O caso Mariana Ferrer e o machismo no Judiciário

Advogado humilhou vítima e promotor ajudou a inocentar acusado. ‘Estupro culposo’, que não existe na lei, gera revolta

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Intercept Brasil gerou uma onda de revolta ontem ao divulgar novas informações sobre o julgamento do estupro de Mariana Ferrer. O caso terminou em setembro com a absolvição do acusado, o empresário André de Camargo Aranha, e na época levou a uma enxurrada de críticas: a hashtag #justiçapormariferrer foi uma das mais postadas no Twitter. Agora, ela voltou a circular.

A novidade está nos detalhes trazidos pela repórter Shirlei Alves sobre o desenrolar do julgamento. No vídeo divulgado pelo site, vemos o advogado de Aranha humilhando a vítima. Cláudio Gastão da Rosa Filho – um dos advogados mais caros de Santa Catarina, conhecido por representar ricos e poderosos – mostra fotos sensuais produzidas por ela  modelo profissional para indicar que a relação havia sido consensual. Ele ainda diz que jamais teria uma filha “do nível” de Mariana. Algo que não deveria fazer diferença no julgamento é o fato de que Mariana era virgem (isso foi comprovado por exame pericial, assim como a presença de sêmen do acusado nas suas roupas); Cláudio Gastão sugere que é mentira: “É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”. As coisas se invertem e a vítima passa a ser julgada: “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada”, ela pede. O ministro do STF Gilmar Mendes disse que as cenas são “estarrecedoras” e que o sistema de Justiça não deve ser instrumento de “tortura e humilhação“. 

Mas o que deu mais pano para manga foi uma alegação usada durante o caso. Inicialmente, Aranha foi acusado de estupro de incapaz, porque Mariana acredita ter sido dopada. Mas o caso mudou de mãos, e a nova promotoria argumentou que o empresário não poderia saber que ela não tinha condições de consentir a relação. O Intercept deu, na manchete, que a história terminou com uma “sentença inédita de ‘estupro culposo’”. Na verdade, essa expressão não aparece nas alegações finais nem na sentença; o pedido para que Aranha fosse inocentado se baseia na falta de provas de que Mariana estava alcoolizada ou sob efeito de drogas a ponto de ser considerada vulnerável. As provas mais importantes apresentadas eram o testemunho de Mariana, de sua mãe, do motorista de Uber que a levou para casa e mensagens enviadas por ela para amigas, ainda na festa onde o estupro teria acontecido.

A expressão ‘estupro culposo’ nem poderia mesmo ser usada, já que esse crime não está previsto em lei. Em uma nota de atualização na matéria, o Intercept diz que a usou para “resumir o caso e explicá-lo para o público leigo”; já o advogado Cláudio Gastão disse à Folha que a matéria é ‘fake news’. Durante o julgamento o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, menciona um trecho de um livro do jurista Cleber Masson que trata da ausência de dolo (intenção) nessas situações: “Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”, escreveu ele, segundo o site Conjur

O fato é que a tese do ‘estupro culposo’ acabou se tornando o cerne da discussão. O que faz sentido, já que a moda pode pegar – e muitas vezes a única prova de um estupro é a palavra da vítima. “[A tese] está dando para o homem o ensinamento diverso daquele que a gente está tentando mostrar, de que não é não. Se a pessoa não está completamente capacitada para consentir, ele não deve manter a relação sexual. E não importa se ela está bêbada porque quis se embriagar ou porque foi dopada. Não é esse o tipo de resposta que a gente espera do poder Judiciário”, nota a delegada Bárbara Camargo Alves, da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, no Intercept.

De todo modo, esse debate não deve ofuscar a humilhação imposta à vítima durante o julgamento. “É irrelevante que ‘estupro culposo’ apareça no processo. Assim como seria possível até mesmo uma absolvição, a depender da prova. Não estamos discutindo técnica de processo penal, mas a humilhação e crueldade impostas a uma mulher, em um espaço público que deveria protegê-la”, escreveu a juíza Andréa Pachá.