Covid: O novo apagão de dados no ministério da Saúde

Estão totalmente desatualizadas informações sobre resultados de testes PCR, etnia e CEP dos infectados, leitos disponíveis e uso de fármacos. E mais: Butantan fura sabotagem do governo e começa a vender vacinas para Estados e Argentina

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BAGUNÇA E OPACIDADE

O Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas editou uma nota técnica apontando uma série de problemas de transparência na divulgação de informações sobre a pandemia de covid-19 no Brasil. Atrasos ou instabilidades foram identificados em várias fontes de informações oficiais. 

Uma questão bastante grave é que o Ministério da Saúde não atualiza o Painel de Vírus Respiratórios, que exibe o total de testes PCR realizados. A bagunça é tamanha que, segundo o documento, a plataforma não diz nem qual foi a data da última atualização.

Isso prejudica inclusive a análise da evolução dos casos no país. Aqui, o número oficial de casos inclui infecções confirmadas por testes PCR, testes de anticorpos e até por diagnóstico clínico, sem exame. Não dá para medir nada direito a partir disso. Quando há a informação sobre quantos exames PCR foram feitos a cada momento, a situação fica menos opaca, porque dá para analisar a evolução da taxa de positividade (o número de resultados positivos que voltam a cada 100 testes realizados). A desculpa do governo para não abrir os dados  é que isso prejudicaria a privacidade dos pacientes da rede particular, o que não se sustenta: a nota ressalta que é perfeitamente possível publicá-los sem identificar as pessoas, como, aliás, faz o openDataSUS.

Há outras coisas que o Ministério deixa de mostrar usando a justificativa da proteção à privacidade: o de etnia e CEP de residência dos infectados. Chega a ser engraçado, considerando que o mesmo ministério está envolvido em escândalos de vazamentos de dados de pacientes…

Tem mais. As informações sobre a distribuição de testes pela pasta ficou sem atualização durante 13 semanas (de agosto a novembro). As plataformas que informam sobre medicamentos hospitalares e equipamentos de proteção individual estavam sem atualização desde outubro. Os boletins epidemiológicos, que deveriam ser divulgados toda semana, não o são: no momento, o último disponível é sobre a semana que vai de 22 a 28 de novembro. E o anterior cobria o período entre 25 e 31 de outubro, o que significa que o Ministério ficou quase um mês sem produzir o boletim. A publicação do número de leitos disponíveis e ocupados, oriundos do Censo Hospitalar, é uma piada: só foi feita uma única vez, em outubro. Outro nó que o documento aponta é no Painel Coronavírus Brasil, que divulga o número de casos e óbitos no país e nos estados, e chegou a ficar fora do ar no meio do ano. 

Por fim, há grande falha na comunicação com a sociedade, materializada na escassez de coletivas de imprensa. De 23 de janeiro a 23 de maio (nas gestões de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich) o intervalo médio entre duas coletivas era de 1,6 dia. Com Pazuello, passou a 4,3 – sendo que chegou a haver um período de 13 dias sem nenhuma. Mesmo quando acontecem, essas entrevistas são fracas. O ministro em pessoa é uma figura pouco presente nelas, e sempre sai sem responder a perguntas. 

O documento vai ser encaminhado para órgãos de controle do governo federal e para a Comissão Mista do Congresso Nacional Covid-19. Onze organizações o assinam: Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Transparência Brasil, Fiquem Sabendo, Instituto de Governo Aberto, Open Knowledge Brasil, ANDI – Comunicação e Direitos, Associação Contas Abertas, Inesc, ObjEthos – Observatório da Ética Jornalística (UFSC), RENOI – Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (UnB), e Instituto Ethos.

O FINALZINHO

Mesmo os dados mais precários dão conta de mostrar que neste momento o Brasil vai mal, muito mal, em relação ao novo coronavírus. Foram mais 769 mortes registradas ontem, levando a média dos últimos sete dias para 642. Isso representa um aumento de 34% em relação à média de 14 dias atrás e, segundo a Folha, todas as regiões exceto o Norte tiveram saltos maiores que 20% nas mortes nesse período. 

Nada que preocupe o presidente Jair Bolsonaro, segundo o qual “estamos vivendo um finalzinho de pandemia“. 

