SUS: a urgência de investir em Inteligência Artificial

Em debate promovido pelo Outra Saúde e a Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial, Giliate Coelho reflete sobre o atraso tecnológico no sistema público, hoje, e as enormes potências de uma transformação na Saúde Digital

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O ministério da Saúde anunciou, na semana passada, um programa nacional com o objetivo de diminuir as filas de espera no Sistema Único de Saúde (SUS), para cirurgias eletivas, exames complementares e consultas especializadas. O problema, que já era uma realidade em muitas regiões, se agravou após a pandemia de covid-19 – somada ao envelhecimento da população. 

“Uma parte disso vai ter que ser resolvida com a ampliação da oferta e estrutura, ou seja, mais equipamentos e leitos. Mas outro conjunto de problemas será resolvido com a melhoria dos processos, hoje altamente dependentes de tecnologias da informação e análise avançada de dados” afirmou Giliate Coelho Neto, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo, ex-diretor do Datasus e gerente geral de TI da Agência Nacional de Saúde. O sanitarista foi o entrevistado do segundo programa de debates do Outra Saúde em parceria com a  Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), que teve como tema Saúde Digital:  quem controla os dados da Saúde?, lançado nesta sexta-feira (17/2).

Historicamente, segundo Giliate, foi o ministério da Saúde o grande responsável pela coleta, armazenamento e processamento dos dados de saúde no país – desde o uso de sistemas analógicos no final do século XIX e início do século XX até o uso de sistemas informacionais a partir da década de 1970, com a criação, nas décadas posteriores, de indicadores como o Sistema Nacional de Regulação e Saúde e o Sistema de Informação Ambulatorial, entre muitos outros. Ainda assim, a administração de dados sempre foi considerada conservadora para evitar o risco de vazamentos e perdas. Foi só em 1990, após a Reforma Sanitária e pressão da sociedade civil, que parte dos dados passaram a ser disponibilizados. 

Imagem criada por Inteligência Artificial em 16/2/23, no site Dall-E, da OpenAI.

A partir de 2018, a progressiva redução do orçamento destinado ao DataSUS passou a ameaçar a segurança do armazenamento, situação que se agravou durante a pandemia de covid-19. “Vimos uma sucessão de erros que culminaram em incidentes de exposição de dados”, lembra Giliate, com o ápice no que ficou conhecido como “apagão da saúde” no final de 2021 – quando um ataque cibernético comprometeu sistemas do ministério como o e-SUS Notifica. Coelho lembra que, além do risco de perder dados, vazamentos aumentam a desconfiança e insegurança dos cidadãos para que, futuramente, atendam a pesquisas que exijam o compartilhamento de informações. 

“Qualquer discussão hoje sobre disponibilização de dados deve passar pela aquisição de tecnologias para a sua proteção”, afirmou o sanitarista. Se em outras épocas a informatização era o pilar central do desenvolvimento em Saúde, hoje ela foi substituída pela análise e processamento de dados em massa com uso de Inteligência Artificial. “O Brasil perdeu esse bonde na pandemia. Diferente de outros países, não usamos a Inteligência Artificial para criar políticas públicas”, através do cruzamento de dados de imigração, prontuários, geolocalização e consumo (cartão de credito), para conseguir garantir, quase que em tempo real, diálogo com a população e evitar contágios. Foi o que ocorreu na Europa e na China, em que se fosse detectado que uma pessoa infectada frequentou certo restaurante em determinado período de tempo, outras pessoas que também estavam no lugar eram avisadas.

Uma política de administração de dados em massa “faz parte do desenvolvimento nacional”, tendo em mente que a disponibilização e proteção de dados caminham intrinsecamente juntas. Na prática, uma política levaria à melhora do atendimento e a resolução de diversos problemas enfrentados pelo SUS hoje – entre eles, o das filas. 

No caso da atenção básica, já existem algoritmos que preveem eventos de saúde adversos em pacientes de risco. Hoje, os dados necessários já são coletados pelo DataSUS, mas não são analisados: agentes de saúde precisam estratificar os riscos existentes na mão, lendo relatórios. Na etapa seguinte, quando há a conexão da atenção básica com a especializada – quando um paciente, após ser atendido, é encaminhado para fazer um exame ou cirurgia –  as filas são enormes; algumas pessoas precisam esperar anos para procedimentos de média e alta complexidade. 

O fluxo de pacientes das Unidades Básicas de Saúde aos hospitais é administrado através do Sistema Nacional de Regulação (Sisreg), considerado atrasado por Coelho. Nele, o médico insere os dados do paciente no sistema incluindo-o na fila de atendimento especializado ou internação; em seguida, uma central composta por outros profissionais da saúde analisa a “ficha” digital para liberar as vagas disponíveis. Todo o procedimento é manual, isso é, depende do processamento humano. “Precisamos de uma política de big data capaz de analisar grandes massas de dados”, afirma. O sistema otimizaria o serviço: seria possível não só analisar, por exemplo, que um determinado paciente precisa de uma vaga para ser examinado por um cardiologista, mas que esse paciente tem obesidade, faz uso de outras medicações e tem casos de doenças genéticas na família – um cruzamento de informações que seria possível através do acesso simultâneo a diversas bases de dados.  

Os desafios para uma política dessa magnitude não seriam poucos – além, é claro, do próprio investimento em inovação tecnológica. Uma legislação regulatória que defina regras para operar esses dados, com acesso a empresas licitadas e pesquisadores, deverá ser criada. Para Giliate, a criação de colegiados de debates sobre o assunto deveria estar na agenda do atual governo. A definição do que é um dado de saúde também é essencial: informações sobre o consumo da população nos supermercados, por exemplo, podem ser tão essenciais para estudos amplos quanto dados epidemiológicos – ainda mais hoje, que aumentam cada vez mais a quantidade de estudos que comprovam a relação entre doenças crônicas e o alto consumo de alimentos ultraprocessados. 

O setor privado já está investindo em peso na área de processamento de dados através da IA, especialmente bancos que oferecem serviços de seguros e planos de saúde.  “O setor público não consegue pautar de forma estrutural as suas necessidades”, afirmou Coelho, que elencou algumas prioridades que deveriam ser consideradas além da diminuição de filas: a captação de pacientes em risco, neutralizar a utilização inadequada de medicamentos e aperfeiçoar a alocação de recursos. E advertiu que, se o Brasil não iniciar um plano de desenvolvimento tecnológico e computacional, o país entrará novamente em um ciclo econômico já conhecido: enviar um produto (no caso, os dados) para o mercado externo. Empresas estrangeiras irão treinar seus algoritmos, aperfeiçoar soluções, para então vendê-las ao Brasil.

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