Um psicólogo incomum e a luta contra a medicalização

Memorial para Fernando Freitas, que contribuiu com o debate sobre a patologização da saúde mental. Chamado “guerreiro da mudança radical”, era importante voz contra tornar doença o que é da ordem das experiências múltiplas da vida

Edvard Munch, Melancolia (1894)
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À memória de Fernando Freitas

Na semana passada perdemos um grande ativista da luta contra a patologização e a medicalização da vida! Fernando Freitas era psicólogo, Doutor em Psicologia Social, ex-professor da UERJ e, ao final de sua carreira profissional, Pesquisador da Fiocruz. Ele não resistiu ao câncer que o fazia sofrer há cinco meses.

Embora tenha partido, Fernando deixou um trabalho que terá não apenas continuidade, mas que crescerá muito mais, seja pela relevância da questão à qual ele dedicou os últimos anos de sua vida, seja em consequência de sua fundamental e decisiva atuação.

Tradicionalmente debruçado no estudo das ciências sociais e humanas no campo da psicologia e da saúde mental, em especial em sua relação com as artes e a cultura, Fernando foi marcadamente instigado pelo livro de Marcia Angell (A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, como somos enganados e o que podemos fazer a respeito). Se trata de uma obra consistente, muito bem fundamentada documentalmente, sobre as mentiras, artimanhas, falsidades, atitudes antiéticas, etc, protagonizadas pela Big Pharma; a indústria farmacêutica! Angell, ex-professora de Harvard e editora de um dos mais influentes periódicos científicos na medicina e saúde em todo o mundo, revelava como nunca antes havia ocorrido, os bastidores da indústria farmacêutica e, mais que isso, os bastidores da fraude e manipulação na produção e divulgação científicas.

E a partir de Marcia Angell, muito particularmente a partir de um artigo publicado também no Brasil na Revista Piauí sobre a depressão e os antidepressivos, Fernando Freitas descobriu o trabalho de Robert Whitaker, premiado jornalista científico, autor de “Loucura na América”, “Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental” e, mais recentemente, “Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e prescrições para a reforma”.

A impressão é a de que nada mais seria tão importante para Fernando. O tema da medicalização se tornou nuclear em sua atividade acadêmica. Neste sentido, é preciso ressaltar que o termo medicalização não deve ser reduzido à utilização irracional ou abusiva de medicamentos. Utiliza-se medicalização para se referir ao processo de captura das dimensões da vida pela racionalidade médica, isto é, à transformação da natureza das coisas, que são reduzidas, exclusiva ou predominantemente, a fenômenos médicos. Mais recentemente, para evitar este reducionismo, passou-se a utilizar a expressão patologização, com o propósito de tornar mais claro o significado deste processo que, grosso modo, significa tornar doença, sintoma ou anormalidade, o que é da ordem das experiências diversas e múltiplas da vida! Um exemplo emblemático pode ser encontrado na transformação do significado da experiência da tristeza em depressão, expressão que passa a conter um sentido de doença! Não se fala mais em depressão sem associá-la a doença, transtorno, distúrbio, etc. Como se não fosse mais possível viver sem sofrer, ficar deprimido.

Especialmente após o DSM5, o manual dos distúrbios mentais (termo utilizado na língua inglesa) da associação estadunidense de psiquiatria, bíblia da colonização científica neste campo, tudo na vida virou doença. São 500 diagnósticos diferentes. Praticamente todas as formas de expressão da vida podem ser incorporadas como diagnósticos, em que pese a falta absoluta de fundamentação científica. Nenhuma comprovação genética, anatômica, nenhum marcador (como os marcadores tumorais), nenhuma alteração bioquímica (como a glicemia, provas de função hepática…). A hipótese largamente utilizada de uma alteração bioquímica nos mecanismos de recaptação da serotonina, a menina dos olhos dos defensores da medicalização, foi totalmente enterrada no final do ano passado a partir de uma robusta pesquisa de uma equipe coordenada pela professora inglesa Joanna Moncrieff.

Um dos mitos criados pela psiquiatria financiada pela indústria farmacêutica é o de que o aumento do rol de diagnósticos se deveria ao aperfeiçoamento científico do saber psiquiátrico, que passaria a poder identificar mais e mais doenças à psiquiatria. Ao contrário, e este é um dos mitos demolidos por Whitaker, é que é exatamente ao contrário: quanto menos saber científico, quanto menos objetividade, mais a possibilidade de ampliar e medicalizar, de absorver a diversidade humana em diagnósticos meramente subjetivos. Já o personagem de O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte, dirigindo-se ao Sr. Soares observava que “supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia!”

