A essência rebelde do “Breque dos Apps”

Duas cientistas sociais que acompanharam movimento dos entregadores registram: ao se rebelarem contra sistema que os explora, aprisiona e humilha, eles abrem caminho para nova pauta anti-sistema, na era do “capitalismo de plataformas” — e de bicos

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Pro Ana Claudia Moreira Cardoso e Paula Freitas de Almeida, na Revista Escuta

“A gente está pedindo o básico”. Essa é uma fala recorrente entre os trabalhadores e trabalhadoras das empresas detentoras de plataforma digital (empresas-plataforma) que realizaram a greve no último dia 1º de julho (o Breque dos Apps) e foi também a expressão do Alessandro Sorriso[1], liderança sindical no Distrito Federal. Esse breve texto é um esforço de análise do movimento, que contou com a importante narrativa do Sorriso sobre as ações prévias de mobilização, suas inquietudes e perspectivas. Partimos do olhar para o processo de construção da greve e da sua realização, considerando, ainda, seu significado para a luta desses trabalhadores e para toda a sociedade.

Sorriso nos fala sobre a grande precarização do trabalho no setor como motivação para a paralisação nacional. Para ele, hoje, assim como antes, a exploração do trabalho pelo capital faz a identidade entre os trabalhadores por seus sofrimentos – “o sofrimento é comum, é de todos, e a gente começou a se organizar com gente de outros Estados; onde não tinha associação, os entregadores mesmo se organizaram, as associações que já existiam ajudaram”, diz Sorriso.

A solidariedade foi estrutural na organização coletiva e nacional do movimento, mas o “sofrimento comum” foi sua força motriz. Parece enganar-se quem reduz a organização sindical a um modelo ultrapassado do “chão da fábrica” fordista. A flexibilização do trabalho, a fragmentação produtiva, a rotatividade, a terceirização e a perda de direitos são dificuldades que intensificam o mal presente na origem, mas afloraram o que está na essência: quando não há direito do trabalho assegurado pelo Estado, o capital se apropria do trabalho, o explora ao máximo e, depois, o descarta.

O sofrimento comum que resulta da apropriação do trabalho pelo capital é a causa de identificação entre os trabalhadores; a agremiação é o modo de resistir, se fortalecer, ter a esperança de que o futuro será melhor e, por isso, permanecer na luta. Sorriso mostrou a importância da esperança e da persistência que lhe segue: “antes da paralisação nacional, a gente tentou paralisar local, aqui no DF foram duas que não surtiram efeito. A gente começou a se organizar com outras associações de outros Estados”. É simples, não é que lhes falte um lugar de trabalho, trata-se de estarem em todos os lugares, em todas as ruas, de todo o território nacional. A tecnologia usada para lhes explorar é aquela usada para resistir, é a mesma usada para se organizarem coletivamente para lutar pelo fim do seu sofrimento.

A primeira explicação sobre a pauta, sobre pedir o básico, soa quase como uma justificativa, ao tempo em que expressa uma incompreensão de porque não lhes é dado esse mínimo. Há tanto trabalho, tanto lucro para as empresas, tanto empenho  na satisfação e no conforto dos clientes, que ficam em suas casas protegidos enquanto os trabalhadores, como Sorriso, diariamente se jogam à própria sorte diante dos riscos da atividade assumidos individualmente, dos riscos da violência urbana e da violência no trânsito, dos riscos em correr para alcançar as metas, garantir a satisfação do cliente, não ser bloqueado.

A incompreensão recai sobre o seguinte ponto: por que negar o básico – comida, água, banheiro, valor mínimo para remuneração do trabalho? A pergunta eleva a discussão a um outro patamar. Primeiro, se evidencia a invisibilidade institucional caracterizada pelo não reconhecimento do direito ao sistema de proteção social e do trabalho àqueles que trabalham para a empresa detentora da plataforma digital. Além disso, se evidencia o caráter retórico do discurso empresarial do auto-empreendedorismo, da autonomia e da flexibilidade.

O contexto é de aprofundamento do neoliberalismo. Trata-se de buscar a extinção de toda e qualquer instituição que possa representar limites ao modo do capital se apropriar, gerir e explorar a força de trabalho. No Brasil, foi feita a extinção do Ministério do Trabalho, foi proposta a extinção da Justiça do Trabalho, diariamente se inventam formas de enfraquecer os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e a Auditoria Fiscal do Trabalho. Além disso, se deteriora a condição social das relações de trabalho mais tradicionais, se busca impedir que as novas formas de trabalho sejam caracterizadas como o que são, relação de emprego.

As plataformas digitais aproveitam este cenário, também usando a retórica para se apresentarem como um modelo de negócio pautado no uso das novas tecnologias que mediam a relação entre o consumidor e o empreendedor da sua própria força de trabalho. Tratam-se, em verdade, de tecnologias que permitem o total controle de todo o processo de trabalho, transferindo os custos da exploração econômica da atividade para os trabalhadores, mantido o total controle sobre a organização e gestão do processo produtivo. Esse modelo de negócio é o que vem caracterizando o chamado capitalismo de plataforma (Srnicek, Nick, 2018). As leis trabalhistas e sua aplicação é que podem figurar como limite às suas ações: assalariamento, limitação do tempo de trabalho, preservação da saúde e higidez do trabalhador.

