Cinema: A periferia do mundo em efervescência

Na Mostra Internacional de SP, a poesia (e dramas) das periferias globais, vistos fora das lentes ocidentais. Num deles, O compromisso de Hasan, um olhar sensível sobre o turismo religioso a Meca e uma Turquia entre a modernidade e o atraso

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

Uma das principais virtudes da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, desde suas origens, é dar visibilidade a obras vindas da periferia do mundo, isto é, de fora dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Para além do evidente interesse geográfico e antropológico, esses filmes muitas vezes arejam o cinema com formas diferentes de ver e narrar. Vamos a alguns exemplos eloquentes.

O compromisso de Hasan (Turquia), de Semih Kaplanoglu

Às vésperas de partir com a mulher para sua peregrinação a Meca, o agricultor Hasan (Umut Karadag) tenta impedir a instalação de uma torre elétrica de alta tensão em suas terras. Ao mesmo tempo, procura acertar contas com erros do passado, corrigir pequenas e grandes injustiças.

É admirável a maneira como se adensa aos poucos essa parábola em que as grandes questões morais vêm imbricadas com condições histórico-sociais muito concretas (dos agrotóxicos à modernização tecnológica da Turquia, das relações comerciais com a União Europeia ao “turismo religioso” em direção a Meca). Do mesmo diretor de Um doce olhar (ganhador do Urso de Ouro em Berlim, 2010) e Grão (vencedor do Festival de Tóquio, 2017).

Eu vejo você em todos os lugares (Hungria), de Bence Fliegauf

Sete situações breves e independentes uma da outra, todas narrando momentos decisivos de uma história mais ampla apenas sugerida ou aludida. Numa delas, por exemplo, uma adolescente (Lilla Kizlinger, melhor atriz coadjuvante em Berlim) ensaia na frente do pai o discurso que fará num evento na escola, no qual acusará o mesmo pai pela morte da mãe. Em outro, o namorado de uma moça que morreu de câncer ao confiar cegamente num curandeiro natureba de sucesso na internet tenta contratar um assassino profissional para liquidar o charlatão.

Quase todas as histórias são narradas simulando tempo real, com câmera na mão e intensa concentração de tempo e espaço, e dão a impressão de começar no meio, mas o desfecho é sempre desconcertante e iluminador.

Na prisão Evin (Irã), de Mohammed e Mehdi Torab-Beig

Numa grande cidade do Irã, a jovem trans Amen (nascida Amin) quer fazer uma operação que complete sua transição de gênero. Em troca do dinheiro necessário, ela aceita se passar pela filha de um milionário, supostamente para iludir a mãe cega dele e convencê-la a doar ao filho uma mansão fabulosa. Isolada na casa do milionário, Amen vai descobrindo que a história é bem outra, enquanto perde a noção do tempo por causa dos remédios que é forçada a tomar.

A protagonista mergulha num pesadelo sem fim e o espectador mergulha junto, graças à opção radical dos diretores por filmar tudo em câmera subjetiva. De Amen só ouvimos a voz e vemos eventualmente as mãos e os pés. Assim como ela está presa em seu corpo e na casa sinistra, estamos presos no seu olhar. O resultado é tremendo, e ainda mais notável por ser o primeiro longa-metragem dos irmãos Torab-Beig.

Pedregulhos (Índia), de P.S. Vinothraj

Numa região árida do sul da Índia, um homem alcoólatra e violento caminha quilômetros com seu filho pequeno de uma aldeia a outra, em busca da esposa que o abandonou depois de ter sido seguidamente espancada. Nesse périplo por uma região habitada pelo povo tâmil revela-se um mundo duro e agreste: a escola rural em que os alunos assistem às aulas sentados no chão de terra; uma família de mãe, filha e avó que desentocam ratos do campo para comê-los em espetos; mulheres que caminham quilômetros para conseguir água num poço barrento, etc.

