O orçamento do SUS nas mãos de seus usuários

Aplicativo para celular desenvolvido pela Fiocruz-PE permite conhecer e comparar investimentos públicos no setor. Sua criação sugere: há vasto espaço para tecnologias que estimulem a participação social, em vez do lucro máximo

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Ficar por dentro do orçamento público é um direito de cada cidadão, principalmente porque ele é, através do pagamento de impostos, o principal investidor e beneficiário das políticas públicas. A partir dessa premissa, o Grupo de Pesquisa Saberes e Práticas de Saúde da Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco desenvolveu o aplicativo Onde está o dinheiro da saúde?, que disponibiliza, de forma dinâmica e simples, os dados recolhidos pelo Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops). Os pesquisadores envolvidos no projeto perceberam que, apesar de as informações já estarem disponíveis na internet, sua linguagem contábil dificultava o entendimento e minava o interesse da população. 

A ferramenta foi lançada há quatro anos e veio recebendo aperfeiçoamentos, até conquistar, no final de novembro deste ano, o segundo lugar na categoria “tecnologia” do 10º Prêmio Nacional de Educação Fiscal. Já disponível para Android, ela será incorporada pelo ministério da Saúde. 

Todas as informações orçamentárias do aplicativo são provenientes do Siops, que centraliza informações sobre orçamentos públicos em saúde da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Ouvida pelo Outra Saúde, Islândia Carvalho, pesquisadora da Fiocruz/PE e Coordenadora do grupo responsável pelo desenvolvimento da ferramenta, afirmou que o caráter inovador da tecnologia não reside apenas na tradução da linguagem de dados, mas também na possibilidade de comparar dados entre municípios. Eis a seguir sua entrevista

Como surgiu a ideia do aplicativo? 

Trabalhando na economia de Saúde eu notava que as pessoas tinham necessidade de entender como o dinheiro circula: de onde o recurso sai e para onde vai. Isso só será possível através do acesso à informação traduzida. Eu via alunos com dificuldade de entender os dados do Siops, assim como a população em geral. Fica essa impressão que o dinheiro jorra e sobra na saúde e que o problema é a corrupção, o que de fato não acontece. A ideia era que as pessoas tivessem acesso a um instrumento prático para entender como o dinheiro chega à Saúde e quanto de fato fica disponível para investimento. Então teve um edital da Fiocruz, nós concorremos e vencemos. A equipe é bastante jovem e envolvia também designers e desenvolvedores que não eram da área da Saúde. 

Os dados já estavam disponíveis para a população, mas em linguagem contábil. Como foi o processo de adaptar a linguagem para o aplicativo? 

Houve muita interlocução com outras áreas: colaboração de professoras de Economia em Saúde e Ciência da Informação, de alunos da pós-graduação e dos estudantes da Fiocruz. O trabalho multidisciplinar foi essencial para o sucesso do aplicativo, isto é, ouvir também pessoas que não eram necessariamente da área da Saúde. O objetivo final, desde o início, era que o aplicativo pudesse se transformar em uma ferramenta utilizada pela população. Nós temos uma coisa muito cara no Brasil, que é nosso sistema de informação da saúde. O Siops é único, no sentido de que em nenhum outro país um usuário consegue, só com acesso a internet, saber quanto um gestor de qualquer município investiu em determinados medicamentos ou tratamentos. Com a pandemia e esse último governo, o Siops e o próprio DataSUS estão sob risco constante. A informação é importantíssima para a gestão pública. Ou seja, nós temos esses sistemas mas a população não os conhece ou usa porque não consegue fazer a leitura da informação. Precisamos valorizar esse acesso no Brasil, e só vamos valorizar se ele for utilizado. O aplicativo é para isso, para aproximar as pessoas desse sistema, para que elas possam cobrar seus gestores. 

Queria que você falasse um pouco do que vocês, pesquisadores, puderam observar ao analisar os dados do Siops para levá-los ao aplicativo. Teve algo que chamou a atenção?

Foram quatro coisas principais. A primeira é a seguinte: é difícil visualizar quando ouvimos sobre “milhões investidos na saúde”, porque não temos essa cifra em nossa conta bancária. O milhão pode parecer muito dinheiro, mas quando esse recurso é dividido pela população, que é uma função do aplicativo, você percebe, por exemplo, que o resultado são R$ 4 por pessoa por dia para fazer Saúde – desde a atenção básica até a terciária. Ou seja, a primeira coisa que identificamos é que de fato existe pouco recurso para a área. Se você comparar com o plano de saúde mais básico, vai perceber que o que o SUS faz com o pouco recurso que tem é um milagre; ainda mais dando conta de emergência, de casos de alta complexidade. Então a primeira coisa é essa: o recurso que existe é insuficiente. 