A dinâmica de funcionamento da plataforma digital é estabelecida a partir de mecanismos totalmente voltados à sua supervalorização. No âmbito do valor acionário da empresa, gestam o banco de dados construído a partir de informações dos usuários, consumidores e trabalhadores que, a cada acesso a alguma plataforma, deixam seus dados pessoais, avaliações, comentários, preferências, caminhos ou indicação de amigos. O objetivo é ampliar suas capacidades preditivas, isto é, a possibilidade de determinar a probabilidade de resultados futuros, baseada em dados do passado.

A geração de valor da plataforma digital também é assegurada pela hiperexploração dos trabalhadores. O discurso que lhes nega direitos é operado pelos algoritmos (geridos pelas plataformas) que calculam o quão precarizada pode ser a realização do trabalho. A subordinação se materializa no modo de ser do trabalho determinado unilateralmente pelas empresas detentoras de plataformas digitais: definem quem entra, quem sai, quem é suspenso, o tempo de realização de cada atividade, o valor a ser pago por cada atividade, as punições por ficar offline, os bônus a serem recebidos. A relação é despótica e impõe uma vivência de um trabalho intenso, pressionado, precário e incerto – que nada tem a ver com a liberdade e o ganho fácil propalados pelas plataformas. É essa distância entre o discurso e o cotidiano que tem levado os trabalhadores a progressivamente se mobilizarem e a reivindicarem melhores condições laborais.

Dados concretos da realidade desses trabalhadores na pandemia podem ser encontrados na pesquisa realizada pelo GT Trabalho Digital/REMIR[2]. Foram pesquisados aspectos  sobre as condições laborais dos entregadores das principais empresas detentoras de plataformas digitais no Brasil, especialmente iFood, Uber Eats, Rappi e Loggi, durante a pandemia da COVID-19. Os aspectos sobre rendimento, tempo de trabalho e medidas de proteção que foram objeto da pesquisa também são alguns dos pontos da pauta de reivindicações.

A pauta da greve trouxe questões econômicas – historicamente presente nas negociações coletivas da classe trabalhadora: melhoria no valor do frete, aumento da taxa mínima para cada corrida e ticket alimentação. Na pesquisa, 47% dos respondentes afirmaram receber até R$ 520,00, por semana. Durante a pandemia, 25% dos respondentes tiveram seus rendimentos reduzidos para esse mesmo patamar, totalizando 72% dos respondentes ganhando este teto semanal, com um aumento de 100% daqueles que auferiram R$ 260,00 por semana. As reduções também alcançaram os bônus para 49% dos respondentes; para outros 46% estes foram mantidos no mesmo valor.

Os dados mostram uma queda acentuada do rendimento, apesar das empresas declararem o aumento da sua demanda. De acordo com os entregadores, também houve a contratação de grande número de novos trabalhadores durante a pandemia, se ampliando a base de força de trabalho disponível para o uso das empresas. É o crescimento dessa oferta de trabalho sem possibilidade de se realocar em outro setor durante a pandemia que cria as condições adequadas de maior mercantilização da força de trabalho: se há muitos dispostos a trabalhar, se pode pagar menos – é a lei da oferta e da procura aplicada à condição humana do trabalhador.

Vê-se que, ao contrário do que o nome empreendedor sugere, a insuficiência dos rendimentos para a sobrevivência dos entregadores, que os aprisiona na lógica do trabalho continuado e ininterrupto, ditado pela rigidez da necessidade. Sua condição social piora quando os custos decorrentes dos riscos inerentes à atividade alcançam suas rodas: renda variável, de padrão rebaixado, com risco acidentário incapacitante ou fatal, deterioração material do patrimônio pessoal do trabalhador apropriado como instrumento de trabalho, exigência de uma infraestrutura com internet e celular, manuseado durante as corridas, violando leis de trânsito e expondo ainda mais as suas vidas. Gastos outros com seguro do bem, da vida, combustível, refeição.

No âmbito da jornada laboral, a dinâmica da mercantilização da força de trabalho repercute na redução das chamadas para entregas, apesar da manutenção das longas jornadas de trabalho: mais de 60% dos respondentes disseram trabalhar mais do que 09 horas por dia. Destes, 24% laboram de 09 a 10 horas, 21% de 11 a 12 horas, 9% de 13 a 14 horas e, ainda, quase 8% mais do que 15 horas. Para 78% dos entregadores, essas horas se multiplicam por 6 ou 7 dias por semana. Com esta extensa jornada cotidiana cai por terra o falso discurso das plataformas a respeito da flexibilidade do tempo de trabalho ou da condição de “bico”. Na realidade, o valor extremamente baixo já contêm a necessidade de uma jornada de trabalho muito extensa.

