CPI do Genocídio: a disputa no Congresso e no STF

Fisiologismo e truculência: para não ser investigado, Bolsonaro planeja entregar mais um ministério a senadores. E no Supremo, o ministro que mais serve ao Planalto pode trabalhar pelo impeachment de Alexandre de Morais.

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres, no Outra Saúde | Imagem: Aroeira

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MIL E UM OBSTÁCULOS

Jair Bolsonaro e a base aliada do governo colocaram em marcha um plano para tumultuar e minar a CPI da Covid – e a sua amplitude é uma prova do quanto o presidente teme responder por suas ações durante a pandemia.

Ontem, governistas de partidos como DEM, PSD e PP assinaram um requerimento do senador Eduardo Girão (Podemos-CE) para criar uma CPI paralela para investigar governadores e prefeitos, como pediu o próprio Bolsonaro na conversa vazada por Jorge Kajuru (Cidadania-GO). Na avaliação de assessores palacianos ouvidos pela Folha, o vazamento teve um efeito positivo na mobilização da tropa do governo.

Essa CPI alternativa teria dois objetivos: tirar o foco do presidente e retardar a instalação da comissão original. Agora, por exemplo, se discute se o Senado pode ou não investigar outros entes federados. O regimento interno da Casa diz que não pode haver CPI sobre “matérias pertinentes” aos estados. Segundo o líder da maioria no Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), a maior parte dos líderes de partidos é a favor de ampliar as investigações – fato que também está sendo comemorado pelo Planalto. 

O segundo capítulo da ofensiva começa hoje, quando se espera que o requerimento de criação da CPI da Covid seja finalmente lido pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). A base governista vai apresentar uma série de questionamentos durante a sessão marcada para 16h com o objetivo de evitar que Pacheco leia o documento. Caso ele consiga ler, a ideia é tumultuar os trabalhos a ponto de os líderes dos partidos não conseguirem indicar os membros da CPI.

Também há planos para depois que a CPI for instalada. Bolsonaro assumiu pessoalmente a articulação para montar uma tropa de choque que defenda o governo e faça um contraponto à oposição na comissão de inquérito. A CPI tem 11 vagas, e o foco do governo é conseguir um nome alinhado no bloco composto por PSDB e Podemos para formar maioria. A oposição tem cinco vagas, e deve ficar por conta do MDB (3); do PT e PROS (1); e de Cidadania, Rede e PDT, com outra vaga. 

Com ou sem maioria, o Planalto pretende elaborar para senadores governistas uma espécie de apostila com indicadores que passem a ideia de que o governo federal atuou positivamente na pandemia. Para essa tarefa, foram escalados dois ministros: Fábio Faria (Comunicações) e… Marcelo Queiroga – afinal, nada mais importante no pior momento da pandemia do que preparar a defesa do presidente. Também aparece nesse script a ideia de fazer uma análise prévia nos principais contratos firmados pelo Ministério da Saúde. 

Por fim, o governo pretende oferecer um cargo na Esplanada para algum senador aliado, com o intuito de melhorar a “articulação política” na Casa. Hoje, a Esplanada não tem um ministro que seja senador, enquanto deputados federais comandam cinco pastas. As hipóteses em análise são os ministérios do Desenvolvimento Regional ou da Agricultura. E os nomes favoritos para ocupar uma das pastas são os dos senadores Eduardo Gomes (MDB) e Jorginho Mello (PL).

NO SUPREMO

O plenário decide sobre a CPI da Covid na quarta-feira, e há dois movimentos acontecendo no Supremo. Uma parte dos ministros tenta construir maioria para que a decisão do pleno permita que a comissão só inicie os trabalhos quando o Senado voltar ao funcionamento presencial. “A ideia, porém, enfrenta resistência dentro da corte e ainda não há consenso sobre o tema”, apurou a Folha.

Ontem, foi sorteado o ministro do STF que vai analisar o pedido de Jorge Kajuru para obrigar o presidente do Senado a analisar o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes. O processo caiu no colo de Kassio Nunes Marques. Bolsonaro não escondeu a felicidade: abriu um sorriso ao ser avisado por um apoiador.

Em compensação, a ministra Rosa Weber decidiu suspender trechos dos decretos editados por Bolsonaro em fevereiro que flexibilizaram regras para porte de armas e aquisição de munições. As medidas entrariam em vigor ontem. A decisão também será submetida ao plenário.

