Como enfrentar a epidemia das hepatites

No mundo, a doença avança. No Brasil, óbitos baixam no geral, mas crescem nas regiões mais pobres. Preço alto dos remédios – mesmo os genéricos – e expansão do acesso a vacinas e testes são desafios que podem ser superados

Foto: Prfeitura de Porto Alegre
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O mais recente Relatório Global de Hepatites, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) neste mês de abril, trouxe uma funesta atualização: cresceu no mundo o número de óbitos anuais causados por esse conjunto de doenças do fígado. Somados os 187 países sondados, as mortes passaram de 1,1 milhões a 1,3 milhões ao ano – 83% por hepatite B e 17% por hepatite C –, tornando as hepatites virais a segunda doença infecciosa que mais mata, atrás apenas da tuberculose. 

Uma das tarefas centrais para enfrentar a epidemia de hepatites, como destaca a agência de saúde das Nações Unidas no próprio título do seu relatório, é a “ação em defesa do acesso [a medicamentos] em países de renda baixa e média”, como o nosso. Contudo, o cenário não é dos mais animadores nessa frente. De acordo com um trecho do documento, o Brasil é um dos países onde até os “remédios genéricos produzidos localmente e os produtos genéricos equivalentes que são importados seguem mais caros que os preços de referência globais”. 

Em outras palavras, apesar de já não serem medicamentos acorrentados pelas leis patentárias, ainda não conseguimos garantir sua distribuição pelo Sistema Único de Saúde (SUS) por custos tão baixos quanto em outras partes do globo. O documento revela que, durante o período coberto pelo acompanhamento da OMS, os preços que pagamos pelo sofosbuvir e o daclatasvir – ambos fármacos utilizados para tratar a hepatite C – foram, respectivamente, 9 e 11 vezes maior que o cobrado pelo Fundo Estratégico da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Pior: em uma comparação direta, pagamos 72 vezes mais que a China pelo entecavir, que combate a hepatite B. 

De acordo com Francisco Viegas, consultor da Médicos Sem Fronteiras (MSF), “questões de economia de escala, dependência de matéria-prima importada e falta de concorrência” são fatores que contribuem para que, mesmo quando os medicamentos já estão livres de patentes, sigam mais caros para o país. Contudo, ainda há o que fazer para melhorar o enfrentamento às hepatites. Fabio Ghilardi, da Unidade Médica Brasileira da MSF, relatou a Outra Saúde algumas das medidas que podem ser aplicadas.

O cenário brasileiro

O Brasil, como mostra um estudo recente, reduziu os óbitos por hepatite no período de 2001 a 2020. De acordo com Ghilardi, são vários os motivos desse avanço. “Desde 2002, com o Programa Nacional de Hepatites Virais, o Brasil passou a ter um programa de rastreio das hepatites B e C no pré-natal. Temos agora também campanhas de vacinação para as hepatites A e B que buscam imunizar logo na infância”, ele explica. 

Para a hepatite C, “não há vacina, mas houve uma melhora colossal dos medicamentos, com a mudança do interferon para antivirais como sofosbuvir e daclatasvir, com grande chance de cura em 12 semanas de tratamento”, continua o médico.

Por outro lado, os óbitos por hepatite que ainda ocorrem têm ficado mais concentrados nas regiões Norte e Nordeste do país, indica a pesquisa. O padrão é típico das chamadas doenças negligenciadas – restringir-se a locais mais pobres, onde há menos condições para enfrentá-las e vontade política para mudar esse quadro. No mundo, a mesma dinâmica é identificada pela OMS, que aponta que dois terços das mortes por hepatite B e C são notificadas por apenas 10 países (Bangladesh, China, Etiópia, Filipinas, Índia, Indonésia, Nigéria, Paquistão, Rússia e Vietnã), todos no Sul Global.

Além disso, apesar da redução de sua mortalidade em geral, não se pode dizer que somos pouco afetados pela questão: hoje, o Brasil é o 14º país do mundo com maior incidência anual da hepatite C, indicam os dados compilados da OMS. A hepatite A, apesar de bem menos disseminada que as hepatites B e C, muito mais letais, teve um aumento de 56% de casos em 2023. Em julho do ano passado, o Ministério da Saúde lançou um detalhado boletim epidemiológico sobre a situação.

