E o automóvel já mata mais que as armas de fogo…

Levantamento mostra como é letal a mercadoria-símbolo do capitalismo. E tudo pode piorar, caso mude o Código de Trânsito. Leia também: como os “lobbies” sequestram a política; terreno da UFRJ pode ser concedido ao Sírio Libanês

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

Foto: arquivo Agência Brasil

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MAIS FATAL QUE ARMAS DE FOGO

Entre 1998 e 2018, foram registrados 734.938 óbitos por acidentes de trânsito no Brasil. Para se ter ideia de quão comum esse tipo de desastre se tornou, em média, a cada 15 minutos alguém morre nas ruas e estradas do país. O número ultrapassa o de homicídios por armas de fogo, que chegou a 726 mil nesse período. O perfil da vítima fatal do trânsito brasileiro é jovem: 40% dos mortos tinham até 29 anos.

Nas últimas duas décadas, o SUS arcou com 2,8 milhões de procedimentos médicos relacionados ao trânsito. O custo total, corrigido pela inflação, fica em R$ 5,3 bilhões – bem acima do total gasto com o programa Mais Médicos no ano passado (R$ 3,5 bi). 

No acumulado do período, as maiores vítimas fatais foram os pedestres (24,7%). Mas desde 2009, eles têm sido substituídos pelos motociclistas no topo do ranking de óbitos. A frota de motos quase triplicou em 13 anos. Em 2018, as ocorrências envolvendo motociclistas já respondiam a 55% dos gastos do SUS com esses acidentes. Em 2017, eles representavam 34% das vítimas fatais. 

O levantamento foi feito pelo jornal O Globo, que também conversou com especialistas que temem piora nesse cenário caso as alterações no Código de Trânsito propostas por Jair Bolsonaro sejam aprovadas no Congresso. De acordo com a OMS, o uso da cadeirinha reduz as mortes em até 60%. Já segundo o SOS Estradas, houve redução de 34% nos acidentes envolvendo caminhões nas rodovias federais após a instituição do exame toxicológico, em 2015. Abolir a obrigatoriedade do exame é um dos itens da agenda do presidente, que também quer aumentar o limite de pontos da carteira e diminuir a quantidade de radares – o que deve estimular os motoristas a exceder os limites de velocidade, principal fator dos acidentes de trânsito. O governo também quer flexibilizar a punição para motociclistas que andam com capacete sem viseira ou óculos de proteção e transportam mercadorias em desacordo com as normas. 

REGULAMENTAR O LOBBY

A bancada ruralista foi apresentada como grande ‘case’ de sucesso em um Congresso de Relações Governamentais, que discutiu lobby em São Paulo. A repórter Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública, esteve lá e contou tudo. Representantes do Instituto Pensar Agro – ligado à Frente Parlamentar Agropecuária – deram uma pequena aula sobre como acreditam que devem funcionar as coisas: “Um dia chegamos no governo do PT e tivemos que conversar um problema. Teve porta aberta? Não. Conseguimos buscar interlocutores? Não. Foi quando fizemos esse diagnóstico: temos uma Constituição parlamentarista, o poder está nas mãos do Congresso”, disse João Henrique Hummel, diretor-executivo do Instituto, que já se infiltrou entre os deputados para votar uma proposta na Câmara. De acordo com ele, antes 90% do trabalho era “reativo, só correr atrás do prejuízo e tentar resolver”, enquanto hoje  “mais de 60% do que a gente faz é propositivo, somos nós que escrevemos”.

Segundo a repórter, havia representes de empresas como Danone, Porto Seguro, Roche, Syngenta e Dow Chemicals, e os dois dias de palestras deixaram claro que os lobistas brasileiros querem ‘sair das sombras’ e melhorar sua reputação. “Os caras [o governo] foram eleitos pelas redes sociais, se comunicam com a população o dia inteiro por elas, exercem o mandato pelas redes sociais, não estão nem preocupados com o que estão discutindo no plenário, querem dizer o que estão fazendo e defendendo. E a gente não pode falar nada, escrever nada, tem que continuar falando baixinho e se reunindo secretamente com a, b ou c. Não, gente!”, disse um representante da IBM. 

O aumento da transparência é apontado como uma das soluções, e, para isso, um caminho seria a regulamentação, que é pauta no Congresso há 30 anos. Em uma entrevista ao mesmo site, o professor de Ciência Política na UFMR Manoel Santos, um dos principais estudiosos do lobby no Brasil, diz que regulamentar é mesmo preciso. Mas como garantir que grupos economicamente mais poderosos tenham tanto acesso ao ‘jogo’ quanto os que têm menos recursos, como movimentos sociais? Para ele, embora a regulamentação possa oferecer transparência e criar condições para decisões mais justas  “a desigualdade econômica se projeta no sistema político”. 

