Guedes quer desvincular tudo – e a Saúde apoia
O debate sobre a perigosa proposta do ministro da Economia, que pretende desfazer os nós amarrados pela Constituição de 1988 para áreas sociais e gastos obrigatórios, está só começando
Publicado 12/03/2019 às 09:06 - Atualizado 12/03/2019 às 09:14
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DESVINCULAR TUDO
A entrevista do ministro da Economia Paulo Guedes ao Estadão, publicada no domingo, traz uma novidade. Não é que o anúncio de “desvinculação, desindexação, desobrigação” do orçamento da União não tivesse sido feito: a proposta dividiu os holofotes com a reforma da Previdência desde o dia 2 de janeiro, quando Guedes fez seu discurso de posse. O que não se esperava é que o ministro pretendesse apresentar sua chamada PEC [Proposta de Emenda à Constituição] do Pacto Federativo antes da PEC da Previdência ser aprovada no Congresso. Mas, agora, ele afirmou que vai enviar “isso já”, e que o projeto entra pelo Senado. O discurso que embala a defesa de Guedes é o da “reabilitação” da classe política. Segundo essa linha de raciocínio, parlamentares dos três níveis devem ter controle sobre 100% do orçamento. A Constituição de 1988, que não recebeu a alcunha de ‘Cidadã’ à toa, estabeleceu freios que contivessem avanços dos mais poderosos sobre fatias do orçamento que deveriam ir para a seguridade social. E emendas posteriores regulamentaram o quanto cada nível deve investir, no mínimo, em saúde e educação. Mas Guedes a diminui. Para ele a Constituição é um “documento”: “Não é ficar escondido [a classe política] atrás de um documento escrito há 30 anos e jogar a culpa nele”.
O percentual mínimo para saúde e educação é um dos alvos da proposta, mas o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não está preocupado e apoia Guedes. Na verdade, num contorcionismo difícil de explicar, ele declarou ontem que “sem as vinculações, talvez a gente garanta até mais recursos para a Saúde“. O líder do PSL no Senado, Major Olímpio, vai pelo mesmo caminho. Disse ao Estadão que “a briga da sociedade é ver esse recurso chegar. Não adianta ser carimbado e não chegar” e ainda que “o governo está abrindo mão de poder e de força para que o recurso chegue diretamente ao atendimento da população”.
A movimentação de Guedes em torno disso já vinham suscitando preocupação. Reportagem da Poli, revista da Fiocruz, divulgada ontem e escrita pela nossa editora Maíra Mathias coloca a discussão em outros termos: afinal, de onde vêm e para onde vão os recursos do Estado brasileiro? Essa estrutura é justa? Além de mostrar os problemas pelo lado da arrecadação (como a estrutura regressiva dos tributos, que incidem pouco sobre renda e patrimônio e muito sobre o consumo de bens e serviços, penalizando os mais pobres), os especialistas ouvidos discutem a questão da vinculação e obrigação de receitas, que é uma forma de amarrar determinadas políticas ao orçamento. Para a maioria dos ouvidos, ela continua sendo necessária. “A Constituição acabou com a perversa tradição fiscal brasileira. O orçamento nunca atendeu o povo, nunca cumpriu a determinação de reduzir as desigualdades. Ela, então, separou a ordem social da ordem econômica e foi mais fundo: criou um orçamento próprio para a seguridade [social]. Ao fazer isso, impôs um novo formato de pensamento para as finanças brasileiras”, resume Evilásio Salvador, professor da UnB. O debate é complexo e está apenas começando.
A proposta deve chegar ao Senado no início do mês que vem segundo o líder do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE) . E amanhã vai ser lançada uma Frente Parlamentar Mista do Pacto Federativo para apoiar o texto.
PARA EMPRESÁRIOS
A declaração de Mandetta sobre o fim das vinculações foi feita ontem, depois de uma palestra que ele deu num almoço com empresários da saúde no Lide (Grupo de Líderes Empresariais), em São Paulo. Falou a eles sobre um ‘Projeto de Saúde para um novo Brasil’, o que inclui o novo formato do Mais Médicos. Mandetta voltou a dizer que vai priorizar o “Brasil profundo”, referindo-se às pequenas cidades do interior. E criticou o fato de que o modelo atual coloca médicos também em cidades grandes ou próximas das capitais – mas lembramos que nestes casos a ideia tem sido conseguir manter profissionais em regiões onde é difícil fixá-los, nas periferias.
