O mercado que alimenta os EUA com sangue do México

Em ritmo alucinante, mexicanos vão até o país vizinho vender plasma. Com vistos específicos, “doam” até 2 vezes por semana, como única fonte de renda. Leia também: Bolsonaro veta fundo para pesquisas de doenças raras e negligenciadas

Imagem: Evangeline Gallagher, ProPublica
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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

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O ESQUEMA DO SANGUE

Imagine que você é mexicano e, duas vezes por semana, atravessa a fronteira com os Estados Unidos para “doar” sangue (o que nos tempos correntes, convenhamos, é bastante estressante). Essas “doações” são pagas e, na verdade, são a sua única fonte de renda. Então, mesmo que você saiba (ou sinta) que o seu corpo não tem tempo de se recuperar, pois os sintomas da falta de um anticorpo chamado imunoglobulina G já aparecem – dores de cabeça, desmaios, dificuldade até em levantar objetos – você continua. Essa é a rotina de Genesis, uma jovem de 21 anos, e de outros milhares de mexicanos que servem, literalmente, de matéria-prima para os EUA. O país é o maior fornecedor de plasma sanguíneo em um mercado global de US$ 21 bilhões. Por lá, uma pessoa pode “doar” sangue até 104 vezes por ano, uma permissão que ultrapassa em muito a regulação da maior parte dos países. 

A reportagem da ProPublica, feita em parceria com a TV alemã ARD, entra nos meandros do esquema envolvendo os imigrantes. Os dados da agência reguladora FDA mostram que dos 805 centros de doação de plasma nos EUA, 43 estão localizados ao longo da fronteira sul. E de acordo com documentos internos obtidos de uma das empresas que operam por lá, de longe, eles os mais produtivos. Em média, um centro de coleta da Grifols paga mil doadores por semana, enquanto na fronteira esse número sobe para 2,3 mil. Além disso, eles são os campeões no registro de pessoas que doam 75 vezes por ano ou mais.

Baseando-se em entrevistas com doadores de Ciudad Juárez e outros municípios da fronteira, cada doador mexicano recebe por dia US$ 9, abaixo de US$ 300 por mês. Mas isso varia: quanto mais magra, menos dinheiro a pessoa recebe por doação, numa variação que em outra empresa – a CSL – vai de 20 a 40 dólares. Se por qualquer razão a doação não se completa, a pessoa não recebe um centavo. Muita gente tem nas doações a principal ou a única fonte de renda. Dão o sangue por comida e casa. 

A situação está em uma zona cinzenta legal. Os mexicanos que doam sangue têm um visto específico, que permite entrar nos EUA apenas para visitar. Mas Genesis, por exemplo, faz isso há dois anos duas vezes por semana no que poderia ser perfeitamente caracterizado como uma relação de trabalho. As empresas negam essa relação e afirmam que o pagamento é uma compensação aos doadores.  

No México, o pagamento por doação foi proibido em 1987. No Brasil, isso aconteceu em 1988, com a Constituição. Antes da criação do SUS, o sangue era uma mercadoria como qualquer outra. Máfias operavam esquemas de sangue e a segurança das transfusões era precária. Quando defendeu a criação do sistema público de saúde na Constituinte, o sociólogo Betinho, ele próprio vítima de sangue contaminado, resumiu: “Esta é uma questão nacional da qual o sangue é apenas uma ponta do iceberg, mas é uma ponta importante, é uma ponta fundamental.” 

SOB CRÍTICAS

Nos EUA, os senadores e pré-candidatos à presidência Bernie Sanders e Elizabeth Warren são os maiores defensores do Medicare-for-all, que ofereceria cobertura de serviços de saúde a todas as pessoas. Mas agora a classe média está preocupada com o quanto isso lhe custará, diz a matéria do Washington Post. A ideia é que os custos extras em impostos seriam compensados pela economia de deixar de pagar por serviços. Porém, alguns especialistas afirmam que o plano é pouco detalhado em relação ao seu financiamento e que não é possível estimar, agora, como o orçamento de cada tipo de família seria impactado. Os questionamentos dão força ao ceticismo dos eleitores e, consequentemente, às ideias do concorrente Joe Biden. Ele se concentra mais em desenvolver o Obamacare, com uma proposta que custaria menos ao governo.

