Os problemas da saúde digital voltada ao mercado

Vasta pesquisa sobre o uso dos dados no Brasil demonstra: além de desrespeitar privacidade, medicina de negócios não está preocupada em garantir direitos das populações mais vulneráveis. O cenário pode mudar no governo Lula?

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Para que se encontre um caminho em que os dados pessoais de saúde dos cidadãos brasileiros sejam tratados de maneira justa é preciso entender como eles vêm sendo utilizados hoje. É o que buscou fazer um estudo realizado em uma parceria entre o Icict/Fiocruz, o Coletivo Intervozes e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). O resumo executivo da pesquisa foi lançado em um painel realizado durante o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão, em 24/11. Foi parte das atividades que debateram proteção de dados e saúde digital. Elas foram de grande relevância, segundo Marcelo Fornazin, um dos organizadores do eixo de debates sobre comunicação do evento.

“As mesas estavam lotadas, é possível ver que as pessoas estão preocupadas, tem muita gente envolvida. Acho que o evento teve um papel importante de pautar, promover o debate”, notou ele. “Esta atividade que lançou o documento sobre proteção de dados foi especialmente interessante, porque trouxe os resultados de dois anos de trabalho para entender como está sendo o processo de coleta de dados em aplicativos e sistemas de saúde digital”. O levantamento realizado pelo grupo de pesquisadores dividiu-se em quatro etapas: uma revisão bibliográfica de estudos com a temática das tecnologias da informação na saúde; uma revisão documental de legislações nacionais; entrevistas com usuários do SUS, gestores e profissionais de saúde; um inventário das tecnologias que já estão em uso no Brasil.

Algo que fica claro na revisão bibliográfica é a compreensão consolidada de que há riscos para os dados pessoais sensíveis de cidadãos brasileiros. Mas isso não parece se refletir nos documentos oficiais: “Foi observado que, de um modo geral, na análise do conteúdo das normas, mesmo aquelas que são posteriores à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ou ao Marco Civil da Internet (MCI) acabam não trazendo, em detalhes, instruções de como devem ser as operações envolvendo tratamento de dados pessoais, dentre outras medidas”, escreve o relatório. 

De modo geral, a mudança necessária nos sistemas de tecnologia da informação voltados à saúde precisa levar em conta, além da proteção dos dados pessoais dos cidadãos, a equidade. Milhões de brasileiros não têm acesso à internet, ou a utilizam apenas com plano limitado. Essa falta de acesso prejudica em especial os mais vulneráveis – justamente aqueles que mais utilizam políticas públicas, como os programas de transferência de renda, hoje acessados via aplicativo. Por isso, é preciso pensar, além da criação de tecnologias, os programas de expansão da banda larga pelo país.

O problema, reflete Marcelo, está no modelo de negócio que está por trás da saúde digital, orientado ao mercado. “Invenções como o ‘open health’, por exemplo”, lembra o pesquisador, referindo-se ao sistema proposto pelo ex-ministro Queiroga que pretendia abrir os dados de saúde de todos os brasileiros para as empresas de saúde, “são pensadas para coletar dados e, assim como em outras áreas, estratificar os cidadãos e ver quais deles são mais rentáveis”. Um exemplo que segue na lógica contrária à do mercado, conta Marcelo, é o do Cidacs (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde), da Fiocruz Bahia, que trabalha com grandes bases de dados de brasileiros. “Lá, se utiliza a tecnologia de forma que respeita a cidadania e a proteção de dados. Os dados ficam armazenados, respeitam a privacidade e não são compartilhados com outros órgãos.”

Ou seja: é possível construir tecnologias e utilizar dados sem ferir a privacidade dos brasileiros. Mas é necessário que essa construção seja feita lado a lado com o SUS. “Não é algo externo que vai resolver os problemas do sistema de Saúde”, defende Marcelo, que lembrou da ocasião quando Elon Musk veio ao Brasil apresentar satélites que serviriam para “salvar a Amazônia”. “Nós já temos o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)”, lembra o pesquisador. Não há motivos para seguir lógicas norte-americanas quando já temos o próprio SUS, que foi construído com o princípio da participação social. “A saúde digital tinha que ser construída pensando na universalidade e na descentralização – para que os municípios fizessem a gestão local”. 

Haverá espaço para essa transformação necessária durante o governo Lula? Marcelo acredita que não será fácil, pois sua eleição foi fruto de uma grande coalizão formada por diversos interesses. Mas o mais importante é a clara abertura de Lula ao diálogo. Foi assim durante os últimos mandatos do PT, conta Marcelo: a Abrasco era convocada para conversar com o ministério da Saúde para pensar a tomada de decisões. Durante o governo Bolsonaro, a porta se fechou completamente. Marcelo relembra a importância de que o próximo ministro da Saúde seja comprometido com o SUS. E espera um espaço democrático de debate, para que a sociedade civil possa se posicionar, fazer propostas, apoiar ou criticar quando for necessário.

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