Até agora, o único ministro que comentou a conversa telefônica entre Jorge Kajuru e Jair Bolsonaro foi Marco Aurélio Mello. Disse que se trata de uma “tentativa de desviar o foco” e fragilização das instituições. “Você não sabe como termina”. 

Nos bastidores, porém, parte dos ministros do Supremo acredita que o diálogo foi combinado previamente e seria um teatro armado pelo presidente e pelo senador para constranger a corte. 

Já fontes próximas a Bolsonaro disseram à imprensa que o presidente ficou incomodado com a divulgação do trecho relacionado ao Supremo – e avaliam que isso não poderia ter vindo em pior hora, já que o único auxiliar presidencial que tinha boas relações com a corte – general Fernando Azevedo – foi demitido. Mas o fato é que o governo não tem nenhuma atitude que corrobore essa versão.

O substituto de Azevedo no Ministério da Defesa, general Braga Netto, mostrou alinhamento a Bolsonaro: disse que o país vive instabilidade que exige “coragem moral” dos homens públicos e respeito a limites impostos pela Constituição. O vice-presidente Hamilton Mourão foi na mesma linha: “Pouco a pouco vamos conseguir superar a imagem de que o país está sendo governado pelo Judiciário”. E o filho 02, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), foi mais explícito: “Sou a favor de cada um no seu quadrado. Não cabe a um ministro do STF dizer o que o presidente do Senado deve ou não fazer, e isso aí você vê que abre margem para uma esculhambação“.

BAIXÍSSIMA POLÍTICA

Falando em esculhambação, ontem Jair Bolsonaro pediu que Jorge Kajuru revelasse a conversa telefônica na íntegra – o que o senador fez, à Rádio Bandeirantes. No trecho que mais chama atenção, Bolsonaro chama o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) de “bosta” e afirma que teria que “sair na porrada” com o autor do requerimento de criação da CPI da Covid.

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) apresentou uma representação contra Kajuru pela gravação da conversa, vejam só, no Conselho de Ética do Senado – onde o caso das rachadinhas dormita. Kajuru aproveitou a chance para ironizá-lo: “A Polícia Federal nunca foi na minha casa às 6h30 da manhã, eu nunca fui manchete negativa do Jornal Nacional. Eu fiz um convite a ele: Já que ele me quer no conselho de ética, eu também faço o mesmo convite: vamos juntos, vamos ver se você tem coragem de ir lá e explicar uma denúncia grave contra você”.

E depois que seu partido, o Cidadania, decidiu ‘convidá-lo a se retirar’, Kajuru anunciou seu pedido de desfiliação da legenda.

O MAIOR FATOR DE RISCO

Um estudo publicado no Lancet sobre a covid-19 no Brasil mostra que, por aqui, as vulnerabilidades socioeconômicas regionais afetaram mais o curso da pandemia do que a prevalência de fatores de risco para a doença nas populações, como idade e estado de saúde. Os pesquisadores desenvolveram um um índice de vulnerabilidade socioeconômica (SVI, na sigla em inglês), baseado nas características das famílias e no Índice de Desenvolvimento Humano. Comparando o SVI dos estados e municípios aos registros de casos e mortes por covid-19, observaram a correlação entre os dados.

O coronavírus foi identificado primeiro em São Paulo e no Rio, mas foi nas regiões Norte e Nordeste que as mortes estouraram logo em seguida. A pior situação, como logo se viu, foi nos estados do Norte, onde não há predominância dos riscos tipicamente associados à covid-19 (idade avançada e carga de doenças crônicas). O que, sim, existe, são alto SVI e escassez de recursos hospitalares. “O número de leitos de UTI per capita era cerca de duas vezes maior na região Sul do que na região Norte, não só no setor privado, mas também no SUS. A desigualdade era ainda maior para os recursos humanos, medida pelo número de médicos de UTI per capita”, escrevem os autores. 

Eles pontuam ainda que os estados mais vulneráveis são também os que têm maior cobertura do SUS na atenção primária, e que seus governadores conseguiram, apesar da ausência de coordenação federal, expandir a capacidade hospitalar e decretar medidas para conter o vírus. Esse conjunto de fatores contrabalanceou, em alguma medida, a vulnerabilidade socioeconômica, mas não conseguiu evitar a tragédia muito mais pronunciada no começo da pandemia (e, acrescentamos nós, no começo deste ano também). A pesquisa viu, porém, que ao longo do tempo a associação entre a SVI e as taxas de mortalidade diminuiu, o que se credita ao fato de que o distanciamento físico permaneceu relativamente maior nesses lugares.