DO LADO ERRADO

A Organização Mundial do Comércio retomou ontem a proposta da Índia e da África do Sul – defendida por cerca de 100 países e pela OMS – para a suspensão de patentes e outros direitos de propriedade intelectual de todas tecnologias relacionadas ao combate à pandemia, como vacinas e medicamentos. Com a quebra do monopólio das farmacêuticas, versões genéricas poderiam ser produzidas, aumentando a disponibilidade e reduzindo os custos. 

Mas a discussão não foi adiante, porque a Big Pharma e os países ricos – como Grã-Bretanha, Suíça e Estados Unidos, que têm fortes indústrias farmacêuticas nacionais – não concordam com a ideia. Eles dizem que os países emergentes não têm capacidade de fabricação e know-how de tecnologia que possibilite a produção. “Mesmo se as patentes fossem canceladas, nenhuma vacina a mais alcançaria as pessoas durante a pandemia. Isso enviaria um sinal muito ruim para o futuro ”, afirmou Thomas Cueni, diretor-geral da Federação Internacional de Associações e Fabricantes Farmacêuticos, ainda na terça-feira.

Já argumento dos países emergentes é de uma obviedade gritante: salvar milhares de vidas por dia deveria importar mais do que lucros. Eles apontam ainda que várias farmacêuticas receberam verba oriunda de governos para suas pesquisas. Só a Pfizer obteve mais de meio bilhão de dólares. 

Noutros tempos, o Brasil costumava se posicionar em defesa da garantia ao acesso. Dessa vez, depois de um período meio em cima do muro, parece ter decidido definitivamente ficar ao lado dos ricos, como descreve o colunista do UOL Jamil Chade: “Nas últimas semanas, o governo deixou claro que era contra a quebra de patentes e, segundo ONGs, usou encontros na OMC para fazer perguntas aos autores da proposta e, assim, tentar arrastar a negociação. Na reunião desta quinta-feira, a delegação brasileira sequer pediu a palavra“.

Segundo Chade, a OMS vai manter o tema na agenda, mas uma nova reunião só vai acontecer entre janeiro e fevereiro. 

PELO PRAZER DE INTIMIDAR

Tudo começou com o ótimo documento publicado na quarta-feira pela Sociedade Brasileira de Infectologia, com recomendações sobre a covid-19.  Explicitando os estudos em que se baseia, a SBI trata de pontos como diagnóstico e evolução dos pacientes, tratamento precoce e medidas de prevenção. Como não poderia deixar de ser, a entidade diz que não recomenda o tratamento precoce com medicamentos (apenas o uso de analgésicos e antitérmicos), já que não há nenhum com eficácia comprovada para administrar drogas como cloroquina, ivermectina e nitazoxanida.

Isso despertou a atenção do procurador-chefe da República em Goiás, Ailton Benedito de Souza – um bolsonarista explícito que, como lembra o G1já foi indicado pelo presidente para compor a Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ele assina um ofício em que o MFP de Goiás dá cinco dias para a SBI apresentar “cópias” dos documentos que embasem suas recomendações. E pede ainda que a entidade informe se tem conhecimento da infeliz orientação do Ministério da Saúde sobre o tratamento precoce da covid-19; “em caso positivo, que esclareça se os estudos científicos que a embasam não têm valor científico para a SBI”… A íntegra do ofício foi disponibilizada pela jornalista Luiza Caires, do Jornal da USP. 

NEM TÃO AMPLA

A Anvisa aprovou ontem uma resolução com regras para conceder autorização emergencial de vacinas contra a covid-19. O conteúdo é o mesmo do Guia apresentado na semana passada, que já previa esse tipo de aprovação. A diferença, segundo relatora e diretora Alessandra Bastos Soares, é que agora há maior segurança jurídica. Os critérios continuam os mesmos. Entre eles: a vacina precisa estar  na fase 3 dos ensaios clínicos, com voluntários testados no Brasil; e são necessários resultados de análise interina de desfecho primário da fase 3 demonstrando no mínimo 50% de eficácia. As vacinas irão apenas para públicos-alvo específico e não poderão ser comercializadas.

O movimento acalmou – por ora – os ânimos do presidente da Câmara Rodrigo Maia. “A Anvisa felizmente toma uma decisão que nos dá mais tranquilidade, porque estávamos caminhando para propor uma CPI de  investigação dentro da Anvisa para que os responsáveis sobre esse atraso de uma decisão de uma agência que é de Estado, e não é de governo”, disse ele. 