FRAUDE E AMBIÇÃO

Na última sexta, um juiz estabeleceu a data do julgamento de Elizabeth Holmes, que pode ser condenada a até 20 anos de prisão. Talvez você nunca tenha ouvido falar nela, que é a ‘estrela’ de um documentário que estreia hoje na HBO. O filme conta a ascensão e queda da Theranos, startup fundada e dirigida por Holmes, que tinha como objetivo revolucionar diagnósticos, substituindo o tradicional exame de sangue feito em unidades especializadas por kits portáteis que precisariam apenas de poucas gotas para cravar resultados. Era mentira. Mas uma mentira que chegou a ser avaliada em US$ 9 bilhões antes de ser descoberta. 

“A Inventora: à procura de sangue no Vale do Silício”, dirigido por Alex Gibney, mostra até que ponto o lobby pode chegar. A despeito das sucessivas recusas de aprovação dos testes pela agência reguladora dos EUA, a Theranos conseguiu fechar um acordo comercial com a rede de farmácias Walgreens para vender seus produtos no Arizona – e, pior: as empresas conseguiram passar uma lei naquele estado dispensando o pedido médico para os exames.

PRIVATARIA

Em sua coluna n´O Globo, Élio Gaspari comentou a possibilidade de que o terreno do antigo Canecão, que pertence à UFRJ,  seja concedido ao Sírio Libanês para a instalação de uma filial carioca do hospital: “No século passado, quando o Rio tinha a elite médica do país, a Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil funcionava ali perto, e grandes doutores como Oswaldo Cruz, Paulo Niemeyer e Ivo Pitanguy associavam sua fama à medicina pública. A essa época a Faculdade de Medicina de São Paulo começava a crescer, associada ao seu Hospital das Clínicas (público). Do HC irradiou-se uma competência que ajudou a produzir hospitais como o Sírio, o Einstein e a Beneficência Portuguesa (BP). No Rio, o Hospital das Clínicas claudica há mais de 50 anos, e a grande medicina privada ficou para trás, junto à pública. Conceder o terreno do Canecão ao Sírio — ou a qualquer hospital de endinheirados — é debochar da História. Se o Sírio entrar no negócio e quiser fazer um hospital para atender sobretudo a pacientes do SUS, parabéns. Se a universidade precisa de dinheiro, deve conceder o terreno a quem pagar melhor. Se um hospital abonado precisa de espaço, pode comprá-lo, onde bem entender. Fora disso, é pura privataria, lustrando a medicina de quem pode pagar, à custa do patrimônio da Viúva.”

DE PONTA

O Brasil vai ter um novo centro dedicado a pesquisas de arbovírus, aqueles transmitidos por insetos. Chama-se CADDE, é financiado pela Fapesp e coordenado por Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical da USP. Vai reunir pesquisadores do Brasil e do Reino Unido. Um deles é Nuno Faria, da Universidade de Oxford, que em entrevista à Época listou os principais focos de investigação.

O pico de casos de dengue em 2019 será explicado. Já se tem duas hipóteses: dados preliminares confirmam que houve uma nova linhagem da dengue tipo 2 vinda do Caribe. Ela teria chegado ao Brasil e encontrado uma grande população suscetível. Outra explicação tem a ver com a zica. Pessoas infectadas por esse vírus teriam desenvolvido pré-disposição para quadros mais severos da dengue.  

Além disso, os pesquisadores pretendem antecipar o surgimento da próxima linhagem de vírus da febre amarela. Isso porque, de acordo com Faria, entre um surto e outro, existe uma janela, que pode variar entre sete e 14 anos, entre o surgimento da linhagem na Amazônia e sua ‘viagem’ para o resto do país. No caso de São Paulo, espera-se que o próximo surto aconteça em 2024. Como a tendência tem sido baixa adesão à campanha de imunização, a meta será identificar a população sob risco e vaciná-la, impedindo, assim, que se repita o boom de casos de 2016-2017. 

A confirmação pela UFRJ de três casos de infecção pelo vírus mayaro em Niterói (RJ) acendeu o alerta dos cientistas. Prima da chicungunha, a arbovirose pode estar sendo subnotificada, já que não existem ainda protocolos clínicos nem métodos para fazer o rastreio. Existem sugestões de que o mayaro pode causar o próximo surto.   

CHEGOU

Os servidores públicos federais serão obrigados a bater ponto por meio eletrônico. A exigência vai atingir 410 mil funcionários. Ficarão de fora os 146 mil professores das universidades federais – mas não os demais funcionários dessas instituições. Funcionários do alto escalão do governo, com função comissionada (DAS) de número 4 a 6, como secretários, também não estarão sujeitos ao ponto. O processo de implantação para todos os servidores deve durar 12 meses. Mas três órgãos começam hoje com o controle eletrônico: AGU, Ancine e Universidade Federal do Tocantins.

O controle poderá ser feito por computador, pela digital ou por meio de um aplicativo instalado no celular com georreferenciamento, permitindo identificar se o servidor marcou a hora de chegada e saída no seu local de trabalho.
O uso do ponto eletrônico é uma cobrança do Tribunal de Conta da União, feita especificamente para universidades federais e hospitais universitários, que o governo estendeu para toda a administração.

