E o SUS vai deixando de ser universal…

Gestores aprovam modelo de competição para o financiamento da atenção básica: proporcional aos pacientes cadastrados nas unidades e ao desempenho em certos indicadores. Leia também: campanha usa medo e nojo para prevenir ISTs

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Por Maíra Mathias e Raquel Torres

SEM CONVERSA, MUDANÇA APROVADA

Uma “competição saudável” é o que, segundo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, vai se instaurar na saúde a partir de 2020, com o novo financiamento da atenção básica aprovado ontem. A Comissão Intergestores Tripartite, que reúne gestores das esferas municipal, estadual e federal, deu sinal verde para a proposta do governo, anunciada pela primeira vez em meados de julho. Já havia apoio do Conasems, formado pelos secretários municipais de saúde – mas, como temos falado aqui na newsletter, o governo passou longe de fazer o debate adequado sobre isso, e sequer apresentou uma proposta formal ao Conselho Nacional de Saúde.

O site do Ministérionão detalha minimamente as mudanças. Apenas diz que agora o governo vai “enviar mais recursos para quem melhorar a saúde da população”, e que o novo modelo vai ser anunciado em breve por Jair Bolsonaro. Na Folha, a repórter Natália Cancian elenca as alterações, que já eram conhecidas: o repasse de recursos pelo governo federal vai levar em conta o número de pacientes cadastrados nas unidades de saúde e o desempenho delas a partir de certos indicadores. Haverá recursos extras para locais com maior vulnerabilidade socioeconômica.

O secretário de atenção primária em saúde, Erno Harzheim, diz que a medida vai aumentar a verba repassada à maior parte das cidades em R$ 2,6 bilhões. Porém… a perda estimada para os outros municípios é da ordem de R$ 290 milhões. E há uma preocupação grande por parte de especialistas pelo fato de o novo financiamento só levar em conta os usuários cadastrados, e não a população total das cidades. “É o desmonte da concepção de acesso universal do SUS”, resumiu Francisco Funcia, especialista em economia da saúde, na reportagem da Folha. Já Mandetta acredita que a medida vai estimular as unidades a cadastrarem os usuários. E, para o ministro, é bom que a remuneração venha a partir dos indicadores, já que assim os municípios vão competir para buscar melhoria no desempenho. Fica sempre aquela dúvida sobre como melhorar o desempenho sem a remuneração adequada… 

O Conselho Nacional de Saúde editou ontem um ofício anunciando que, na sua 325º reunião ordinária, o assunto entra como principal item da pauta. Mas, pelo calendário do órgão, esse encontro não é o próximo, nem o marcado para dezembro… No ofício, o presidente do CNS informa ainda que o governo vai enviar aos conselheiros, finalmente, documentos sobre o novo modelo de financiamento.

MEDO E NOJO

Em 1988, o Ministério da Saúde levou ao ar uma campanha de alerta à Aids que tinha como força motriz o medo da morte (e também um tanto de crítica moralista ao fato de as pessoas terem vários parceiros sexuais). Ela pegava carona no poema de Drummond: João que amava Tereza, que amava Raimundo… Em 2019, a Pasta resolveu ressuscitar o medo e mobilizar o asco da população na sua mais nova campanha contra as infecções sexualmente transmissíveis (IST). Ao custo de R$ 15 milhões, a publicidade mostra pessoas jovens fazendo caretas de nojo e espanto diante das telas de seus celulares. Cada um dos personagens está olhando imagens de uma doença diferente: gonorreia, herpes genital, sífilis, cancro mole, etc. O slogan? ‘Sem camisinha você assume o risco’. 

“Quem fez a campanha não estuda, não entende IST e não segue as estratégias mais modernas de prevenção. Preferem apostar no medo e na culpa”, criticou Rico Vasconcelos, médico infectologista da USP, em entrevista ao Estadão. “Ao investir no medo, no nojo, o resultado mais simples é que pessoas se afastem de informações relacionadas à doença e à prevenção”, afirmou Veriano Terto, vice-presidente da Associação Interdisciplinar de Aids, também ao jornal. Para o ministro Mandetta, contudo, a campanha é “instigante”.