O ministro também falou que vai priorizar o agrupamento de todos os municípios em 400 ou 500 distritos sanitários – algo que já acontece hoje em alguma medida mas, segundo ele, em acordos “informais” e instáveis. Ele disse ainda que a Secretaria Nacional de Atenção Básica deve ser criada esta semana, e anunciou a possível criação de uma Secretaria Nacional de Tecnologia da Informação e do Instituto Nacional de Genética Humana.
SEM SENTIDO
Sem dúvida, a melhor reportagem de 2019 até agora. Trata-se de ‘Famélicos: a fome que o Judiciário não vê’, assinada pelas repórteres Julia Dolce e Rute Pina, da Agência Pública. Como todo texto de fôlego, é difícil resumir. Mas o fio condutor são histórias de pessoas muito vulneráveis que furtaram produtos como carne, iogurte, pão de queijo e por que a Justiça insiste em levar esses processos criminais adiante mesmo havendo alternativas na jurisprudência. Assim, desde a delegacia, onde a pessoa poderia ser liberada, passando pelos ministérios públicos e chegando ao juiz há uma mistura de automatismo e insensibilidade que faz com que, no limite – para usar um argumento econômico –, o Estado gaste milhares de reais para processar alguém que furtou um item de R$ 5.
ARROZ COM FAROFA
Acontece em São Paulo e começou no fim do ano passado, ainda na gestão Márcio França (PSDB): a merenda escolar piorou. Os alimentos in natura ficaram de lado, enquanto processados que não faziam parte do cardápio passaram a reinar. Já teve escola dando de almoço arroz com farofa e coisas como sardinha em lata e macarrão sendo repetidos três vezes na mesma semana. Almôndegas congeladas (cheias de estabilizantes e conservantes) estão sendo compradas, e a Secretaria de Educação já abriu processo de tomada de preços para compra de molho de tomate em pó, segundo a matéria da Folha. Tudo em desacordo com o que dita o Guia Alimentar para População Brasileira, que orienta consumir o mínimo de processados e que se evite ultraprocessados. João Doria, atual governador, manteve a mudança. Todos devem se lembrar que ficou no centro dos holofotes quando, ainda prefeito da capital, ele defendeu a distribuição de uma ração feita com alimentos perto de vencer e/ou fora dos padrões para venda.
PREVIDÊNCIA
A Rede Brasil Atual lançou um site para reunir todas as notícias que revelem injustiças da proposta de reforma da Previdência enviada ao Congresso pelo governo. Além disso, eles explicam o que muda e reúnem artigos sobre o tema. Para salvar nos favoritos.
E enquanto isso, o INSS baixou uma circular proibindo funcionários – diretores, coordenadores-gerais, superintendentes, gerentes de postos de atendimento, auditor-geral… – de falar com a imprensa sobre a Reforma…
COM DINHEIRO PÚBLICO
“Isso aqui é uma máquina de fazer dinheiro”. A frase é de um homem que estava internado na comunidade terapêutica Centradeq-Credeq, flagrada em outubro do ano passado pelo Ministério Público após diversas denúncias de tortura. Como ele, vários “pacientes” contaram no calor do momento à reportagem do The Intercept sua rotina de “tratamento”. O menor gesto, como cruzar a perna e tocar em uma cadeira, era punido com isolamento num local apelidado de QO, ou quarto de observação. Ali, num exíguo espaço de menos de 6m2, homens e adolescentes eram obrigados a permanecer sem roupa nem banheiro, por às vezes uma semana. Também foram forçados a tomar remédios e ir trabalhar carregando tijolos. Construíram uma série de cômodos de ampliação da comunidade terapêutica. Cada uma dessas pessoas rendia à CT entre R$ 1,4 mil e R$ 2,6 mil – tudo dinheiro público. Os donos da entidade são o pastor Wellington Antônio Vieira (que chegou a se candidatar à Câmara Federal em 2014 e 2018 pelo PHS) e Ivan Renaje Pinto, que se apresentou à reportagem como “terapeuta holístico”, mas tem formação em Letras.
