Como transformar a saúde digital em favor do SUS

No primeiro de uma série de debates sobre Inteligência Artificial na Saúde, um diagnóstico da captura de dados por grandes corporações e perspectivas de como as novas tecnologias podem, em outro contexto, garantir direitos humanos

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Em plena era digital, o Brasil continua dependente – para não dizer refém – da infraestrutura e das plataformas digitais multinacionais. Esse é um grande problema, e os motivos foram esmiuçados durante uma mesa ocorrida na segunda-feira, 21/11, primeiro dia do Abrascão. O debate foi coordenado por Marcelo Fornazin, pesquisador da ENSP/Fiocruz e integrante do grupo temático Informação, Saúde e População da Abrasco. Tinha como foco o uso das tecnologias digitais para superar a desigualdade e não para servir ao poder econômico.

O problema tem base em pelo menos duas questões centrais. A primeira diz respeito à soberania nacional: dados pessoais de brasileiros, muitos deles sensíveis, não estão “na nuvem”, mas em servidores bastante concretos que são de posse de empresas transnacionais. Nenhum desses centros de dados fica em terras brasileiras. Esse foi um ponto bastante destacado por Sérgio Amadeu, sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). Ele também frisa o crescimento e poder das corporações de saúde, que estão entre as maiores do Brasil. A Rede D’Or São Luiz, por exemplo, tem capital maior que a Rede Globo. Sérgio reflete sobre a crescente relevância da “saúde baseada em valor”.

E não se trata apenas de armazenar dados, mas de utilizá-los para gerar riqueza – a “datificação”. Essa é outra questão central para compreendermos a relevância do problema. Os dados de brasileiros são utilizados para treinar modelos de Inteligência Artificial, mais especificamente o aprendizado de máquina, estatística aplicada em alto potencial computacional. Com quantidades imensas de dados, algoritmos extraem padrões e conseguem fazer predições, que dão enorme poder a seus detentores.

A falta de controle e de manejo ético dos dados é um entrave crucial. Mas é preciso pensar ainda que a saúde baseada em valor também acaba por ampliar desigualdades e deixar populações vulneráveis de fora de uma possível “revolução digital”. Esse foi o ponto central da fala de Clarissa Marques Santos França, da Coalizão Direitos na Rede e advogada especialista em Direito Médico pela UERJ. Ainda há uma grande parcela de brasileiros que têm pouco acesso à internet, e por isso acabam ficando de fora de políticas públicas essenciais. O Auxílio Brasil, por exemplo, é pensado para funcionar via aplicativo – o que afasta uma parte de usuários que não conseguem manejá-los ou que acessam a internet apenas através do whatsapp, por exemplo. Políticas públicas feitas sem pensar nessas pessoas acabam por ampliar a desigualdade, ao invés de mitigá-la. O acesso universal à internet é uma pauta urgente, alerta Clarissa.

Giliate C. Coelho Neto, sanitarista e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), expõe, então, algumas das necessidades urgentes para resolver esses entraves, em três grandes frentes: transformação digital, proteção de dados e democratização da informação em saúde. Ferramentas de inteligência artificial criadas por instituições públicas poderiam, por exemplo, ajudar na redução de filas no SUS. Universidades e instituições brasileiras precisam construir essa infraestrutura. Para garantir uma saúde digital segura, também é preciso rever a política de terceirização de funcionários do DataSUS. Outros pontos importantes são a disponibilização de dados públicos para o desenvolvimento de tecnologias para a cidadania; o combate às fake news e a participação do ministério da Saúde na Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

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