TEM, MAS NÃO PODE USAR

Há sete métodos contraceptivos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais do Ministério da Saúde, mas só nove capitais brasileiras oferecem todos eles, segundo levantamento da Gênero e Número. Quase todas disponibilizam o DIU de cobre, um dos métodos mais seguros, com 1% de chances de falha. Porém, da disponibilidade até o acesso há um caminho longuíssimo, e a reportagem de Lola Ferreira conta exemplos de dificuldades atravessadas por mulheres para conseguir colocar o dispositivo. 

Quem acompanha o tema sabe que as barreiras variam muito entre cidades diferentes – e mesmo entre unidades de saúde distintas dentro de um mesmo município –, mas impressiona o fato de haver histórias como as narradas pela matéria. Uma das entrevistadas tenta colocar o DIU há dois anos. “Ela relata que é necessário participar de palestras, fazer uma bateria de exames e conseguir que a agenda do ginecologista do sistema público encaixe com o período do ciclo menstrual que ele orienta para fazer o procedimento e até os próprios exames prévios à inserção”. Ela diz ainda que mulheres mais jovens costumam ser desencorajadas. 

Nada disso, porém, é recomendação do Ministério da Saúde. A Pasta não faz nenhuma restrição ao uso de DIU, nem de idade nem de quantidade de filhos, e preconiza que o dispositivo pode ser inserido “desde que haja certeza de que a mulher não esteja grávida, que não tenha malformação uterina e não existam sinais de infecção”. A única orientação é que as mulheres saibam da existência de outros métodos. 

SARAMPO

Começa hoje a primeira fase da campanha de vacinação contra o sarampo. O Ministério pretende imunizar pelo menos 95% das crianças de seis meses a cinco anos, e prometeu distribuir “incentivo” financeiro de R$ 206 milhões para os municípios que cumprirem a meta. Além disso, R$ 333 milhões serão repassados para reforçar as equipes locais de profissionais de saúde, e outros R$ 19 milhões serão gastos na divulgação da campanha. O número de casos registrados chegou a 5.504, em 19 estados. Segundo a Pasta, o surto deve demorar de seis a oito meses para ser contornado.

Em Florianópolis, autoridades de saúde tentam rastrear centenas de espectadores de uma peça teatral. Isso porque na plateia de  “Meu nome não é Jorge” estava uma pessoa que recebeu o diagnóstico de sarampo quatro dias depois do espetáculo, que aconteceu em 22 de setembro. Até agora, só 25 dos 529 espectadores se apresentaram nas unidades de saúde da prefeitura, depois de o alerta ser noticiado na imprensa local. Os produtores não tinham uma lista com os nomes da plateia, o que dificultou o rastreamento. 

MOVIMENTAÇÕES

O Conselho Federal de Medicina está em uma cruzada contra mudanças no Revalida, com direito à visita da diretoria a Jair Bolsonaro na última sexta (4). Isso porque o Congresso está… legislando. E mudou a redação original da medida provisória que cria o programa Médicos pelo Brasil para que os cubanos que atuaram no Mais Médicos possam trabalhar sem validação do diploma por dois anos. Bolsonaro pode vetar o que os parlamentares decidirem e, ao que parece, se comprometeu em fazê-lo. Além disso, o novo presidente da entidade, Mauro Ribeiro, entregou a Bolsonaro uma lista de pleitos da categoria, entre eles a exclusão do CFM de qualquer mudança decidida para os conselhos profissionais a partir da PEC 108/2019. 