Os especialistas ouvidos pelo Estadão também apontam que a campanha tem um problema de informação. Em primeiro lugar, ela não segue o manual do próprio Ministério da Saúde sobre o assunto, que preconiza que a estratégia mais eficiente em esforços do tipo é a prevenção combinada, que enfatiza a testagem e o tratamento na população. A lógica é que quanto menos pessoas infectadas, menor o risco de contaminação. Em segundo lugar, a nova campanha é considerada desonesta porque há infecções que são transmitidas mesmo com o uso de camisinha, caso da herpes e do HPV. “Se você considerar o sexo oral, que menos de 2% das pessoas fazem com preservativo, os riscos são ainda mais expressivos. Pessoas podem pegar com essa prática desprotegida clamídia ou herpes”, lembrou Rico Vasconcelos. “Para falar sobre estratégias combinadas é preciso falar sobre sexualidade, e é algo que o Ministério quer evitar”, concluiu, por sua vez, Veriano Terto.

ADEUS AO ALERTA

Já faz um tempo que a Anvisa anunciou seu novo marco legal para classificar e rotular agrotóxicos. A principal alteração é nos critérios que levam a definir um produto como “extremamente tóxico” – agora, só entram aí substâncias que trazem risco de morte. Com isso, centenas de substâncias antes consideradas extremamente tóxicas mudaram de status. Inclusive o produtos formulados à base de glifosato, segundo levantamento da Agência Pública: antes, 24 desses produtos eram considerados extremamente tóxicos. Agora, nenhum. Ao todo, 93 venenos à base do herbicida tiveram sua classificação de toxicidade reduzida, e apenas três se mantiveram na mesma classe.

“Esse alerta vai sair da embalagem do glifosato, um produto que pode corroer a córnea. A embalagem agora será igual a de qualquer produto de uso doméstico. Estamos seguindo contra todos os alertas que o mundo está abrindo para o glifosato”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Fiocruz, na reportagem. Temos visto aqui como a Bayer, atualmente dona da Monsanto, responde hoje a mais de 18 mil ações que responsabilizam o glifosato pelo desenvolvimento de tumores. A Europa discute retirá-lo do mercado, o que já aconteceu na Áustria. 

PRAZO NOVO

O vice-presidente Hamilton Mourão, que estava no exercício da Presidência durante a viagem de Bolsonaro, sancionou a lei que prevê que, no SUS, os exames para diagnóstico de câncer devem ser realizados no prazo de 30 dias, após a primeira suspeita do médico. A medida saiu ontem no Diário Oficial. Ela altera a redação da lei 12.732, de 2012, que já tratava do assunto e estabelecia outro prazo, de 60 dias para o início do tratamento. A nova determinação passa a valer em seis meses.

MALÁRIA

Nessa semana, a Anvisa aprovou uma nova droga desenvolvida para o tipo mais comum de malária que tem potencial de facilitar o tratamento. Ao invés de sete dias de medicação, a tafenoquina é ministrada em apenas um. Isso é um avanço porque acontece de as pessoas abandonarem o tratamento no meio, ao primeiro sinal de melhora. Mas sem o esquema completo de medicação a doença pode voltar. Entre janeiro e agosto deste ano, foram confirmados 87 mil casos da doença por aqui. O Brasil é o primeiro país onde a doença é endêmica a aprovar o uso da tafenoquina, que já recebeu sinal verde nos EUA e na Austrália. Em janeiro, será realizado um estudo para a incorporação do medicamento ao SUS.

MAIS UM PROBLEMA

Dois estudos publicados ontem – um na Science, e outro na Science Immunology – indicam que, afinal, o sarampo é pior do que parece: o vírus apaga parte da memória do sistema imunológico da pessoa infectada e faz anticorpos desaparecerem. Assim, o corpo ‘esquece’ como combater doenças para as quais já havia sido adquirida imunidade. Ambos os trabalhos analisaram um grupo de pessoas não vacinadas na Holanda, e ajudam a explicar por que crianças costumam contrair outras doenças infecciosas logo após se curarem do sarampo.

CERTIFICAÇÃO ENGANOSA

Uma investigação do Washington Post descobriu que a principal entidade internacional de certificação de cacau tem problemas “alarmantes” em suas análises de conformidade. A Utz, organização holandesa que audita mais de dois terços do cacau certificado no mundo, aprovou produtos de fazendas da África Ocidental que empregavam crianças, muitas vezes em condições perigosas, e ainda contribuíam para o desmatamento. Segundo a reportagem, empresas como Hershey, Nestlé e Mars vinham usando essa  certificação para rebater acusações de abusos na cadeia de suprimentos.

NOVOS NÚMEROS

A doença pulmonar relacionada a cigarros eletrônicos nos EUA segue crescendo: já são 1.888 mil casos registrados e 39 mortes.

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