O grande acerto desse filme de estreia do diretor, vencedor do Festival de Roterdã, é contrapor ocasionalmente à brutalidade do real o olhar do filho do protagonista, ainda capaz de se encantar com as descobertas e brincar com as miudezas do mundo. Lembra um pouco os filhos de Fabiano em Vidas secas, reforçando um paralelo possível com o livro de Graciliano Ramos.

O cão que não se cala (Argentina), de Ana Katz

Sebastian (Daniel Katz), argentino na faixa dos trinta anos, vaga de um subemprego a outro, de uma cidade a outra, com dificuldade para encontrar um rumo na vida. Suas decisões são movidas mais por impulsos e afetos do que pela razão pragmática. Uma mudança mais radical surge quando ele se junta a uma mulher e tem um filho, o que coincide com o advento de uma estranha epidemia respiratória, que obriga as pessoas a usarem capacetes transparentes ou a caminhar agachadas, com a cabeça a menos de 1,20m do chão.

A maneira como o absurdo emerge de um cotidiano banal (como ocorre em boa parte da literatura argentina) é um dos atrativos desse filme estranho, filmado em preto e branco e com um andamento elíptico, em que as passagens de tempo são marcadas principalmente pelas mudanças no aspecto físico do protagonista. O filme anterior da diretora, Sueño Florianópolis, foi rodado no Brasil, tendo Marco Ricca e Andrea Beltrão no elenco binacional.

Esta terra

A boa notícia é que, apesar dos percalços da pandemia e dos ataques sistemáticos que tem sofrido por parte do governo federal, o cinema brasileiro continua muito vivo, vigoroso e diversificado. Vários filmes da nova safra estão na mostra de São Paulo. Eis, brevemente, alguns deles.

As verdades, de José Eduardo Belmonte. Uma transposição no mínimo curiosa, para um lugarejo baiano, do conto “Dentro do bosque”, do japonês Ryunosuke Akutagawa, o mesmo que inspirou Rashomon, de Kurosawa. Um delegado recém-empossado (Lázaro Ramos) investiga um crime duplo ocorrido num descampado: o assassinato de um político e o estupro de sua mulher. Política, sexo e morte entrelaçados com habilidade.

Mares do desterro, de Sandra Alves. Isolada numa praia selvagem, uma família é confrontada com seus demônios: um rapaz é mantido preso num barracão e tratado como bicho, supostamente por ter violado uma de suas duas irmãs. Mas, como se revelará, a história é mais feia e complicada. A primeira parte, elíptica e silenciosa, contrasta com a lavação de roupa suja, quase um psicodrama, da parte final, mas isso não tira a força do filme em criar um universo próprio, denso e convincente, com ressonâncias bíblicas. Rodado em preto e branco, é uma das obras plasticamente mais bonitas do cinema brasileiro recente.

Mundo novo, de Alvaro Campos. Em plena pandemia de covid, um rapaz branco (Nino Bastida), grafiteiro de Santa Tereza, namora uma advogada negra um pouco mais velha (Tati Villela). Eles juntam suas economias para comprar financiado um apartamento no Leblon. Precisam que o irmão dele, um analista de mercado casado com um livreiro, assine como fiador. No jantar em que tratam a questão, na casa do irmão, vêm à tona as muitas fraturas (sociais, geográficas, raciais, de gênero) de uma cidade partida. Bela produção de baixo orçamento, rodada em preto e branco, com participação do grupo Nós do Morro.

Sol, de Lô Politi. Durante suas férias com a filha pré-adolescente (Malu Landim), um desenhista que vive em Salvador (Rômulo Braga) recebe a notícia de que seu pai (Everaldo Pontes), que ele mal conheceu, tentou se matar e está internado num hospital no interior baiano. Esse reencontro espinhoso com o passado é mediado e transformado pela presença da filha. O que há de clichê nesse drama é compensado pela ambientação envolvente e pela competência do elenco.

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