PL do fura-fila da vacinação é aprovado pela Câmara no dia mais mortal da pandemia

Com apoio do Centrão, lobby empresarial avança e deputados derrubam exigência de doação de imunizantes para o SUS


Relatora do PL do camarote da vacina, Celina Leão (PP-DF), apresenta seu substitutivo
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
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A Câmara dos Deputados aprovou ontem com folga o texto principal do projeto de lei do camarote da vacina. Com apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), o placar ficou em 317 a favor e 120 contra. É um indicativo forte de que o PL deve passar rapidamente e sem problemas no Senado.

É bom lembrar que Rodrigo Pacheco (DEM-MG) estava no fatídico jantar do dia 22 de março, no qual empresários defenderam com paixão o fura-fila, que antes contava com porta-vozes mais caricatos, como Luciano Hang e Carlos Wizard.

Pacheco saiu de lá comprometido com a pauta – a despeito do fato de que ele próprio é o autor do texto que tinha acabado de ser aprovado pelo Congresso e sancionada pelo presidente autorizando a compra de vacinas pelo setor privado, desde que 100% das doses fossem doadas ao SUS enquanto durar a imunização dos grupos prioritários.  

É esse mecanismo que cai por terra agora. De acordo com o texto aprovado ontem – um substitutivo da deputada Celina Leão (PP-DF) – não só empresas mas também associações, sindicatos e cooperativas poderão adquirir vacinas. Podem optar pela doação de 50% das doses compradas ao SUS ou simplesmente estender a vacinação a familiares de funcionários, associados ou cooperados.

Como estratégia para evitar as muitas críticas à proposta, Leão fez modificações de última hora. A mais importante delas é inclusão de uma regra que adia a aquisição das vacinas produzidas pelos laboratórios que já venderam ao Ministério da Saúde. As empresas até poderiam negociar, mas terão de esperar a entrega integral do que foi contratado pelo governo federal. No curto prazo, isso tira da jogada as vacinas da Pfizer e da Janssen, por exemplo. E a indiana Covaxin, aposta de primeira hora do setor privado.  

A mudança apresentada por Celina Leão é joia de fantasia. A relatora inclui no texto a determinação de que a iniciativa privada siga os critérios estabelecidos pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) na aplicação das vacinas aos seus funcionários, criando um espelho dos grupos prioritários. Assim, em uma empresa os primeiros vacinados deveriam ser profissionais de saúde da linha de frente, idosos, indígenas etc. – todos públicos que estão longe de ser majoritários nas companhias. A regra tenta escamotear o fato de que pessoas jovens e saudáveis terão acesso a vacinas primeiro do que populações muito mais vulneráveis, priorizadas pelo PNI. 

Há uma terceira mudança no horizonte, mais problemática. Na lei vigente, a iniciativa privada não pode comprar vacinas sem o aval da Anvisa. O texto aprovado ontem permite que as empresas comprem imunizantes que não receberam autorização da agência reguladora. Basta que tenham sido autorizados ou registrados por autoridade de saúde estrangeira reconhecida e certificada pela OMS. 

“O Estado brasileiro não pode delegar isso a uma autoridade estrangeira. É como se disse que a Anvisa não serve para nada, que se autorizou em outro país, é suficiente.  É um drible da vaca na Anvisa, uma solução legislativa é péssima”, analisa Daniel Dourado, advogado sanitarista e pesquisador da USP em entrevista ao Estadão

Por fim, ao tirar o SUS da jogada, o texto aprovado ontem abre um nicho de mercado para a iniciativa privada. Célia Leão acrescentou a possibilidade de a inciativa privada contratar empresas que tenham autorização para importar vacinas e estabelecimentos de saúde para aplicá-las. 

O assunto continua sendo discutido pelos deputados hoje. A votação de destaques ao texto está prevista para a sessão que começa às 13h55. As emendas pendentes pretendem, por exemplo, permitir às associações o repasse do custo da compra de vacinas para seus associados – coisa que o PL veta, já que tinha sido pensando inicialmente para atender empresas. 

Delírio ou aviso?

O empresário Carlos Wizard, maior patrocinador do PL do camarote da vacina, começou ontem uma campanha para naturalizar o injustificável. Segundo ele, mesmo que seja aprovada, a lei que dá sinal verde para as empresas comprarem imunizantes sem doar ao SUS não será suficiente e… toda compra terá que ser feita via Ministério da Saúde. 

Isso porque, ao contrário do Brasil, os laboratórios farmacêuticos encontram barreiras políticas e éticas no resto do mundo e se comprometeram com múltiplos governos a não vender vacinas para empresas neste momento da pandemia. “Wizard, no entanto, está confiante que o ministério dará seu aval”, diz a Veja

Ou seja: os empresários reclamam da burocracia do Estado, mas vão depender totalmente dela para adquirir as vacinas – contradição que mostra novamente como o objetivo é só furar a fila de vacinação do SUS. Já o Ministério da Saúde seria instrumentalizado por particulares para fazer compras que não atendem aos critérios de universalidade nem de equidade que guiam o SUS, se aventurando por vias inconstitucionais e provavelmente ilegais. Tudo parece tão extraordinário que por aqui torcemos para que seja apenas um delírio de Carlos Wizard – porque, do contrário, é melhor passar a régua.

Procurado pela Veja, o Ministério da Saúde disse desconhecer o assunto.

Mais lobby

Hoje, o presidente Jair Bolsonaro janta com os mesmos empresários que convenceram Lira e Pacheco a reavivar o PL do camarote da vacina para falar justamente sobre esse tema. São esperados nomes como Luiz Carlos Trabuco (Bradesco), Rubens Ometto (Cosan), André Esteves (BTG), Candido Pinheiro (Hapvida), José Isaac Peres (Multiplan), Rubens Menin (CNN/MRV), Carlos Sanchez (EMS), Alberto Saraiva (Habib’s) e Flavio Rocha (Riachuelo), além de alguns representantes de empresas de mídia, como Jovem Pan e Bandeirantes.

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