Um segundo bloco de reivindicações traz demandas relacionadas ao fim dos bloqueios indevidos e fim da pontuação. É um dos elementos dinâmicos que bem caracterizam a natureza despótica da relação. Os bloqueios são uma prática das empresas-plataforma, em geral. De acordo com os relatos dos trabalhadores nos grupos de Whatsapp, assim como em diversas entrevistas que circulam nas mídias, vê-se que as plataformas não informam aos trabalhadores o motivo da sanção, inviabilizando qualquer contra-argumento ou defesa. Além disso, a insuficiência de meios de comunicação com a empresa – quase nunca existe um número de telefone ou um escritório -, faz com que os trabalhadores fiquem à mercê das decisões unilaterais.

O mesmo ocorre com as avaliações. As empresas permitem que as avaliações sejam realizadas pelos clientes e assim se eximem do vínculo de responsabilidade sobre a qualidade do serviço. Contraditoriamente, usam essas avaliações para definirem ganhos de bônus, redirecionamento ou não aos “melhores” clientes e corridas (com uso de critérios eivados de preconceitos social e racial) e até mesmo o desligamento sumário destes trabalhadores. Sem conhecer o motivo, o trabalhador tem que acatar.

Um terceiro bloco é constituído por reivindicações sobre a necessidade de seguro de vida, seguro de acidentes e seguro contra roubo. A Ifood declarou ter criado um fundo com 2 milhões de reais para as medidas de proteção contra a Covid-19, assim como teria passado a pagar um seguro contra acidentes pessoais, inclusive na volta para casa[3]. Ocorre que os fundos somente foram criados depois que a Ifood reverteu decisão judicial que a obrigava ao pagamento de assistência financeira aos trabalhadores afastados, o que poderia levar a um custo de 150 milhões. Quanto ao seguro, o Galo, o líder do movimento antifascista, divulga amplamente em suas entrevistas a dificuldade para se conseguir acionar o seguro e concretizar o seu recebimento.

O que se tem com o Breque, portanto, é uma ação coletiva coordenada pelos trabalhadores que se apresenta como um movimento de luta, de fortalecimento das esperanças de que ainda se pode sonhar. O sonho do Sorriso perpassa por “ser duas rodas”, mas sem “sofrimento, sem humilhação”. O que se quer são direitos mínimos que devem ser dados a qualquer trabalhador, mas isso é só o primeiro modo de se mostrar respeito. Sorriso não quer mais perder colegas para danos irreversíveis, sem auxílio. Também quer o respeito da sociedade, ter um banheiro para usar sem ser tocado para fora pelos seguranças dos shoppings ou pelos donos de estabelecimentos. Galo também quer ser respeitado[4], quer ser político de rua e encontrar outros “manxs” para lutar consigo. Eles sonham e não sonham sós.

A greve de que ambos participaram mudou algo na sociedade brasileira, chamou a atenção da grande mídia, dos principais veículos de comunicação, das mídias independentes. Teve o apoio dos acadêmicos, das instituições trabalhistas, dos indivíduos que assinaram cartas de apoios, fizeram suas manifestações nas redes, avaliaram mal os aplicativos e lhes deixaram recados. Até mesmo muitos donos de estabelecimentos deixaram de contratar os serviços das plataformas digitais nesse dia. O apoio também chegou de outros países, como relatou Sorriso: veio da Argentina, do Chile, da Costa Rica.

Agora, virão as repercussões concretas nas relações com as empresas-plataformas: cederão aos pontos de pauta, enrijecerão sua política de punição, manterão as pressões para precarização? A luta não é pequena: é contra os grandes oligopólios das plataformas digitais que pressionam a economia política dos Estados nacionais, fazem frente ao Estado protetor, utilizam a inteligência artificial e a jurimetria para influenciar a formação jurisprudencial.

A greve do dia 1º enfrentou esse sistema poderosíssimo e sem dúvida foi bem sucedida. Mas o movimento dos entregadores está apenas começando. Precisa que o Estado assuma seu papel de regulação. Precisa de sua internacionalização e de apoio dos usuários, dos próprios estabelecimentos e das organizações dos trabalhadores.

* Ana Claudia Moreira Cardoso é Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade Paris 8 e pós-doutora pelo Centre de Recherche Sociologique et Politique de Paris. Também é Integrante do GT Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), professora visitante da Universidade de Juiz de Fora (UFJF) e colaboradora da Escuta.

**Paula Freitas de Almeida é Mestre em Filosofia e doutoranda em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Também é integrante do GT Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), consultora jurídica e professora de Direito do Trabalho e Relações de Trabalho no âmbito de pós-graduação e colaboradora da Escuta.

Notas

[1] O Alessandro Sorriso participou de conversa em 02 de julho com a autora Paula Freitas e será a seguir referenciado como Sorriso. Todas as suas falas dizem respeito a esse encontro.

[2] http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/06/74-Texto-do-artigo-568-2-10-20200608.pdf

[3] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/07/01/em-meio-a-greve-ifood-divulga-texto-no-app-sobre-relacao-com-entregadores.htm

[4] https://www.youtube.com/watch?v=SvklXv6lCGk

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