Covid: e aqueles a quem não dissemos adeus?

Estudos em 12 países jogam luz sobre tema sensível mas pouco debatido: o “luto suspenso” de quem perdeu entes queridos na pandemia; e a dor dos que pereceram em solidão. Observações são tocantes e trauma continua a afetar Saúde pública

Memorial criado pela artista Suzanne Brennan Firstenberg, em Washington (EUA), na ocasião em que o mundo atingiu a marca de 5 milhões de mortos por covid. Foto: AP News
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A matéria abaixo trata sobre artigo publicado na edição de janeiro da revista Cadernos de Saúde Pública, parceira editorial do Outra Saúde
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Ruas vazias, hospitais lotados e a solidão dos pacientes deitados nas macas, com covid grave, longe de suas pessoas queridas. O pesadelo do ano de 2020 já ficou distante para alguns, mas seu efeito na vida de milhões que perderam familiares e amigos parece perdurar. E há algo em comum no luto em países muito diferentes como o Brasil, Índia, Irã ou Canadá. É o que mostra um artigo publicado este mês nos Cadernos de Saúde Pública, que fez uma revisão sistemática de estudos qualitativos sobre o luto na pandemia em 12 países. Uma das conclusões principais foi de que “as experiências de perda, intensamente afetadas no contexto da pandemia, afetam a saúde mental da população e levam a mudanças emocionais, cognitivas e comportamentais, que podem culminar em vivências do luto mais intensas e duradouras”.

Há nuances nesse luto, que de forma geral parece ter sido vivido de forma semelhante pelos parentes e pessoas próximas de vítimas de covid. Os autores do artigo, todos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto, analisaram 14 pesquisas. Eles observaram duas fases distintas nesse processo: o período antes da morte, quando o ente querido ficou no hospital sem receber visitas; e aquele depois que ele se foi, o velório restrito, a impossibilidade de rituais religiosos, a falta de cuidado com o corpo. 

O artigo destaca trechos das entrevistas com os enlutados que, além de tocantes, ajudam a compreender as particularidades dessa situação pandêmica. Alguns deles ressoam sensações mesmo de quem não perdeu pessoas queridas durante a pandemia: “Eu tive um mau pressentimento quando ele recebeu o resultado positivo do teste. Sua respiração não estava boa. Comecei a me perguntar se aquele era o começo do fim”. Em outros, há culpa: “Não paro de pensar, de recapitular os acontecimentos, de remoer a morte do meu pai, e algo me diz que eu posso ter passado o vírus a ele”. 

A relação com os profissionais de saúde, o elo de ligação com os pacientes internados, parece ter sido fundamental para a experiência de cada um dos enlutados. Por causa do perigo de novas infecções, os internados não podiam ter contato físico com ninguém e viveram os últimos momentos de sua vida em solidão. Médicos e enfermeiros tinham pouco tempo para cuidados individuais, mas alguns gestos de atenção parecem ter sido de grande importância. Videochamadas, fotos e notícias eram momentos de alívio para os familiares: “Os enfermeiros nos enviaram uma foto. O fato de que eles fizeram esse esforço apesar de todo ambiente frenético e sobrecarregado é muito especial”. O contrário, quando os relatos sobre o paciente eram escassos, também foi muito marcante: “Eles não ligaram de volta (…) Você não pode deixar as pessoas assim no escuro, esperando um telefonema (…) É desumano”.

De qualquer forma, ter mais ou menos contato virtual não retirou o peso da distância nas horas finais da vida da pessoa querida. Diz o artigo: “Foi relatado intenso sofrimento decorrente da impossibilidade de compartilhar os últimos momentos com o familiar falecido; não poder oferecer conforto, dizer e ouvir últimas palavras, realizar últimos desejos, oferecer dignidade ou mesmo realizar práticas religiosas como orações, vigílias ou preparação do corpo”. 

Após a morte, vinha o luto propriamente dito – e esse momento teve de ser vivido por muitos na solidão de suas casas, sem possibilidade de contato com outras pessoas queridas. Outro relato: “Perder alguém é muito complicado, mas velar um morto sozinho foi a coisa mais infeliz e assustadora que já vivi em minha vida”. A impossibilidade de fazer velórios e enterros também foi fonte de sofrimento. Houve quem organizasse cerimônias virtuais, mas de modo geral a sensação dos enlutados é de terem um “momento roubado”. E o que isso causou é grave: muitas pessoas relataram a sensação de que a pessoa querida não morreu, por causa da impossibilidade da despedida.

O artigo conclui que a pandemia e o isolamento social causaram mudanças drásticas no luto. “Neste contexto, a distância física entre o indivíduo e o falecido, antes e depois da morte, tornou muito difícil para o enlutado assimilar o progresso da doença, a morte e o processo de luto.” Os autores continuam: “O ‘luto suspenso’ durante a pandemia pode se tornar um processo prolongado, carente de fechamento e de tristeza insolúvel, difícil de vivenciar em si e marcado pela percepção de solidão e dificuldades em compreender e aceitar a perda”. 

Para os autores, é preciso que os serviços de saúde atentem para esse fenômeno, que afeta milhões de pessoas mundo afora. Os estudos analisados mostram que, de maneira geral, não há essa assistência aos familiares das vítimas pelo Estado. O artigo comenta que os sistemas de saúde “podem contribuir tanto com o cuidado do luto individual quanto do desenvolvimento de novas maneiras de lidar com perdas em massa. Nesse sentido, não só são necessários acompanhamentos durante momentos de maior sofrimento, mas também estratégias pós-crise focadas no processo de luto que se inicia durante a crise, que ainda pode apresentar repercussões de longo prazo. Dessa forma, danos à saúde mental da população podem ser evitados”.

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