Profissionais da Saúde contra a “política manicomial” do governo

O país não tem dinheiro para o orçamento e o Ministério da Cidadania destina verba às ditas comunidades terapêuticas. Reincide no apoio a práticas religiosas, alheias inclusive à atenção aos direitos humanos. E o aporte de recursos foi feito sem licitação pública

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O governo federal não perde a oportunidade de beneficiar seus principais apoiadores. Sua última novidade foi a destinação, sem licitação pública, de recursos às chamadas comunidades terapêuticas, entidades cientificamente leigas, muitas vezes associadas a igrejas, com a finalidade de atender a pessoas que possuem problemas relacionados ao álcool e outras drogas. A iniciativa foi do ministério da Cidadania.

As “comunidades” tiveram agora o aporte de mais de 89 milhões de reais de dinheiro público, protestou, em nota, a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Os recursos públicos estão no fundo poço, dizem os profissionais da Saúde, e o governo ainda os desperdiça. Ao mesmo tempo, “vemos a Rede de Saúde Mental territorial desfinanciada, estagnada e ainda sendo desmontada”.

O trabalho como o das comunidades terapêuticas vai contra as evidências científicas disponíveis. A Organização Mundial da Saúde indica que as ofertas de cuidados para populações associadas a álcool e outras drogas devem ser integradas entre serviços de saúde mental e assistência social, numa perspectiva comunitária e territorializada. Ou seja, algo diametralmente oposto à iniciativa tomada pela atual Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas.

Para não dizer pior: que existem inúmeros relatos e estudos descrevendo práticas ineficazes ou mesmo violações de direitos humanos possivelmente realizadas por estas instituições. Suspeitas dessa natureza são apresentadas por diversos Conselhos Regionais de Psicologia e pelo próprio Conselho Federal de Psicologia, entre 2011 e 2018. Um exemplo do que afirmam esses relatos é a laborterapia, trabalho institucional no qual se substitui a contratação de profissionais por mão de obra dos internos.

Também se mencionam procedimentos como leitura de bíblias, realização de cultos e orações e, enfim, ausência de projetos terapêuticos afins à cultura científica. Quanto à dispensa de licitação, explica a Abrasco, não faz nenhum sentido. Se justificaria no caso de “fornecedor exclusivo” e “notória especialização”. Mas as tais comunidades não são nenhuma das duas coisas: nem especializados nem exclusivos.

Em suma, o financiamento de comunidades terapêuticas, a partir do orçamento público, é algo bem complicado, como disse a Outra Saúde Deivisson Viana, vice-presidente da Abrasco, integrante do Grupo Temático Saúde Mental, e professor da UFPR. “Primeiro, porque a saúde, o Brasil, não está nadando em dinheiro”, pondera ele. “Segundo, que a rede de saúde mental, já faz dez anos que tem as mesmas portarias de financiamento. Ela está sendo financiada com valores de repasse para os municípios já congelados há muito tempo”.

Isso sobrecarrega o orçamento municipal, diz Deivisson. E existe, por outro lado, a questão da atual orientação da saúde pública em favor de hospitais psiquiátricos – a velha orientação “manicomial”. “Depois do golpe [de 2016], o único reajuste que teve foi de diárias para internação em hospitais psiquiátricos, o que revela muito da prioridade do atual governo”. Outro ponto importantíssimo, revelador da escolha do atual governo federal em dezembro do ano passado: o chamado revogaço.

Ou seja, a revogação de todas as portarias as regulamentações acumuladas, que foram conquistas importantes dos últimos anos. “A gente impediu esse revogaço”, conta Deivisson, referindo-se à grande mobilização dos profissionais da Saúde este ano. E conclui: “Mas, então, esse é o quadro, é o contexto em que a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) está hoje. Sofrendo desfinanciamento brutal, e é por isso que nos indigna muito ver que a escolha é por serviços que não têm expertise técnica”.

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