VETO

Bolsonaro vetou integralmente o PL 231/2012, que criaria o Fundo Nacional de Pesquisas para Doenças Raras e Negligenciadas. Pela proposta, seriam reservados pelo menos 30% dos recursos do Programa de Fomento à Pesquisa da Saúde para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e terapias para esse tipo de enfermidades. A justificativa para o veto é que “a proposta pode comprometer a exequibilidade do referido Fundo e o financiamento/pagamento de projetos e pesquisas em andamento, além de não contribuir, da forma como proposto, para o aumento do interesse do setor privado no tema”. A matéria da RBA nota que as doenças negligenciadas permanecem assim justo porque não há interesse do setor privado…

DOIS LADOS

Em alguns dias, São Paulo pode ter uma nova política estadual sobre drogas. De autoria do deputado Heni Ozi Cukier (Novo), o projeto de lei prevê tanto a redução de danos, quanto a abstinência – apesar de não usar “esse linguajar” para não disparar “gatilhos ideológicos”, explica o parlamentar à Folha. “Estou tentando construir uma saída com o melhor dos dois lados. Não existe nenhuma solução no mundo feita só com um ou com outro”, resume. Para sair do papel, o governador João Doria precisa sancionar a iniciativa. E ele tem um histórico bem ruim: assim que assumiu a Prefeitura, entre um grafite apagado e um flash vestido de gari, Doria esteve à frente de uma operação extremamente violenta contra a Cracolândia e acabou com o programa da gestão Fernando Haddad, De Braços Abertos, baseado na redução de danos. “O Estado de São Paulo não tem uma política de Estado sobre o assunto, tem política de governo. Cada novo que vem muda. Minha motivação é resolver esse problema”, diz Cukier.

PODE SER MAIS DIFÍCIL PARAR

O marketing da Juul, líder no segmento de cigarros eletrônicos, era construído em cima da presunção de que o produto era mais seguro do que o cigarro normal. Agora, além de uma onda de medo ter surgido junto com a doença pulmonar misteriosa ligada ao vaping, aparecem os primeiros relatos sobre as dificuldades de estabelecer um tratamento para quem quer parar. A Wired ouviu especialistas e nenhum deles está certo de que os métodos usados no tratamento ao consumo de cigarro normal terão sucesso com o eletrônico. Especialmente porque o público-alvo da novidade, que tem além de tudo tem o apelo da tecnologia, são os adolescentes. E, para eles, entram em jogo outros fatores, como a necessidade de aceitação do grupo. 

Hoje, 12% dos estudantes no último ano do ensino médio fumam diariamente nos EUA, número que dobrou em dois anos. O novo hábito não segue os padrões antigos: os jovens fumam preferencialmente na escola, mais especificamente nos banheiros, já que o cigarro eletrônico tem um cheiro mais discreto e se o vapor fica algum tempo na boca, se dissipa. E, visualmente, a experiência é diferente também. Quem fuma cigarros vê as pilhas se acumulando no cinzeiro. Ou a quantidade diminuindo na caixa. Os jovens consumidores da versão eletrônica se sentem compelidos a terminar um pod por dia – o que não quer dizer muita coisa em termos visuais, mas em termos químicos equivale a um maço. O dispositivo também libera mais nicotina do que o cigarro tradicional. Por tudo isso, os profissionais de saúde navegam em mares desconhecidos. Por exemplo: os adolescentes pedem mais adesivos de nicotina do que os consumidores de tabaco normal. O Instituto Nacional de Câncer já registrou 47 mil jovens entre 13 e 24 anos no seu programa de tratamento.  

FALTOU UMA COISINHA

Na semana passada falamos de um estudo sobre o consumo de carne que repercutiu muito, tanto aqui como lá fora. A pesquisa encabeçada pelo canadense Bradley Johnston, da Universidade Dalhousie, concluiu que diminuir o consumo de carne não fazia diferença pra saúde – o que gerou críticas e dúvidas quanto à consistência do trabalho. E uma matéria do New York Times nota que o autor esqueceu de declarar uma coisinha: poucos anos atrás, ele foi financiado pelo Instituto Internacional de Ciências da Vida (ILSI), um grupo industrial apoiado por empresas farmacêuticas, de alimentos e do agronegócio, como McDonald’s, Coca-Cola e Cargill. Esta última, uma importante processadora de carne bovina. Em 2016, a pesquisa de Johnston bancada pela ILSI questionou as diretrizes de saúde que aconselham  as pessoas a reduzir o açúcar. O pesquisador disse ao jornal que seu relacionamento com o grupo “não teve influência na pesquisa atual sobre recomendações de carne”.

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