Na calada da noite, um golpe na Saúde da Família
Desde 2008, o NASF reunia equipes multissetoriais para promover atenção básica. Foi extinto pelo Ministério da Saúde — sem proposta que o substitua. Leia também: pela primeira vez em sete anos, acidentes em estradas federais aumentam
Publicado 30/01/2020 às 09:37 - Atualizado 30/01/2020 às 13:12

Por Maíra Mathias e Raquel Torres
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O FIM DO NASF
 Começou a circular ontem nas redes sociais uma nota técnica do governo  Bolsonaro que, basicamente, decreta o fim do NASF, o Núcleo Ampliado de  Saúde da Família e Atenção Básica. Como explica o site do próprio  Ministério da Saúde, os NASF foram criados em 2008 para fortalecer a  atenção básica. Para isso, oferecem um grande leque de profissionais,  como assistentes sociais, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos,  farmacêuticos, e por aí vai, que têm a missão de atuar em conjunto com  médicos e enfermeiros, auxiliando quem está na ponta a resolver melhor  os problemas de saúde da população.
Eis que na segunda-feira (27), Otavio Pereira D´Avila,  que está à frente do Departamento de Saúde da Família da Secretaria de  Atenção Primária da Pasta, assinou um documento que libera os gestores a  adotarem qualquer modelo. A medida acontece depois de o governo  extinguir, ainda em 2019, a base de incentivo federal para a adoção dos  NASF com o novo modelo de financiamento da atenção primária conhecido  como programa Previne Brasil. 
“O que vemos agora, a partir da nota técnica, é o  governo federal deixando clara essa opção. O documento dá fim ao  cadastro de novas equipes NASF e desobriga o gestor municipal e estadual  de registrar esses profissionais no CNES. Sem isso não se comprova  vinculação, nem carga-horária trabalhada. Se a gente não precisa mais  registrar esse profissional, ele vai trabalhar por caridade? Municípios  com dificuldades orçamentárias vão acabar extinguindo essas equipes.  Vamos assistir à demissão desses profissionais. Em suma, o que estamos  vendo é a extinção do modelo sem uma proposta que o substitua – e isso é  muito ruim”, resumiu o médico de família e comunidade, Stephan  Sperling, que faz uma análise das principais consequências da mudança em  entrevista ao Outra Saúde. Confira.
BOAS E MÁS NOTÍCIAS
 Foi lançado o relatório G-FINDER de 2019, da Policy Cures Research, e ele informa que pela primeira vez o financiamento global para doenças negligenciadas cresceu  por três anos consecutivos, chegando  a mais de US$ 4 bilhões em 2018. O  setor privado parece estar olhando mais para elas, pois fez seu maior  investimento de todos os tempos em pesquisa e desenvolvimento na área – o  crescimento desses recursos em relação ao ano anterior foi de 20%;  ainda assim, sua fatia só chega a 17% do financiamento total. O setor  público também bateu recordes de financiamento, chegando a US$ 2,59 bi, e  esse dinheiro veio principalmente de países de alta renda: os Estados  Unidos forneceram 71% do financiamento total. Em seguida, vieram Reino  Unido (9,2%) e a Comissão Europeia (5,4%).
Por outro lado, os recursos vindos de países de baixa  renda caíram 7,6%. Entre eles, a Índia foi quem mais investiu, com US$  66  milhões. No Brasil, o volume foi de R$ 12 milhões. Já o setor  filantrópico aumentou seu financiamento em 6%, chegando a US$ 760  milhões.
Mas, entre as negligenciadas, algumas são mais que  outras. A maioria esmagadora desses recursos (69%) foi apenas para  HIV/Aids, malária e tuberculose. Enquanto isso, as doenças tropicais  negligenciadas (DTN) estão recebendo menos dinheiro: seu financiamento  caiu 9,1% na última década. E seis doenças que historicamente receberam o  menor valor de financiamento – incluindo quatro DTN (hanseníase, úlcera  de Buruli, tracoma e leptospirose) –  receberam a menor fatia de todos  os investimentos globais . As consequências disso são graves, como exemplifica Madhukar Pai, em artigo no site da Forbes:  quase 140 mil pessoas morrem todo ano por picadas de cobra, mas há uma  escassez crônica de soros; a esquistossomose carece de testes mais  rápidos para diagnóstico; o verme da Guiné, propagado  por meio de água  contaminada, não tem tratamento nem vacina.