Se a vulnerabilidade dos estados ditou sua capacidade inicial de enfrentamento como um todo, está claro também que dentro de cada um deles é a população pobre quem sofre mais. Um levantamento do Estado de Minas com base na PNAD (a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) mostra quem mais precisou ser internado por covid-19 nos hospitais da Grande Belo Horizonte no ano passado: faxineiros, garis e auxiliares de limpeza foram responsáveis por 62% das internações. São pessoas que têm renda mensal média de R$ 1.482 e se expõem não só no trabalho – que nunca para – mas no transporte público lotado. 

Nem o estudo do Lancet nem a reportagem sobre a Grande BH excluem a idade e doenças crônicas como fatores de risco para a covid-19, obviamente. No segundo caso, o levantamento viu que a maior parte dos internados tinha mais de 55 anos. Fragilidades socioeconômicas também não são as únicas responsáveis pela boa ou má resposta local: vimos este ano como os estados da região Sul entraram em colapso absoluto, reforçando que mesmo sistemas de saúde com mais recursos não dão conta de transmissão desenfreada. A questão é que as vulnerabilidades sociais representam um fator inegável, e pesadíssimo, para piorar os cenários. 

VACINAÇÃO DESIGUAL

O site da Piauí mostra como a distribuição de imunizantes contra a covid-19 no Brasil é heterogênea. Algumas diferenças são explicáveis por conta das prioridades estabelecidas pelo plano nacional: municípios com maior proporção de população indígena, por exemplo, têm taxas de vacinação maiores.

Mas várias comparações refletem falhas graves na proteção de quem está mais exposto ao vírus. Na capital de São Paulo, os distritos mais vacinados têm renda média oito vezes maior que os menos vacinados. Em Goiânia, a área mais branca da cidade vacinou 6,5 vezes mais do que a área mais negra. No Rio, um morador do Baixo Leblon tem três vezes mais chance de ter recebido a primeira dose do que um do Vidigal.

Comentamos aqui, no mês passado, um levantamento da Agência Pública mostrando que havia muito mais brancos do que negros vacinados no Brasil. Os motivos apontados pelos especialistas: o fato de mais idosos brancos do que negros (o que é, em si, reflexo de desigualdades relacionadas à saúde) e a dificuldade de locomoção da população mais pobre até os pontos de vacinação.

AINDA NÃO MANDOU

Não para de crescer a pressão pela aprovação da Sputnik V no Brasil, mas a União Química – que apresentou o pedido à Anvisa e vai importar a vacina – ainda não forneceu os documentos pendentes. Em uma manifestação ao STF, a agência diz que o prazo total para a empresa responder às exigências é de 120 dias, que se esgotam em 16 de maio. E ainda chama a atenção para o que considera um fato “atípico”: que o relatório técnico de avaliação emitido pela agência reguladora russa, normalmente público, ainda não esteja disponível. A manifestação foi feita em resposta ao governo do Maranhão, que entrou com uma ação para que seja liberada a compra de 4,5 milhões de doses da vacina.

DESENCALHE IMEDIATO

O Ministério da Saúde esqueceu (ou optou por ignorar) os testes PCR eternamente armazenados em um galpão de São Paulo, prestes a vencer. O ministro Benjamin Zymler, do TCU, determinou que a pasta os distribua imediatamente. Quando a existência desses testes foi revelada pelo Estadão, em novembro, havia quase sete milhões de unidades. Ainda restam cerca de três milhões. 

PRESSÃO E ASSÉDIO

Cinco médicos que trabalharam na operadora de saúde Prevent Senior relataram à GloboNews que sofriam assédio e pressão para prescrever o ‘kit covid’ a seus pacientes. Além disso, dois deles afirmaram ter sido obrigados a fazer plantões mesmo infectados pelo novo coronavírus. A reportagem colheu não só os depoimentos, mas também conversas em grupos de celular da Prevent que confirmam a história. Em uma delas, um diretor da empresa orienta os médicos a administrar hidroxicloroquina e azitromicina a todos os pacientes com problemas respiratórios, sem avisá-los. Há também pressão pelo uso de flutamida – remédio aprovado unicamente para o câncer de próstata. O Ministério Público de São Paulo está investigando o caso em um inquérito civil, instaurado no último dia 24.

ERRAMOS

Escrevemos ontem que os senadores Jorge Kajuru (Cidadania-GO) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) eram os autores do pedido da CPI da Covid. Eles são os autores do mandado de segurança encaminhado ao STF para obrigar o presidente do Senado a instaurar a comissão. A CPI é de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

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