Genéricos disponíveis…

Já no âmbito da distribuição dos medicamentos, o país vive hoje um quadro mais favorável do que o de cinco anos atrás. Isso porque as principais drogas a enfrentar as hepatites de maior impacto para a Saúde Pública brasileira passaram a ser fabricadas no Brasil, como genéricos.

Desde 2023, o Ministério da Saúde (MS) conta com Farmanguinhos, unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) especializada na produção de medicamentos, como um de seus fornecedores do sofosbuvir. Contudo, o SUS poderia estar recebendo a versão genérica do fármaco há mais tempo, não fosse uma série de controversas idas e vindas na concessão de sua patente a um monopólio farmacêutico estrangeiro. Como cobriu Outra Saúde em reportagem detalhada, a empresa estadunidense Gilead travou uma longa batalha judicial para tentar impor sua patente sobre o sofosbuvir e monopolizar seu fornecimento no Brasil – chegando a pedir uma liminar para impedir a entrega ao SUS de um lote do produto que já estava no caminhão de uma concorrente.

No caso do daclatasvir, “a empresa Bristol abriu mão de suas patentes, e sua produção pública pela Fiocruz começou no ano passado”, explica Carolinne Scopel, farmacêutica e consultora do Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI). Essa fabricação ocorre por meio de uma cooperação com a Blanver, uma empresa brasileira que já possuía a tecnologia para produzi-lo.

Por sua vez, “o entecavir está em uma Parceria para Desenvolvimento Produtivo (PDP) entre a Fundação Ezequiel Dias (Funed), um laboratório público, e a Microbiológica, uma empresa privada que produz o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA). Ela está na fase 3, que é a do processo de transferência de tecnologia”, esclarece a consultora. Uma PDP é uma parceria entre instituições públicas e privadas para, entre outros objetivos, “promover o desenvolvimento e a fabricação em território nacional de produtos estratégicos para o SUS”, como medicamentos e vacinas, buscando a “sustentabilidade econômica e tecnológica do SUS”.

Em seu portal, a Funed – ligada ao governo estadual de Minas Gerais – lembra que “até [2018], o mercado era dominado por uma única multinacional”, a farmacêutica britânica BMS. Após o êxito da PDP, o laboratório mineiro pôde firmar um acordo com o MS para o fornecimento exclusivo de sua produção do fármaco para o SUS a partir de 2021.

… mas ainda não tão baratos

Com a produção de genéricos de todos esses medicamentos bastante encaminhada no país, pode parecer estranho que o relatório da OMS indique que ainda pagamos muito por todos os três – nove e onze vezes mais do que o Fundo Estratégico da Opas pede pelo sofosbuvir e o daclatasvir, respectivamente, e setenta e duas vezes mais do que a China paga pelo entecavir. 

Porém, o documento ressalta que esse não é o caso apenas do Brasil. “As disparidades de preços persistem entre as regiões [do mundo], com muitos países pagando valores acima do preço de referência global, mesmo quando as drogas estão livres de patentes ou foram incluídas em acordos de licenciamento voluntário”, diz o material.

Além disso, quebrar suas patentes é um passo importante, mas que precisa ser acompanhado de outras medidas. Como indicou Francisco Viegas, a questão da escala e a ausência de produção nacional dos IFAs e outras matérias-primas dos medicamentos (quando fabricados aqui, isso significa apenas que são “montados” com partes vindas de fora) são fatores que ainda os encarecem. São sinais de fragilidades da indústria farmacêutica nacional, que precisaria ser mais fortalecida em sua autonomia tecnológica e produtiva, como prevêem planos para o complexo econômico-industrial da saúde.

A falta de concorrência para o fornecimento do medicamento que acompanha o sofosbuvir é um dos entraves ao barateamento. “Hoje, a concorrência para as compras públicas é apenas entre três empresas: a Blanver, que fornece o daclatasvir, a Gilead, que oferece o velpatasvir a um preço mais elevado, e a Abbvie, que poderia concorrer com o glecaprevir/pibrentasvir, mas nunca se apresenta nas licitações. Então, é um mercado bastante concentrado, o que faz com que o preço seja mais alto”, ilustra o consultor.

