Ao menos uma fração?

Abismo entre países ricos e pobres na vacinação contra covid-19 parece eternamente intransponível. Surge uma alternativa controversa: fracionar doses para fazê-las render mais onde são escassas

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A OMS e vários especialistas vêm reforçando desde o ano passado que “ninguém está seguro até que todos estejam seguros”, visto que estamos em uma pandemia. A ideia de que países pouco vacinados são caldeirões de novas variantes e que algumas delas podem vir a causar estragos mesmo onde a cobertura vacinal é alta (vide a Delta) talvez seja o melhor argumento para convencer nações ricas a pensar na necessidade de aumentar a produção e melhorar a distribuição de imunizantes. 

Apontar que a desigualdade é uma “falha moral catastrófica” nunca foi o suficiente. Mas, até agora, a preocupação com a vinda de novas variantes também não tem conseguido evitar que nações ricas optem por vacinar suas crianças ou oferecer terceiras doses antes que idosos e profissionais de saúde no mundo todo estejam protegidos. É esse o contexto em que a OMS começa a avaliar a possibilidade de fracionar doses de vacinas para ampliar o seu alcance, uma proposta que tem sido defendida por alguns cientistas. 

O tema apareceu na última reunião da entidade com especialistas e farmacêuticas sobre pesquisa de vacinas. Não ficou nada decidido, até porque não há evidências sólidas o suficiente para apoiar uma política de fracionamento – nem no regime regular, nem nas doses de reforço. Existem bem mais perguntas do que respostas. Por enquanto, o que há de mais interessante nesse sentido é o ensaio de fase 3 da vacina de Oxford/AstraZeneca, que, como se sabe, usou por engano uma dosagem mais baixa em um dos braços (o regime foi o de meia dose + uma dose) e obteve uma eficácia maior do que no grupo que recebeu duas doses inteiras. Há outros dados sobre ensaios em fases anteriores, com os imunizantes da Pfizer/BioNTech e da Moderna, indicando que a produção de anticorpos foi alta com dosagens mais baixas do que as utilizadas. Há que se perguntar se as farmacêuticas não poderiam ter conduzido ensaios clínicos com essas dosagens, para medir sua eficácia…

Os cientistas que defendem a possibilidade do fracionamento lembram que a estratégia já foi usada antes. Em 2015, quando um grande surto de febre amarela atingiu a África Ocidental e não havia vacina suficiente, a OMS revisou as evidências sobre a imunogenicidade e segurança da dosagem fracionada e recomendou que os países usassem um quinto da dose-padrão. Deu certo. Poucos anos depois, o mesmo foi feito no Brasil. O fracionamento também já foi recomendado pela OMS para a vacina inativada contra a poliomelite e para a meningocócica conjugada, especialmente quando ocorre escassez de imunizantes em meio a surtos. 

Pode ser que novas pesquisas venham a demonstrar a viabilidade de usar doses mais baixas com bons resultados no caso da covid-19. E, sim, essa seria uma ótima notícia. Mas é curioso que esse debate precise acontecer num momento em que há sobra de imunizantes em pequenas partes do mundo. Aliás, a mesma reunião da OMS que discutiu o fracionamento tratou também sobre a necessidade de doses extras para pessoas já vacinadas. Todas as farmacêuticas presentes, exceto a Janssen, defenderam que os reforços são necessários, como nota o Health Policy Watch. 

Helen Rees, presidente do órgão regulador da África do Sul, observou que parece estar se desenvolvendo uma “agenda de pesquisa de duas camadas”: uma para os países ricos, outra para os mais pobres. Por aqui, não temos nenhuma dúvida disso. 

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