A segunda coisa é a qualidade da informação que os gestores disponibilizam. Na próxima versão do aplicativo, decidimos que vamos colocar informações de gastos com medicamentos. Por quê? Porque essa é uma informação que o gestor não está disponibilizando de forma qualificada. Se você verificar os dados de qualquer município do país, você vai perceber um gasto de R$ 0 em medicamento. E a gente sabe que não é zero. O que está acontecendo é que os municípios estão divulgando seus gastos em Saúde, mas não de forma específica para que a gente saiba, por exemplo, quanto é o gasto com medicamento.  Então a qualidade da informação é outro item que deixa a desejar, o que torna o acompanhamento ainda mais importante. 

Outra coisa que chamou nossa atenção é a desigualdade do financiamento em saúde no país. Todos os municípios recebem, do Governo Federal, o mesmo per capita para a atenção primária; mas a gente sabe que vivemos realidades muito diferentes, com municípios que têm arrecadações muito grandes comparados a outros. Se você nasce em uma cidade do interior, você tem uma per capita em saúde completamente diferente de alguém que nasceu em uma capital. O ideal seria que os estados e o governo federal fizessem um investimento regional para diminuir essas iniquidades e isso não acontece. Alguns municípios resolvem seus problemas sozinhos e dão conta e tem outro município que não tem recurso pra fazer o básico. 

E por fim, a gente percebe que o investimento na atenção primária é sempre muito menor. Estamos longe de ter um investimento adequado nessa área. Os municípios gastam muito com o que chamamos de média e alta complexidade. Muitas vezes nem é obrigação desses municípios, mas como não existem políticas regionais de financiamento, esses municípios acabam sendo sacrificados. 

Hoje, a exemplo da iniciativa open health defendida pelo atual ministério da Saúde, temos visto cada vez mais o domínio da iniciativa privada na criação de tecnologias e aplicativos voltados para a Saúde. Onde está o dinheiro da saúde? foi desenvolvido pela Fiocruz de Pernambuco. Qual o diferencial do desenvolvimento de um aplicativo funcional como este por uma instituição pública? 

Eu acho que essa é uma questão que a sociedade precisa ficar atenta. Hoje mesmo eu estava pensando que a equipe de transição do novo governo precisa pensar com muito cuidado sobre nossos sistemas de informação, que são nosso grande ouro. Sabemos que o grande objeto de desejo no mundo atual é a informação e estamos, inclusive, vivendo o impacto do que é o mau uso das informações das pessoas através de algoritmos. 

Nós não fazemos isso, mas as pessoas não prestam atenção, ao baixar um aplicativo, que muitos deles copiam as informações dos celulares que nem sempre são usadas estritamente para o aplicativo, mas será repassada. Por exemplo, normalmente, quando você baixa um aplicativo, ele pergunta se você deseja se conectar através de sua conta no Facebook. Se a pessoa prosseguir dessa forma, o seu perfil passa a ser monitorado para que assim seja possível direcionar determinadas informações para um público específico – recomendando o uso de medicamentos, por exemplo. 

Para uma instituição pública, não deve haver interesse em captar informações da população para outro uso que não seja aquele do aplicativo. A primeira preocupação é se as pessoas vão utilizar o aplicativo e não o acúmulo de dados. A prioridade já é diferente desde o início. Muitos aplicativos que se dizem gratuitos pedem um cadastro assim que são baixados. Então eles não são gratuitos, pois as informações de cadastro tem valor de uso para as empresas.

Se as informações dadas pelos usuários forem sobre saúde, é ainda mais complicado. Você está dando informações sobre o medicamento que toma, quais sentimentos tem de forma permanente, quais são seus sintomas. Esses dados têm um enorme valor de uso para a indústria farmacêutica, por exemplo, e você passa a ser visto como um consumidor e não como um cidadão de direitos. Essa é a principal diferença entre a instituição pública e as empresas privadas. O próximo governo precisa estar atento a isso, porque a informação é valiosa. Nós não somos produtos e saúde não é um bem de consumo.

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