Mas a sinalização da agência pode não ser tão abrangente quanto parece. Antes dela, já pairava no ar uma dúvida sobre a interpretação da lei 13.979/20, que há tempos previa a possibilidade de autorização emergencial. É que, de acordo com essa lei, produtos com registro em outros países poderiam ser autorizados no Brasil sem o aval da Anvisa, caso a agência não se manifestasse 72 horas após o pedido aqui. Mas ontem o diretor da agência, o contra-almirante Antônio Barra Torres, deixou claro que, em sua opinião, isso só vai valer quando o produto tiver o registro oficial, e não apenas a autorização emergencial, no exterior. A questão é que, por ora, todas as vacinas já em uso foram aprovadas apenas para uso emergencial.

Para o advogado Daniel Dourado, isso indica que a agência poderia vir a negar, talvez seletivamente, alguns pedidos. “A diretoria da Anvisa dá a entender que aquele prazo de 72 horas previsto na lei da covid para manifestação só vai ser considerado quando houver registro definitivo em alguma das agências estrangeiras previstas na lei. (…) A agência indicou que está aberta a conceder as autorizações. Mas talvez não todas“, escreveu ele, completando: “meu palpite é que há grande chance de que esse problema da liberação das vacinas pela Anvisa seja mais um a ser resolvido pelo STF“. 

Em tempo: uma carta aberta assinada por funcionários da agência vai ser publicada hoje. No texto, obtido pel’O Globo, eles dizem que agem com base em critérios científicos, e não servem “aos interesses de governos, de pessoas, de organizações ou de partidos políticos”.

CADA UM POR SI

O Ministério da Saúde afirmou que o acordo para as 70 milhões de doses da Pfizer foi assinado ontem, de modo que precisa da autorização emergencial da Anvisa para colocá-las na rua. Quanto à CoronaVac (cujos resultados de fase 3 estão prometidos para a próxima semana), nada feito.

O Instituto Butantan começou a produzir a vacina na quarta-feira. Seu diretor afirmou ontem que há a possibilidade de exportar o imunizante para outros países, como a Argentina. “Não apenas planos, mas inclusive negociações em curso. O Butantan, junto com a Sinovac, ofereceu ao Ministério da Saúde 100 milhões de doses até maio. Ao mesmo tempo foram anunciados 40 milhões adicionais para toda a América Latina”, disse Dimas Covas, em coletiva de imprensa. No Brasil, ao todo 12 estados e quase mil municípios estão negociando doses por conta própria, segundo o governador de SP João Doria (PSDB).

Não são apenas as vacinas que os governadores querem garantir. Pelo menos nove já abriram editais para a compra de seringas (ao todo, são 210 milhões de unidades), para não depender do Ministério da Saúde. É que, embora o governo federal tenha anunciado que pretende comprar 370 milhões, até agora não saiu nenhum edital para licitação. 

AGORA SIM

Os resultados dos testes com a vacina da Pfizer foram finalmente  publicados  em um periódico científico: o New England Journal of Medicine. O editorial da publicação classifica o imunizante como “trunfo“, mas destaca o problema de não se conhecer a eficácia da vacina em prevenir infecções assintomáticas (no que concordamos). 

E o comitê consultivo da FDA teve uma reunião de mais de oito horas ontem sobre esse imunizante; ao fim, recomendou que a agência autorize o uso emergencial nos Estados Unidos, o que pode acontecer ainda hoje.

PRIMEIRA NO BRASIL

O Ministério da Saúde confirmou a primeira reinfecção pelo SARS-CoV-2 no Brasil. A paciente é uma médica do Rio Grande do Norte que testou positivo em junho e em outubro, com as coletas identificando linhagens diferentes do vírus. Segundo O Globo, a pasta analisa outros 58 outros casos suspeitos

A notícia reacende o alerta para que pessoas já infectadas anteriormente continuarem com as medidas de prevenção. Contaminar-se mais de uma vez é considerado um evento raro, mas, como já alertamos por aqui, é bem possível que haja muitos casos não identificados, porque não é fácil confirmar uma reinfecção. O UOL explica: além de ter pelo menos 90 dias entre as duas coletas, é preciso que o caso suspeito tenha sido testado com exame PCR duas vezes (na primeira infecção e na suspeita de reinfecção) e que seja feito o sequenciamento genético do coronavírus em cada amostra.

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