QUEM DEVE?

O déficit previdenciário dos 26 estados mais o Distrito Federal foi de R$ 88,5 bilhões em 2018, segundo um estudo publicado em maio pelo economista Raul Velloso. Como temos acompanhado, para Paulo Guedes é essencial incluir os estados na reforma da Previdência e essa é uma das maiores discussões na tramitação da matéria.

Pois um levantamento do De Olho nos Ruralistas a partir de dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional mostra que a indústria da carne deve praticamente a mesma quantia – R$ 88,1 bilhão – à União.  A conta inclui frigoríficos, pecuaristas, curtumes e comercializadores de carne e de animais vivos. Só os frigoríficos respondem por R$ 42,9 bilhões. A JBS, que, como empresa, ocupava o primeiro lugar entre as devedoras até 2017, conseguiu cair para o meio da tabela depois que, naquele ano, conseguiu um ‘desconto’ de R$ 1,1 bilhão. A reportagem mostra quais são as principais devedoras. 

POUCO A ENSINAR

O Brasil não tem muito a ensinar à Alemanha em termos de conservação ambiental, ao contrário do que disse Jair Bolsonaro. A conclusão, meio óbvia, é didaticamente explicada pela matéria da BBC. Não que a Alemanha seja um exemplo de preservação. Os países da União Europeia abrigam hoje só 5% das florestas mundiais – mas estão assumindo compromissos maiores nesse sentido, enquanto, com Bolsonaro, o Brasil segue o caminho oposto. “O Brasil deu um cavalo de pau no que fazia até agora em questão climática e sai de uma posição em que tentava ajudar (a preservação ambiental) para uma de vilão climático”, diz Marcio Astrini, do Greenpeace.

MÉDICOS COM DEFICIÊNCIA

Uma das mudanças do novo Código de Ética Médica, em vigor há dois meses, é o inciso que garante “direito do médico com deficiência ou com doença, nos limites de suas capacidades e da segurança dos pacientes, exercer a profissão sem ser discriminado“. Uma matéria da BBC fala deste ponto especificamente. Há três anos, um uma campanha no CFM começou com um levantamento sobre a quantidade de médicos e estudantes de Medicina que possuíssem alguma deficiência visual, auditiva ou motora. Foram identificados 512, em um total de 450 mil pessoas. Mas hoje a atuação deles não é simples, e a discriminação começa pela falta de condições de trabalho adequadas, tanto em hospitais como consultórios e unidades básicas de saúde.

EMERGÊNCIA

A Fiocruz foi requisitada pelo Ministério da Saúde para produzir emergencialmente medicamentos essenciais que estavam em falta na rede pública. Ao todo, foram encomendadas mais de 40 milhões de unidades de diversos remédios. 

ANIVERSÁRIO

Dez anos atrás, a primeira versão de uma vacina pneumocócica conjugada foi aprovada no Brasil.  A imunização oferecida pelo SUS atualmente protege contra dez sorotipos da bactéria pneumococo, responsável tanto por quadros como sinusites e conjuntivites, quanto por pneumonia, pericardite e até septicemia. Desde que a vacina passou a ser distribuída da rede pública, houve redução de 40% no número de internações por pneumonia no país e de 70% de queda dos casos de meningite pneumocócica. As doses são aplicadas aos dois, quatro e 12 meses de vida. “As crianças, além de adoecerem com mais frequência, são as que mais transportam o pneumococo e transmitem para outras faixas etárias. Com a vacina, além de ficarem protegidas, elas deixam de portar a bactéria na garganta ou no nariz e deixam de ser transmissoras, diminuindo os casos da bactéria em adultos e idosos. Há, comprovadamente, esse efeito indireto, que chamamos de proteção rebanho”, explica o infectologista Renato Kfouri em entrevista à Agência Brasil

CONTRA A REELABORAÇÃO

Cinco entidades da saúde assinaram uma nota contra a reforma das normas trabalhistas, anunciada pelo governo federal. O texto diz que a decisão pela revisão conta com o apoio das confederações patronais, de grandes bancos e de executivos, ao mesmo tempo em que colocam “contra o muro” as representações sindicais, convidadas a discutir como “simplificar e desburocratizar” as normas. 

LICENÇA PARENTAL

O Ministério Público do Trabalho encaminhou à Procuradoria-Geral da República um projeto que institui no órgão a chamada licença parental. Se o casal quiser, poderá compartilhar o cuidado do bebê: após 120 dias da licença-maternidade o pai assumiria por 60 dias e a mãe retornaria ao trabalho. Hoje, no MPF, os homens têm direito a 20 dias de licença paternidade. A mudança só vale para funcionários, mas a intenção do MPT é que a iniciativa seja exemplo para os demais órgãos públicos e empresas privadas. 

GLIFOSATO

Termina na próxima segunda a consulta pública da Anvisa sobre a manutenção do glifosato em agrotóxicos. A Abrasco divulgou o parecer técnico do seu GT de Saúde e Ambiente, aqui.

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