Foi a partir destas questões que, com Fernando Freitas, a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), pautou o tema como prioritário e incluiu-o em suas teses para as políticas públicas de saúde mental. Foi criada a condição de contar com a presença, pela primeira vez no Brasil, em 2014, do jornalista Robert Whitaker e, partir de então, Whitaker passaria a fazer parte, regularmente, dos eventos promovidos pela associação.

Em 2017 decidimos traduzir e publicar o “Anatomia de uma Epidemia”, do qual assinamos e coautoria e o prefácio. Mas, dado a um maior aprofundamento no trabalho de Whitaker, especialmente do site “Mad in America” por ele criado, Fernando decidiu, e nos convenceu, de que seria o caso de criarmos o “Mad in Brasil”, para participar da “comunidade Mad”, que dava seus primeiros passos. Passavam a surgir parceiros na França, Itália, Espanha, México, Canadá, Suécia, Finlândia, Holanda, Inglaterra e Ásia. No momento está se criando o “Mad in Portugal”, numa cooperação entre pesquisadores do LAPS (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, na qual Fernando consta como um dos fundadores. Nos honra informar que o “Mad in Brasil” é o segundo mais acessado de toda a comunidade, só estando atrás do norte-americano. E, certamente, isso se deve à dedicação permanente, quase obstinada, do Fernando em mantê-lo vivo e atualizado.

O título do livro de Whitaker serviria também de inspiração para a organização dos Seminários Internacionais “A Epidemia das Drogas Psiquiátricas” que, no ano passado, realizou sua sexta edição. Além do próprio Whitaker, este evento foi responsável pela divulgação, ao público brasileiro, de autores/atores como Jaakko Seikkula, da originalíssima e revolucionária experiência finlandesa do “Diálogo Aberto”, na qual se atende às crises ditas psicóticas sem o concurso (ou com muito tímida utilização) de medicamentos antipsicóticos; de Irving Kirsch, um dos maiores especialistas em pesquisas sobre depressão; de Daniel Puras, responsável na época pela área de direitos humanos e saúde da ONU, de Joanna Moncrieff, que fiz referência anteriormente, de Laura Delano e de Peter Lehmann, autodenominados de  “sobreviventes” da psiquiatria,  que deram  origem a trabalhos preciosos para auxiliar usuários de drogas a suspenderem as substâncias; e, inclusive,  de Allen Frances, líder do grupo-tarefa que elaborou o DSM IV, e que se tornou um dos mais eloquentes críticos do próprio sistema DSM! Enfim, os seminários trouxeram alguns dos mais importantes nomes da pesquisa crítica sobre a psiquiatria e suas estratégias de patologização da vida.

Por fim, por uma dedicação muito especial de Fernando Freitas, passamos a compor, junto com alguns dos mais importantes pesquisadores e pesquisadoras de todo o mundo, o Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas (International Institute For Psychiatric Drugs Withdrawal), a partir da constatação, existente em pesquisas em vários centros acadêmicos, da grave dependência química produzida pelas drogas psiquiátricas, assim como da dificuldade que as pessoas têm para livrar-se delas. Até então, a psiquiatria oficial não admitia que as drogas psiquiátricas causassem dependências e muito menos síndromes de abstinência.

Fernando partiu! Mas nos deixou algumas tarefas: a de não abandonar a luta contra a patologização e a medicalização da vida, a de continuar realizando os seminários internacionais e mantendo vivo e influente o “Mad in Brasil”! Em um belíssimo e tocante texto sobre Fernando, Robert Whitaker destacou uma quantidade enorme de manifestações de pesar recebidas da comunidade internacional da psiquiatria crítica, e o denomina de “guerreiro da mudança radical”.

E a luta aponta, por um lado, para a denúncia e a resistência necessária contra o aumento abusivo de diagnósticos psiquiátricos: é importante ressaltar que o que aumentam são os diagnósticos. A patologização. Isso não significa que aumentem as doenças ou transtornos, já que não há nenhum critério objetivo que fundamente cientificamente este fenômeno. Por outro lado, a luta para barrar este processo absurdo de prescrição de medicamentos psiquiátricos, grande objetivo da indústria farmacêutica, que financia este processo mercadológico da patologização!

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