O longo amanhecer do SUS – e o do Brasil

Inspirado em Celso Furtado, livro resgata a atualidade da luta pela Reforma Sanitária, mas sustenta: ela não será possível sem novo projeto de país. Nelsão, Gastão Wagner e o organizador, Fabiano Tonado, fazem lançamento memorável

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A imagem de que ainda estamos vivendo um amanhecer do SUS é tanto esperançosa quanto desafiadora, pois implica a todos – em especial às novas gerações – na luta por ele. Em síntese, giraram em torno dessa ideia as falas dos debatedores no lançamento do livro “O longo amanhecer do Sistema Único de Saúde: reflexões para o SUS reexistir”, organizado por Fabiano Tonaco Borges, professor e pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF). Participaram, em 29/4, figuras históricas do movimento sanitarista, como Nelson Rodrigues dos Santos – chamado carinhosamente de “Nelsão” –, Gastão Wagner e Eduardo Siqueira. O evento também contou com a presença estimulante do organizador do livro e com a resenha sensível da pesquisadora da Unicamp, Lilian Terra.

O título do livro homenageia Celso Furtado, que publicou “O longo amanhecer” em 1999. Mas inspira-se especialmente na frase que dá sentido a essa obra: “Que margem de autonomia nos resta para interferir no desenho de nosso porvir como nação?” Fabiano pega emprestada a reflexão para pensar o sistema de saúde brasileiro, cuja construção, a duras penas, é contemporânea à ascensão do neoliberalismo, que busca deformá-lo. “Um serviço nacional de saúde deslocado de um projeto nacional de desenvolvimento não vai prosperar”, defende o autor. E a riqueza de seu livro, na opinião de Lilian, é juntar diferentes gerações de pesquisadores para refletir sobre a luta para que o SUS se aproxime cada vez mais do modelo que foi idealizado nos anos 1980, pela reforma sanitária.

A discussão sobre os valores a serem combatidos se enriquece com a fala de Eduardo Siqueira, professor da Universidade de Massachusetts em Boston, nos Estados Unidos, e autor do segundo capítulo do livro. Ele mostra como funciona a saúde norte-americana, e explica por que se trata de um exemplo de como não fazer. É o sistema mais caro do mundo, e o menos eficiente. Para Eduardo, na verdade, chamá-lo de “sistema” chega a ser um exagero: “o que nós temos nos Estados Unidos não é um sistema, é um mercado de saúde pouco governado pelo Estado”. Por não ser único, mas múltiplo, é promotor de desigualdade e racismo. Mesmo privado, não se sustenta sem enormes subsídios do governo federal. É preciso combater, portanto, o pensamento hegemônico de que esse é um modelo desejável para o Brasil.

Mas Nelsão – um dos quadros mais importantes da luta pelo pela Saúde Pública nos contextos brasileiro e latino-americano, e chamado de “o homem da esperança” por Gastão – não permite o desânimo, mesmo nos tempos árduos que atravessamos. Com a sabedoria de quem já atravessou outras tempestades, ele passa uma mensagem de sua geração para as atuais: a criação do SUS é um processo histórico “que está mal saindo do papel”, e a adesão a ele ao longo das últimas décadas mostra sua força. “Éramos dezenas, no início dos anos 1970, que militavam integralmente tendo em vista a democratização do direito à saúde. De repente fomos para algumas centenas já depois de terminar a ditadura. Fomos num crescendo, e somos muitos milhares hoje.” E a visão do SUS como exemplo de direito social tomou conta do conjunto da sociedade. 

Ele critica a maneira como a saúde foi sendo privatizada, desde os anos 1990, inclusive com recursos do Estado, e a má implementação da integralidade do SUS. Mas garante: vale a pena a pena re-existir. “Mesmo que esse longo amanhecer seja tão longo que só os nossos netos, bisnetos e tataranetos vão ver o sol raiar. Mas verão. Cabe a nós continuar lutando como se fossemos ver. Com a mesma intensidade, com a mesma garra e com a mesma coerência.”

Gastão Wagner, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, fez de sua fala, que veio a seguir, uma homenagem à riqueza captada na obra de Fabiano. “Tem estudante, tem figura histórica como o Nelson, tem pesquisador, gente de iniciação científica e graduação… Esse homem é um aglutinador”, concluiu. Vê, nos motivos para que o SUS não avance, o neoliberalismo, as dificuldades de gestão, o patrimonialismo do Estado brasileiro, o conservadorismo da elite e da mídia e os retrocessos políticos dos últimos anos. 

Mas, para Gastão, a própria construção do livro já foi transformada em mobilização, e faz parte das estratégias e iniciativas de reconstrução do SUS. E ressalta, também, as lutas políticas dessa geração: “o movimento social mais forte hoje no Brasil é o movimento feminista e o movimento negro antirracista”. Também enaltece a luta das periferias. Para ele, o movimento sanitário precisa ser também atualizado: o SUS não sairá sozinho da crise se não abraçar essas outras mobilizações.

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