Enfermagem: a luta por trabalho digno continua

Solange Caetano analisa a que ponto está a questão do piso salarial, um ano após sua implementação. Próxima batalha é pela jornada de 30 horas, para evitar sobrecarga física e emocional de categoria essencial para o cuidado

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É preciso cuidar de quem cuida. Esse é o alerta trazido por Solange Caetano, presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros, em entrevista ao Outras Palavras TV. Representante da maior força de trabalho do SUS, Solange fez um panorama atualizado da luta pelo piso salarial da categoria, que avança aos trancos e barrancos em meio à judicialização imposta por empresas privadas e um STF refratário aos interesses trabalhistas.

“Com as discussões no STF, o piso virou teto, juntou as gratificações, vinculou a uma jornada de 44 horas, que não é praxe no Brasil todo. Em determinados estados, a situação piorou. Isso desvalorizou a proposta inicial e criou certo desânimo, mas continuamos na luta, fazendo visitas ao Congresso, gabinetes, para angariar apoio nesta e outras pautas da enfermagem, como reposição do piso, jornada de 30 horas, lutas pela nossa valorização”, explicou.

Ainda assim, é importante frisar: o piso pouco a pouco passa a se tornar realidade. Já completa um ano desde que a sua implementação foi iniciada, e hoje mais de 50% da categoria já recebe salários mais dignos. Para os técnicos de enfermagem, as vantagens foram relativamente maiores, dado que a defasagem nesta faixa da categoria era maior.

Depois da pandemia, o reconhecimento à importância da enfermagem parece ter se ampliado, mas ainda é muito pouco. “Seguimos sob pressão, os empregadores não contratam o número adequado de profissionais e em diversos serviços, públicos e privados, não estamos em quantidade suficiente. O descumprimento do dimensionamento do pessoal de enfermagem tem trazido uma sobrecarga física e emocional sobre os trabalhadores – o que inclusive tem levado a aumento de suicídios. E assim as pessoas abandonam a profissão”, contextualizou.

Na entrevista, Solange coloca luz sobre o cotidiano de um trabalho árduo para o corpo e para a mente, que precisa urgentemente ser observado com mais atenção pelos gestores de saúde. Trata-se de um setor no qual a sobrecarga e a precarização afetam diretamente as vidas, tanto de quem cuida como de quem é cuidado.

“Não temos jornada regulamentada e sempre lutamos por 30 horas semanais. Há mais de 60 anos queremos uma regulamentação. As 30 horas são uma jornada defendida pela Organização Mundial da Saúde, que afirma a necessidade de cuidar dos trabalhadores de enfermagem, pois se não os perderemos em breve e não atingiremos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável em Saúde, traçados pela ONU, até 2030.”

Recentemente, a OMS publicou relatório a respeito do perigo da perda de força de trabalho de enfermagem nos próximos anos, por conta da frustração com a carreira. EUA e Europa já enfrentam deserções neste ramo e crescentes dificuldades em contratar esses trabalhadores absolutamente fundamentais ao funcionamento de qualquer serviço de saúde.

Dessa forma, Solange evidencia que o reconhecimento salarial é importante, mas boas condições de trabalho vão além disso. Deve-se investir na ampliação desta mão de obra, majoritariamente feminina, massiva, o que paralelamente promove distribuição de renda e leva bem estar a todo o tecido social.

“A categoria é majoritariamente feminina, mais de 84% desta força de trabalho. Temos duplo vínculo, dupla jornada… A maioria é arrimo de família, muitas mães solo. Seu reconhecimento é importante para a economia do Brasil. E tem a questão do trabalho doméstico, que não entra na conta do PIB do país. Queremos debater com o governo nossa contribuição total para o crescimento do país”, pontuou Solange Caetano.

Mapear a enfermagem

São mais de 3 milhões de trabalhadores da enfermagem no Brasil, quase metade técnicos. No entanto, como explica a entrevistada, o Brasil precisa mapear com mais exatidão esta força de trabalho, inclusive para compreender a necessidade de ampliá-la e estabelecer uma relação saudável entre enfermeiras e pacientes.

“Debatemos com o Ministério da Saúde que devemos mapear os profissionais de enfermagem, na saúde pública, privada, capitais, interiores.. Se falta mão de obra, se a migração para outros países tem afetado a oferta de trabalho. Nossa percepção é de que o número de enfermeiros é insuficiente no Brasil”.

Cuidado domiciliar de idosos

E há outro ponto cego. Nem todo profissional trabalha diretamente no sistema de saúde. Muitos estão invisibilizados nas casas de famílias, cuidando diretamente de idosos ou crianças. Além de serem juridicamente considerados trabalhadores domésticos, à margem, portanto, de certas normas trabalhistas da enfermagem, são pouco conhecidos pelo próprio Estado.

“É um universo que tem crescido. O número de idosos tem aumentado e seu cuidado residencial é feito em boa parte por enfermeiros ou técnicos de enfermagem. Muitas vezes são contratos irregulares, salvo algumas clínicas de home care mais estruturadas. Mas muitos têm contrato direto com as famílias. Este é outro debate que está pendente na sociedade, dada a responsabilidade deste cuidado. É diferente do estabelecimento de saúde, onde há toda uma aparelhagem, equipe… Nas residências, a sobrecarga é muito maior. Este trabalhador está completamente desprotegido e, teoricamente, não está representado por sindicatos e entidades da categoria”, expôs.

Como demonstrou Solange Caetano em sua coluna de estreia no Outra Saúde, há uma urgência em ampliar a proteção desta categoria essencial ao cuidado. “Está todo mundo cansado, sobrecarregado, adoecido, muitos no limite emocional. Isso traz insegurança, tanto para quem cuida como para a população cuidada”.

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