A árdua tarefa de resgatar a Saúde Mental no Brasil

Sônia Barros apresenta os planos do ministério da Saúde para retomar Reforma Psiquiátrica, após anos de retrocesso. Paulo Amarante vai além: é preciso frear tendência à medicalização, que está ajudando a produzir uma sociedade doente

Sônia Barros, diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde
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Quais serão os rumos dos cuidados com saúde mental no Brasil, a partir da nova fase de governo progressista? O Cebes Debate, programa do Centro de Estudos Brasileiros de Saúde, deu voz a uma pessoa importante para as políticas voltadas a essa área no governo Lula: Sônia Barros, diretora do recém-criado departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do ministério da Saúde. Entraram em pauta temas importantes como a ascensão das comunidades terapêuticas, os retrocessos no financiamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e a ultramedicalização. Na conversa, ela foi acompanhada por Paulo Amarante, psiquiatra pioneiro do movimento antimanicomial no Brasil.

Sônia, que também é professora titular aposentada da Escola de Enfermagem da USP e professora sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, começou dando as bases para a discussão: “A denominada desinstitucionalização em saúde mental é uma ideia-força que há várias décadas vem alinhando a construção de políticas públicas nos países desenvolvidos e também no Brasil”. Ela se refere à tendência, embasada cientificamente, de acabar com o modelo de manicômio, em que o paciente é tratado em isolamento e muitas vezes sujeito a maus tratos. Os hospitais psiquiátricos foram dando lugar ao “cuidado em comunidade, de forma intersetorial e integral”.

Mas, a partir de 2016, o cenário começa a mudar para pior, com a valorização, segundo Sônia, “de dispositivos assistenciais que nós consideramos obsoletos, incompatíveis com os valores fundantes do Sistema Único de Saúde”. Paulo Amarante também enxerga essa mudança drástica: “Da solidariedade, da reciprocidade, da ideia de inclusão, de participação, o que nós vemos agora é a volta de palavras como internação compulsória, rejeição, extermínio”, lamentou. E há também forte segregação social nesse velho paradigma, denuncia o psiquiatra: “As práticas de guerra às drogas, a política de internação compulsória e de repressão são voltadas contra a população negra, pobre, as classes sociais baixas”.

Ao ocupar o cargo de diretora do departamento de Saúde Mental, Sônia se deparou com a triste realidade. “Serviços estratégicos da Rede de Saúde Mental, especialmente os Caps [Centros de Atenção Psicossocial] passaram a ter um crescimento abaixo das médias anteriores. Em paralelo a isso, ocorreu o reajuste na tabela de custeio de hospitais psiquiátricos”, conta ela, já enxergando os enormes desafios que enfrentará nos próximos anos. Como fará?

Sônia aponta para os caminhos que já começaram a ser traçados. “A Rede de Atenção Psicossocial será reestruturada, com foco nos serviços comunitários de saúde mental, tendo como compromisso a integralidade da saúde. Essa rede assistente deve ser fortalecida, pensando em composição orçamentária, investimento em formação, educação permanente para os trabalhadores, com vista ao melhoramento das práticas de cuidado. Além disso, a rede deve ser expandida com especial atenção para os serviços destinados a cuidar das pessoas com problemas com substâncias psicoativas, bem como o serviço de atenção a crianças e adolescentes.”

A diretora reflete, também, sobre o papel humanizador desse campo da saúde: “Cremos que o cuidado da saúde mental, com base em ações e serviços comunitários, preserva as condições essenciais para o exercício da cidadania, tais como autonomia, liberdade de circulação, liberdade de escolhas e protagonismo. E para tanto se deve fortalecer a interlocução e ações conjuntas com o setor da Cultura, os Centros de Convivência, projetos de geração de renda e outros”.

Amarante compartilha da ideia de que a saúde mental não deve ser vista como sinônimo de transtorno psíquico. Por isso, ele abordou, em sua fala, outra questão importante: a dos medicamentos psiquiátricos. “Medicalização não é só restrita à ideia de medicamento, mas de patologização. Tudo está virando doença, tudo está virando transtorno e acaba que não há rede que dê conta”, aponta, defendendo que a medicalização seja combatida. “Nós estamos vendo populações inteiras dopadas, sedadas, dependente de medicamentos, sem perspectiva de tratamento.”

A chave para mudanças importantes também aparece na fala de Amarante. Ele acredita que é necessário recuperar a ideia de participação social de fato: “Não se trata de apenas ouvir a sociedade, mas de fazer com a sociedade. Ter a sociedade como protagonista dos processos de transformação, de construção do novo cenário”. Ele finaliza, destacando o papel de Sônia Barros num futuro próximo: “Eu acho que o departamento de Saúde Mental, a política de saúde mental, têm um papel importantíssimo para construir uma outra visão, outras perspectivas, outras formas de pensar essas experiências humanas – não como doença, não como transtorno”.

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