CORONAVÍRUS
 A bola de neve continua crescendo: de acordo com os últimos dados oficiais, o coronavírus já infectou 7.711 pessoas na China e matou 170. Ontem, as autoridades chinesas informaram que está sob investigação, em Wuhan, o primeiro caso de um paciente “supercontagiante”,  que transmitiu o coronavírus a pelo menos 16 profissionais que o  atenderam. Os supercontagiantes são pessoas cuja capacidade de  transmitir o vírus é muitas vezes superior à da média. Não se sabe por  que isso acontece. Segundo especialistas ouvidos pelo El País, eles tiveram um papel importante nas epidemias da SARS (2002/2003) e MERS (2014/2015) também causadas por coronavírus. 
No mundo, já são 16 países com casos confirmados além da China:  Emirados Árabes (4), Finlândia (1), Alemanha (4), França (5), Canadá  (1), EUA (5), Austrália (7), Sri Lanka (1), Camboja (1), Nepal (1),  Vietnã (2), Singapura (10), Malásia (7), Coreia do Sul (4) e Tailândia  (14). 
Hoje, a Organização Mundial da Saúde volta a reunir seu comitê de crise para resolver se declara o novo coronavírus como uma emergência em saúde  pública de interesse internacional. Agora, os especialistas terão de  verificar se as transmissão de pessoa para pessoa detectada fora da  China (na Alemanha, Japão e Vietnã) já é um elemento suficiente para  provar o potencial de propagação global da doença.
Por aqui, o número de casos suspeitos subiu de três para nove,  segundo o Ministério da Saúde. São três em São Paulo e dois em Santa  Catarina; Minas, Paraná, Rio de Janeiro e Ceará têm um cada. Todos eles  aguardam resultado de exames que devem ficar prontos amanhã. Outros  quatro casos foram descartados: três no Rio Grande do Sul e um no  Paraná. Também durante coletiva de imprensa dada ontem, a Pasta informou  que o governo vai recriar um grupo interministerial  para tratar de emergências de saúde pública. A estrutura havia sido  extinta pelo revogaço de Bolsonaro que atingiu, no ano passado, diversos  conselhos e grupos de trabalho. Além disso, o governo brasileiro decidiu não impor barreiras à entrada de pessoas e mercadorias vindas da China.
PRESSÃO SOBRE O SISTEMA DE SAÚDE
 As fragilidades dos sistemas de saúde ficam bem mais visíveis durante situações de crise, como o novo coronavírus. Reportagem do New York Times relata a pressão sobre os serviços chineses.  “Enquanto luta para combater o surto de coronavírus, o governo chinês  conta com um sistema médico abarrotado e sobrecarregado, mesmo em tempos  normais. Embora outras partes da vida cotidiana na China tenham  melhorado significativamente na década passada, a qualidade dos cuidados  com a saúde estagnou. Nas grandes cidades como Pequim e Xangai, muitas  pessoas precisam ficar na fila desde as primeiras horas da manhã para  marcar consultas com médicos. Quando conseguem uma consulta, os  pacientes recebem apenas alguns minutos com um médico. Durante a  temporada de gripe, os moradores montam acampamento durante a noite com  cobertores nos corredores de hospitais. A China não possui em  funcionamento um sistema de atendimento primário, por isso a maioria das  pessoas se encaminha para hospitais. Em um dia comum, os médicos estão  frustrados e exaustos pois atendem cerca de 200 pacientes”, escreveu a  repórter Sui-Lee Wee.
A importância de uma rede assistencial robusta e  organizada, com profissionais de saúde informados e conscientes de seu  papel foi destaque na entrevista dada por Rivaldo Venâncio, coordenador  de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, dada à  Abrasco. “Os trabalhadores da saúde são peças fundamentais no sentido de  debater com os gestores para contribuir para a estruturação de planos  de enfrentamento para a realidade que se avizinha. Se não precisar pôr  em prática, melhor para todo mundo, mas temos de estar preparados para o  cenário que vier. A fragilidade na rede assistencial, tanto primária  quanto especializada, traz um agravante adicional que devemos evitar”,  disse.
TECNOLOGIA
 Pela primeira vez, a inteligência artificial está sendo usada para monitorar e responder a uma crise do tipo. A matéria do Stat diz  que em surtos anteriores ela até foi usada, mas com papel limitado,  porque havia poucos dados necessários para fornecer atualizações  rapidamente. Mas, agora, há milhões de postagens nas redes sociais e em  sites de notícias no mundo todo, e os algoritmos conseguem gerar  informações quase em tempo real, passando-as às autoridades de saúde  pública.