Mesmo com a denúncia do MPF, a Centradeq-Credeq teve seu convênio com o Ministério da Justiça renovado por Torquato Jardim, ex-ministro do governo Temer, numa cerimônia em que o então presidente afirmar que cada uma 412 entidades selecionadas foram checadas. O caso é mais um exemplo dos equívocos da guinada na política de tratamento aos usuários de álcool e outras drogas, particularmente aguda a partir do governo passado – e que tem tudo para continuar, já que dois de seus maiores defensores, o ministro Osmar Terra e o, agora, correligionário Quirino Cordeiro Jr. Foram aproveitados por Bolsonaro.
QUEM MANDOU MATAR?
Foi agora de manhã: policiais da Divisão de Homicídios e promotores do Ministério Público do Rio prenderam o PM reformado Ronnie Lessa, 48 anos, e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, de 46 anos, por participação no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Segundo a denúncia, Lessa deu os 13 tiros, enquanto Élcio Queiroz dirigia. As investigações indicam que o crime foi planejado meticulosamente durante três meses, mas ainda não se descobriu quem são os mandantes nem a motivação. Durante todo o dia, vai haver buscas em endereços de mais 34 suspeitos para apreender documentos, celulares, notebooks, armas.
Lessa foi preso em casa… e por acaso essa casa fica no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro.
BRUMADINHO
Segundo o Ministério Público de Minas, já há evidências que apontem para o fato de que o rompimento da barragem em Brumadinho poderia ter sido evitado e que, por isso, o crime pode ser considerado doloso, quando há intenção de matar. “Nenhuma providência prática foi tomada. Nem o Plano de Ação Emergencial, que não teria evitado o rompimento, mas teria evitado a catástrofe humana, foi adotado”, disse ontem a promotora Paula Ayres Lima. Ela informou que houve uma tentativa nesse sentido, que foi abandonada. “Tudo indica que eles teriam que parar a produção e ficou-se sempre buscando uma solução que evitasse parar a operação”.
ENCHENTES
Já são 12 o número de vítimas fatais das chuvas que ocorrem desde o domingo na região metropolitana de São Paulo. De acordo com a BBC, o problema está na falta de um componente fundamental do saneamento, a drenagem. Além disso, apesar de haver boas leis de planejamento urbano prevendo, por exemplo, que as pessoas não devam morar em locais alagadiços, não há políticas públicas de moradia. O resultado: dois milhões estão nessa situação só na região metropolitana de SP. Além de viver sob o constante risco de perder tudo com a invasão da água em casa, essa população é especialmente vulnerável a doenças de veiculação hídrica, como leptospirose e hepatite.
NÃO VAI DAR
A ONU anunciou ontem que o mundo não vai atingir a meta de reduzir a poluição química em 2020. O alerta foi dado durante a 4ª Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, que acontece no Quênia, e se baseia em estudo que reuniu mais de 400 cientistas. O objetivo tinha sido estabelecido lá atrás, em 2002.
FALSO E DUVIDOSO
Medicamentos falsificados são uma “pandemia global”, de acordo com um relatório publicado ontem no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Estima-se que 300 mil crianças morram por ano em decorrência desses remédios falsos, principalmente para tratar certas doenças. O principal exemplo é a malária. Falhas na produção da terapia para tratar a enfermidade, conhecida pela sigla ACT, seriam responsáveis por metade das mortes projetadas. Em oito países africanos pesquisados, 185 fabricantes não atendiam aos parâmetros sanitários, e apenas 12 estavam com tudo em dia.
CEM DIAS
O governo de Manuel López Obrador no México chegou aos cem dias. E aparentemente, o objetivo tem sido um ajuste nas contas. Foi anunciada uma “economia” de 680 milhões de pesos, algo em torno de R$ 134 milhões, graças a várias medidas de ajuste, como um corte de pessoal na ordem dos 30%. Não se sabe que funções esses trabalhadores cumpriam. Mas a maior parte do montante anunciado vem da compra de medicamentos, que passou por alterações, como a transferência das compras diretas de vacinas contra sarampo pela compra centralizada a partir da Organização Pan-Americana de Saúde, a Opas.