítica de Rosa sobre todos nós?). Justamente por isso, o casamento dos dois soa estranho ao narrador do conto… um chinês e uma sertaneja. No fim, a união se desfez e Quim foi embora, deixando tudo para a esposa.

Deixou, apesar nas negativas da esposa em aceitá-lo, uma herança cultural que Lita só assumiu depois da sua partida. Como aponta um ensaio da professora Walnice Galvão, não foi Quim quem se sertanizou, mas o sertão que se “orientou”, para explorar a riqueza semântica da palavra escolhida por Rosa para o título. Quim deixou para Rita, que vai se tornando a Lola Lita (como o chinês “silabava” seu nome), um “grão de fermento”, um “fino de bússola”, uma orientação, portanto. O casal não teve filhos, mas o contato melhorou o sertão[ii].

Hoje, quando muito se explora a imagem ressuscitada de um “perigo amarelo”, a história de Rosa e trajetória secular da presença chinesa no Brasil mostram que, apesar das diferenças que existem, há uma infinidade de caminhos de cooperação e amizade a seguir, em benefício do Brasil. Ao contrário da visão estreita do fundamentalismo de direita no poder, “tudo cabe no globo”.

*Alexandre G. de B. Figueiredo é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP).

Notas

[i] Zea, Leopoldo. El PensamientoLatinoamericano.

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200009.htm

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