A reportagem conversou com John Brownstein, epidemiologista e membro do site healthmap.org,  que usa a IA para analisar dados de relatórios governamentais, mídias  sociais, sites de notícias e outras fontes. De acordo com ele, o  objetivo não é substituir, mas sim complementar o trabalho de  profissionais da saúde pública. “Usamos machine learning para  coletar todas as informações, classificá-las, identificá-las e  filtrá-las – e então essas informações são enviadas aos nossos colegas  da OMS que estão olhando essas informações o dia todo e fazendo  avaliações”, explica. Quando novos tratamentos forem sendo testados,  ferramentas de IA podem também acelerar essa pesquisa.
E cientistas australianos anunciaram ontem que conseguiram criar com sucesso em laboratório uma versão do novo coronavírus. O feito pode ajudar a acelerar a criação de uma vacina.
PIORA DEPOIS DE SETE ANOS
 Acidentes em estradas federais cresceram no ano passado, chegando a 18,6  mil feridos graves —5% a mais que no ano anterior. O número de mortes  também aumentou ligeiramente: foram 5.332 vítimas em 2019, 61 a mais do  que o ano anterior. Não parece muito, mas é a primeira vez em sete anos que o número piora.  O problema coincide com o primeiro ano do governo Bolsonaro. Embora não  seja possível afirmar que o aumento tenha ocorrido devido à orientação  do presidente de diminuir a fiscalização por radares nas estradas e  mudar o Código de Trânsito Brasileiro, especialistas ouvidos pela Folha  afirmam que a sinalização do governo pode, sim, ter colaborado para um  alteração no comportamento dos motoristas. Os dados foram divulgados  pela Polícia Rodoviária Federal.
CHUVAS
 Subiu para 55 o número de mortes causadas pelas chuvas em Minas Gerais. Segundo a Defesa Civil, quase 45 mil pessoas estão desabrigadas e desalojadas no estado  e 65 ficaram feridas. Ao todo, 101 municípios mineiros estão em  situação de emergência. Três decretaram estado de calamidade pública. O  prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), classificou os danos  causados pelas chuvas como o maior desastre da história da capital mineira  desde a sua fundação em 1897. Ele afirmou que irá pedir entre R$ 300  milhões e R$ 400 milhões ao governo federal para as obras de recuperação  da estrutura da cidade.  
As chuvas também castigam o Espírito Santo. No estado,  que está em alerta máximo, já são nove mortos e dez feridos. Segundo a  Defesa Civil, 11.535 pessoas estão desalojadas e 1.626 desabrigadas. 
FOME NA ARGENTINA
 Só este mês, seis crianças morreram de fome em Salta, província do Norte da Argentina. A matéria do El País  diz que essa lamentavelmente não é uma notícia nova – todo verão as  secas se revezam com enchentes trazendo problemas às comunidades  indígenas no que se refere ao acesso à alimentação, e este ano, como em  muitos outros, a província declarou emergência socioambiental. Entre os  problemas estruturais, está a falta dos chamados “agentes sanitários”  nas comunidades mais isoladas. São semelhantes aos nossos agentes  comunitários de saúde: visitam as casas recolhendo informações sobre  peso, altura, vacinação e histórico de doenças familiares. Então, quando  os casos chegam ao hospital – que fica a 300 quilômetros –, já é tarde.
O ministro do Desenvolvimento Nacional, Daniel Arroyo,  disse que vai priorizar a distribuição de água e alimentos embalados.  Mas as soluções de longo prazo devem continuar no… longo prazo. O  acesso à água tem sido um problema histórico; as famílias indígenas são  pobres e têm os piores indicadores educacionais, de saúde e sociais do  país.
NOVO TRANSPLANTE
 Esta semana, um grupo de cientistas da Universidade de Osaka, no Japão,  anunciou o primeiro transplante de células musculares cardíacas  realizado a partir de células-tronco  pluripotente induzidas, ou iPS. Se funcionar bem, o método pode vir a  substituir transplantes de coração: em vez de substituir o órgão, essas  células são depositadas diretamente nas áreas danificadas,  transformando-se em células cardíacas. Segundo os médicos, o paciente em  questão teve uma melhora visível e passou para a enfermaria geral do  hospital. Nos próximos três anos, pelo menos outras dez pessoas devem  fazer o transplante experimental.  
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