O longo amanhecer do SUS, caminhos para a reconstrução

Em livro que será lançado hoje (12/5), organizado por Fabiano Tonaco Borges, a gênese das dificuldades na construção do Sistema Único de Saúde, os valores que devem ser combatidos… e uma mensagem de esperança para aqueles que desejam transformá-lo

MAIS
A resenha publicada abaixo trata do livro
O longo amanhecer do Sistema Único de Saúde: reflexões para o SUS reexistir

Organizado por Fabiano Tonaco Borges
Seu lançamento acontece hoje (12/5), na Livraria da Travessa de Niterói (RJ), a partir das 18h
> Leia matéria publicada no Outra Saúde
> Saiba mais sobre o livro no site da editora Eduff

Em o Longo Amanhecer, o clássico livro de ensaios de Celso Furtado sobre a formação do Brasil, o autor se pergunta: que margem de autonomia nos resta para interferir no desenho de nosso porvir como Nação? Essa frase, segundo Carlos Eduardo Siqueira comenta no prefácio, foi o que inspirou o livro “O Longo Amanhecer do Sistema Único de Saúde”.

Sem dúvidas, espírito afim inspira o organizador, o Professor Fabiano Tonaco Borges, alguém que não busca a problematização por si, a ciência como um fim nela mesma, mas sim um meio de mudar o mundo, não como um ideal intangível, mas como uma tarefa imprescindível.

Portanto, esse é o espírito dessa coletânea. Nela, diferentes gerações de pesquisadores em saúde, de professores doutores a estudantes de iniciação científica, estudiosos de sistemas de saúde, se unem em seis capítulos incômodos mas ao mesmo tempo cheios de esperança.

No primeiro capítulo, o professor Nelson Rodrigues do Santos navega conosco pela história da reforma sanitária, nos lembrando dos sucessos que obtivemos na luta pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), para em seguida nos apontar as dificuldades para dar concretude a ele, em sua implantação: subfinanciamento, desvio de recursos para o setor privado, burocratização e enfim a privatização por dentro do estado. Uma dificuldade imensa em pôr em prática os nossos sonhos, e o que conseguimos formular no papel.

E não por acaso. A construção do SUS a duras penas por aqueles que o idealizaram, lutaram e lutam, trabalharam e trabalham por ele, se deu ao mesmo tempo em que a força do capital deformava o sistema, drenando os recursos para o mercado enquanto o SUS minguava, acabando por se constituir em um sistema pobre para pobres.

Professor Nelson nos pergunta: Que sociedade e que país consegue um sistema público de direito e cidadania onde só os pobres lutam por seus direitos? E afirma:

“Resta hoje que o Estado e a Saúde Suplementar gastam com 25% da população mais da metade dos recursos totais e o Estado gasta com o SUS, para 75% mais pobres, menos que a metade”.

Para corrigir essa deformação, é preciso ter claro que a estrutura de gastos e, portanto, de oferta de serviços, deve ser invertida. É preciso ferir o cerne dessa estratégia. Não é uma luta fácil, a dos cidadãos que não conseguem fazer lobby junto ao planalto e ao congresso, contra o capital investido do setor saúde. Como diz o professor Nelson em seu texto, “vai precisar ser contundente o esforço de reagregação de estratégias e mobilização das consciências políticas e da mobilização de segmentos da sociedade para voltar àquela força inicial dos anos 1980”.

Ele certamente irá compor nessa reagregação, ainda que sejamos as novas gerações que devemos a ele a continuidade dessa luta que nos legou, sua geração tendo tido sucesso no que se propôs ao alcançar a redemocratização do Brasil e implantar um sistema público universal e integral de saúde.

Para que fiquem ainda mais claros nossos problemas e nosso caminho, no segundo capítulo, Carlos Eduardo Siqueira nos apresenta o sistema de Saúde dos Estados Unidos da América (EUA), em uma atualização da tese de Sérgio Arouca que, segundo ele, deveria nos mostrar o que não fazer. Mas que ainda assim, continua servindo de exemplo na construção do Setor Saúde no Brasil. O autor apresenta em dados aquele que é o sistema mais caro do mundo, com os piores indicadores, a partir do que conclui: “para a quantidade que se gasta não é só ruim, é de fato muito ruim”.

Com gastos crescentes e insustentáveis, os EUA sofrem com o dilema de como corrigir um sistema de saúde que é injusto, promotor de racismo, mortes evitáveis e falência de famílias.

O país com maior número de mortes preveníveis. É um país no qual as pessoas deixam de procurar serviço de saúde, mesmo quando estão infartando, com medo de não conseguirem pagar a conta depois. São dados que deveriam nos chocar, se já não soubéssemos sobre eles ou não estivéssemos tão anestesiados pelas iniquidades e injustiças promovidas pelo neoliberalismo e pela busca incessante pelo lucro. E que nos entristecem por sabermos que há um projeto em andamento no Brasil para que se produza aqui um arremedo do sistema americano, proporcionando ainda mais lucro para os entes privados que aqui atuam.