Viegas lembra também que o Fundo Estratégico da Opas citado pelo relatório da OMS recebe de farmacêuticas indianas os lotes de sofosbuvir e daclatasvir que vende aos países das Américas a preços tão baixos. A Índia, como já relatou este boletim, é a maior fornecedora de genéricos do mundo, com o Estado dando prioridade máxima há décadas ao impulsionamento da indústria nacional de medicamentos e vacinas, por meio de financiamento, formação de mão-de-obra especializada e articulações internacionais. Assim, seus genéricos conseguem ser ainda mais baratos que os de outros países.

A possibilidade do Brasil comprar desse Fundo da Opas é limitada pelo fato de que muitas das versões dos medicamentos distribuídas por ele não estão registradas no país, e uma portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impõe prioridade aos fármacos com registro nacional, diz o consultor da MSF. “Nada na nossa legislação impede que essas empresas indianas que fornecem à Opas registrem seus medicamentos no Brasil”, mas esse passo ainda não foi dado por elas, ele aponta.

Uma opção seria que o país fizesse uma revisão ou flexibilização da recomendação da Anvisa de restrição à compra de medicamentos sem registro nacional. Mas, segundo Viegas, essa é uma discussão bastante delicada, e que exigiria estudos mais aprofundados até que uma decisão fosse tomada. 

Contudo, a necessidade de cautela não pode atrasar a tomada de decisões, dizem os entrevistados. Já existem formas de reduzir as milhares de perdas de vidas ocorridas todos os anos – que, a nível mundial, chegam a 3,5 mil óbitos por dia – que podem ser implementadas rapidamente. Do contrário, a avaliação da MSF de que, nos últimos anos, “o Brasil ficou mais distante da meta de erradicar a hepatite C até 2030” pode se concretizar.

Para enfrentar a situação

Nesse cenário, impulsionar o complexo econômico-industrial da saúde a um novo patamar parece ser o caminho para enfrentar a longo prazo os altos custos dos medicamentos para os males do fígado. Porém, estes são planos que levam alguns anos para sua concretização plena – e, como se vê pelos números do Relatório Global da OMS, essas doenças precisam ser enfrentadas com bastante urgência. 

Enquanto a indústria nacional vai sendo fortalecida, outras medidas já podem ser adotadas no combate às hepatites virais. A criação do Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças Determinadas Socialmente (Cieds) em 2023 foi uma delas. Com o lançamento do Programa Brasil Saudável concebido pelo Cieds para organizar a luta contra essas doenças, o Ministério da Saúde de Nísia Trindade deu passos nesse sentido e incluiu várias reivindicações históricas dos movimentos de pacientes.

Na conclusão de seu relatório, a OMS faz uma série de indicações para “fortalecer uma abordagem de saúde pública para as hepatites virais, que acelere o progresso rumo à erradicação da epidemia até 2030”, principal meta global relativa a esse conjunto de doenças. “Expansão de acesso a testes e diagnósticos”, “fortalecimento da atenção primária e da prevenção” e maior financiamento de programas são algumas das ações sugeridas.

No caso do Brasil, Fabio Ghilardi faz coro à agência global sobre algumas das medidas mais importantes, como a expansão da atenção primária, mas adiciona outras orientações. “Primeiro, ampliar o acesso à vacinação” das hepatites A e B, opina o médico, que já é universal na letra da lei mas ainda precisa chegar a certos grupos demográficos com menor cobertura.

No âmbito da prevenção, “seria muito importante assumir no futuro aquele modelo de prevenção que a gente já usa com o HIV, que não bate só na tecla do preservativo e da abstinência. Não existe um ‘pré-hepatite’ ou um medicamento aprovado para a profilaxia pré-exposição, por exemplo, mas é preciso avançar nos estudos e pesquisas sobre isso. A maior disponibilização da testagem, por outro lado, já poderia ser feita”, ele adiciona.

Além disso, ele diz, “é preciso ter muito mais capilaridade para distribuir profissionais de saúde capazes de identificar uma infecção crônica por hepatite C. Por muito tempo, o diagnóstico das hepatites virais ficou a cargo do infectologista, mas isso tem que ser democratizado para as demais especialidades e, em locais de difícil acesso, também para os profissionais não-médicos”.

“O que a gente tem mesmo que fazer é conseguir acessar as populações que apresentam mais vulnerabilidade, como as pessoas em situação de prostituição e as que não tem acesso aos serviços de saúde. Você só reduz a mortalidade se você conseguir fazer o diagnóstico precoce. Identificando cedo a infecção nessas pessoas mais vulneráveis, o risco de complicações diminui muito”, ele conclui.

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