Não falta mais desenhar

Atas de reuiões do comitê criado para aconselhar o Ministério da Saúde durante a pandemia revelam a negligência da pasta em relação à falta de sedativos e insistência na cloroquina

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Desde o início da pandemia, já vimos no Brasil dramas provocados pela falta de equipamentos de proteção, de ventiladores pulmonares, de profissionais treinados para atuar nas UTIs… Agora, estamos no limiar de uma situação extrema: o fim dos medicamentos que sedam os pacientes intubados. Em bom português, mais mortes – dolorosas e evitáveis. Nas contas do secretário de saúde do Paraná, o estoque do estado chega ao fim no domingo. No comunicado, feito em uma transmissão ao vivo na última quarta, Beto Pretto ressaltou: a crise é generalizada. E, acrescentamos: ontem, ganhou uma nova dimensão.

Documentos obtidos pelos maiores veículos da imprensa praticamente desenham a conduta negligente da atual gestão do Ministério da Saúde diante do problema. Os detalhes estão nas atas de numerosas reuniões realizadas pelo COE, o Centro de Operações de Emergência. Criado em janeiro para assessorar a pasta, ele é composto por autoridades do Ministério, mas também por especialistas de outros órgãos (Anvisa, Fiocruz, etc.) e até de fora do Brasil, como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Por isso mesmo, as discussões promovidas por lá trouxeram contrapontos às ‘políticas’ do governo federal. A conclusão? O Ministério preferiu ignorar os alertas sobre o desabastecimento de sedativos fundamentais para o tratamento dos casos graves da covid-19 e se concentrou totalmente na importação de insumos e distribuição de cloroquina. Mas vamos por partes.  

O assunto veio à tona em 14 de maio, um dia antes de o general Eduardo Pazuello assumir o comando da pasta. Na ocasião, o COE debateu o “desabastecimento de medicamentos utilizados na UTI” – que vinha sendo relatado pelos secretários estaduais de saúde. No dia 25 daquele mês, o comitê estabeleceu a necessidade de apurar “por que os estados não estão conseguindo comprar os medicamentos de UTI”.

A próxima reunião – e a mais chocante – aconteceu no dia 29 de maio, quando se constatou que a dificuldade se devia a problemas na produção dos remédios, como escassez de matéria-prima, e a dificuldades na importação dos medicamentos. O documento aponta risco de falta de 267 “insumos” (sem especificar quais) – e informa que 88 deles vêm da Índia. Aconselha que a Anvisa faça um levantamento junto às empresas sobre exatamente quais produtos estariam prejudicados. A resposta do Ministério da Saúde é uma operação-abafa. “Importante: Não fazer divulgação dos dados”, diz a ata. Detalhe: a orientação foi feita cinco dias antes de estourar a crise envolvendo a falta de transparência na divulgação dos casos e mortes por covid-19. 

Em paralelo ao COE, o sentimento dos gestores locais era o de que “a reação inicial do governo federal foi questionar os dados sobre desabastecimento relatados pelas secretarias e afirmar que a busca pelo produto cabia a estados e municípios”, escreve o repórter Mateus Vargas. Com isso, o Ministério da Saúde perdeu um tempo precioso para evitar a crise.

Foi mais de um mês depois da primeira reunião do COE que discutiu o assunto que a pasta se movimentou para realizar a compra centralizada dos medicamentos. Em 17 de junho, o procedimento recebeu o aval da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mas no dia 24 daquele mês, 22 unidades da federação já estavam com o estoque zerado de ao menos um sedativo usado na intubação de pacientes. 

A culpa pelo desabastecimento, que hoje beira a totalidade dos insumos – ao menos no Paraná –, foi jogada na Anvisa e na Opas pelo assessor especial da Secretaria Executiva do Ministério, Alessandro Glauco. Questionado pelo jornal O Globo, ele disse que a pasta aguardou um parecer da agência sobre a regularidade da compra por meio da Opas e, na sequência, afirmou: “Até este momento, também não conseguimos saber por que as compras não estão sendo realizadas.” 

ENQUANTO ISSO…

As atas do Centro de Operações de Emergência revelam que o Ministério da Saúde não marcou bobeira quando o assunto era a cloroquina. Cinco dias depois de divulgar o documento em que orienta o uso do medicamento em todas as fases da covid-19, a pasta propôs uma discussão sobre a capacidade nacional de produção. 

Na ata da reunião que aconteceu em 25 de maio, o Ministério informa que fez um levantamento junto a empresas no Brasil e no exterior e concluiu que seria necessário importar três toneladas de insumos para a produção da cloroquina. Importante notar que, naquele momento, cloroquina não faltava: havia 1,46 milhão de comprimidos em estoque e a expectativa de receber outros 1,3 milhão do Laboratório do Exército.

“Devido à atual situação, não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas”, ponderou um integrante do COE. Não dá para saber quem, já que as atas não identificam os interlocutores.

Outro exemplo aponta que o COE passou a ser tratado pelo Ministério como uma estrutura meramente formal. No dia 9 de junho, representantes da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES) apenas comunicaram a proposta de oferta de cloroquina para crianças e gestantes. “Foi pontuado que os técnicos do COE fazem sugestões, mas não têm chancela administrativa sobre o documento. Ele é apresentado apenas para ciência deste COE”, informa a ata. A SGTES, comandada por Mayra Pinheiro, passou a ser a secretaria à frente da ‘política’ de cloroquina, apesar de ter sido criada para propósito bem diferente: a regulação da força de trabalho do setor da saúde.

Em 19 de junho, o COE indicou que o governo teria uma batata quente nas mãos depois que Donald Trump e empresas doaram – a pedido de Jair Bolsonaro – três milhões de unidades de hidroxicloroquina. Isso porque o medicamento teria de ser fracionado, e membros do comitê afirmaram que o Laboratório do Exército não tinha condições de fazer isso. A ‘solução’ do Ministério? Passar a batata para os estados, defendendo que eles assumissem a despesa. 

Acontece que, àquela altura, vários governadores queriam o contrário: devolver os comprimidos de cloroquina. A ata de 3 de julho informa que alguns deles tinham pedido o recolhimento de 1.456.616 de doses. Nesse dia, aparecem outros números bem precisos da encalacrada em que o presidente meteu o Ministério: a pasta tinha um estoque de 4.019.500 comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina e outros 4.374.000 haviam sido distribuídos. Somando as doses que os estados não querem com esse estoque, temos uma montanha de 5,4 milhões de comprimidos que não servem para nada. Procurado por diversos jornais, o Ministério não confirmou o estoque atual da droga.

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