Um ponto quase anedótico narrado por Carlos Eduardo Siqueira chama a atenção:

“Os médicos da América Latina — com quem estudei na Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins — não entendiam por que se deveriam chamar pacientes de consumidores, já que na verdade ninguém vai ao médico para comprar saúde. Não fazia sentido chamá-los de consumidores. Isso tem sido uma bandeira em vários países do mundo. Defender o direito de ser um paciente, de precisar de ajuda, e não de fazer uma negociação comercial em que um paga e outro dá alguma coisa em troca.”

Em seguida, no capítulo 3, a estudante Patricia Augusto e coautores apresentam alguns resultados da pesquisa InCept Pacients Perceptions of Primary Health Care Provision concerning access and continuity. Corajosa e certeiramente, elas abrem o capítulo fazendo uma crítica ao que seria um conformismo das análises que requalificam o sistema de saúde a partir da distinção entre seu projeto e sua institucionalidade, crítica essa que poderíamos transpor ao atual cenário político do Brasil como um todo, ainda que não saibamos sair dessa armadilha. Em um texto de crítica e esperança, chamam a atenção para que voltemos a olhar para as mortes evitáveis e a falta de cuidado pelo SUS com estranhamento e repulsa. Que voltemos à aliança povo-sanitaristas de 1970 para conquistarmos uma Atenção Primária pujante no Brasil.

No capítulo 4, Katia Siqueira, Nathan Carvalho e Fabiano Tonaco Borges fazem um curto histórico da relação público-privado na saúde desde a era pré-SUS até os atuais mercados populares de saúde para concluir que o sistema de saúde brasileiro é público, operado pelo setor privado, segregado em castas desde os mais privilegiados atendidos em hospitais de luxo aos mais vulneráveis assistidos pelo SUS pobre, assemelhando-se muito com o sistema estadunidense.

A seguir, no capítulo 5, Fabiano Tonaco Borges e Pedro Gerban discorrem sobre o paradoxo da descentralização do SUS que resultou em desresponsabilização de estados e governo federal por um lado, e autonomismo dos municípios de outro, ao mesmo tempo em que permitiu que a agenda da Reforma Sanitária Brasileira (RFB) conseguisse se imbricar nas entranhas do SUS de todos os níveis de atenção, conseguindo usufruir de um relativo grau de coordenação do sistema público de saúde.

Discorrendo sobre a municipalização, os autores apontam que outro de seus danos, frente à dificuldade obvia no município em prover todas as necessidades relacionadas à saúde da população, foram crises de credibilidade da gestão pública em gerenciar os sistemas locais de saúde. Com isso, escancaram-se as portas do SUS para a administração privada dos serviços de saúde, como no sistema americano tão bem sintetizado no capítulo de Siqueira: “dinheiro público, administração privada, pois assim se ganha mais dinheiro”.

Para os autores, como correção desse paradoxo, torna-se cada vez mais clara a necessidade de se investir na autonomia da gestão do SUS. Eles propõem um consórcio interfederativo de saúde para criar um Serviço Nacional de Saúde do SUS, fundado na gestão social, a exemplo do espanhol INSALUD. E clamam:

“A continuação da RFB deve se pautar, neste momento histórico, por mais política e planejamento do que avaliação e monitoramento. Devemos ter os territórios e suas territorialidades — compreendidos na perspectiva de Milton Santos — como o DNA do Serviço Nacional de Saúde do SUS”

Enfim, no sexto capítulo Nelson Rodrigues dos Santos volta a navegar conosco, dessa vez nos anos de Pandemia de covid-19 no Brasil.

Esse livro é, portanto, uma constatação, uma denúncia e um clamor. Ele nos aponta em suas poucas páginas, em seus textos claros e sintéticos, a gênese de nossas dificuldades na construção do SUS. Os valores e as práticas em que temos que nos pautar e aqueles que temos que combater. Mas o mais importante, nesse momento tão difícil e tão nefasto de crise de solidariedade, agravada pela concretude de uma crise pandêmica, vivida com tanta dificuldade em um país marcado por um desgoverno com ideário de morte, é a mensagem de esperança que ele nos traz. De que podemos fazer, de que sabemos fazer, e que, portanto, façamos!

Como afirma professor Nelson: “a possibilidade de retomada de consciência social é uma possibilidade real, se é para essa geração ou se para daqui a duas, três ou quatro gerações só a história dirá, mas eu diria que é uma inevitabilidade histórica”.

Leia Também: