Memória: o Brasil antes do SUS

Revista Radis recupera, em novo momento crítico para a Saúde Pública brasileira, memória dos tempos turbulentos do pós-ditadura. Condições sanitárias agravavam-se rapidamente. Mas crescia movimento que levou à criação do SUS

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“Quem ainda não era nascido ou era criança no início da década de 1980 talvez não imagine os graves problemas que o Brasil enfrentava nos últimos anos da ditadura militar” escreve, em artigo, a jornalista Licia Oliveira para a RADIS. Com a redemocratização do país após os anos da ditadura – marcados pela omissão de dados relativos a doenças, como foi o caso da epidemia de meningite – vieram à tona problemas urgentes relacionados ao saneamento e à saúde. A AIDS, causada pelo vírus HIV, fazia suas primeiras vítimas nos centros urbanos do país, enquanto a dengue hemorrágica dava sinais de um novo surto. 

O Brasil vivia uma inflação de 200% ao ano. “Crise compromete as metas do saneamento”: era a manchete da Súmula em 1984, publicação do projeto Radis. A crise econômica – impulsionada pela crise internacional do petróleo e consequência direta dos anos de chumbo, que alavancaram a dívida externa – somou a alta do desemprego à inflação. Em 1986, Sergio Arouca, então presidente da Fiocruz, escrevia sobre os problemas de saúde que assombravam o país: HIV, dengue, malária, infecção hospitalar e falta de atendimento médico eram consequências das condições precárias de moradia e saneamento. 

Antes da criação do SUS, as políticas de saúde eram pensadas mais em termos de recuperação do que em prevenção de doenças, segundo a análise da Radis. Para os trabalhadores formais, existia o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) — onde saúde e previdência andavam juntas. Para o restante da população, não havia garantias. A classe média pagava para ter acesso aos recursos de saúde, como consultas, exames e cirurgias. Para os que não possuíam carteira assinada, a única alternativa era recorrer às poucas unidades públicas de saúde, como hospitais universitários ou instituições filantrópicas. As cidades eram território fértil para a proliferação de endemias, tanto aquelas relacionadas ao desenvolvimento urbano quanto as velhas conhecidas do país – Chagas e a leishmaniose visceral: “Colonização do espaço urbano pelos parasitas” era a manchete da Súmula nº 13, de 1985. Aos olhos do mundo, o Brasil era a terra da desnutrição, principal causa dos índices alarmantes de mortalidade infantil – atribuídos pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) à recessão econômica.

Foi nesse cenário desolador que a Reforma Sanitária tornou-se prioridade na Constituinte de 1988, com o objetivo de garantir a saúde da população. “A proposta da Reforma Sanitária Brasileira representa, por um lado, a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro, a possibilidade de existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema” escreveu então Sérgio Arouca. “A Reforma Sanitária é parte do conjunto de uma mudança social. Esse conjunto pressupõe a recuperação da cidadania, o seu pleno exercício, o direito de expressão, de livre manifestação e organização, sempre no sentido deste país se firmar como uma nação de cidadãos”. Com a nova Constituição nasceu, então, o Sistema Único de Saúde (SUS).

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