Indústria de venenos usa STF para crescer

Por meio de “litigância estratégica”, empresas tentam derrubar leis municipais e estaduais para ampliar uso de agrotóxicos. De 64 casos, ganharam 19. Leia também: uma impressionante investigação sobre violência obstétrica na América Latina

Foto: Plantas de soja. Ministério da Agricultura
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Por Maíra Mathias

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RUIM PARA A SAÚDE, BOM PARA AS EMPRESAS

Desde a década 90, empresas e entidades de classe recorrem ao Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar ou flexibilizar leis aprovadas em municípios e estados com o objetivo de proteger o meio ambiente e a saúde humana do uso dos agrotóxicos. O projeto Por trás do alimento, tocado pela Agência Pública e Repórter Brasil, foi atrás desses processos judiciais e descobriu 64 ações do gênero. E uma empresa multinacional, a Corteva Agriscience (por aqui ainda conhecida pelo nome antigo, Dow Agrosciences) foi responsável pela maioria delas: 34. Esse tipo de iniciativa é conhecido no meio jurídico como litigância estratégica – usada também por outros atores, como ONGs, para avançar em questões de direitos humanos, por exemplo. “Essas empresas atuam no sentido contrário, com o objetivo de provocar o judiciário para rever, deslegitimar e invalidar conquistas sociais, reduzindo assim o campo de debate, que deveria estar na sociedade, e passa para uma cúpula muito específica”, contextualizou Talita Furtado, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, à reportagem.

A Dow vem conseguindo a flexibilização de leis que proíbem ou restringem o uso da molécula 2,4-D, o segundo ingrediente ativo mais vendido em 2018, conforme dados do Ibama, muito utilizado na cultura da soja. A molécula também é relacionada a alterações no sistema hormonal, má formação fetal e toxicidade neurológica. Municípios no Paraná – Barbosa Ferraz, Itambé e Mamborê – e Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, foram alvo da empresa por terem aprovado leis que restringem sua utilização. Isso porque o produto se espalha e destrói culturas mais sensíveis, como uvas, azeitonas e maçãs. A empresa conseguiu reverter as legislações de Mamborê e Santa Rosa. 

A repórter Thays Lavor explica que a jurisprudência do Supremo diz que os municípios e estados têm competência para legislar sobre assuntos de interesse local. “Quando a pauta é direito ambiental, o entendimento continua o mesmo. No entanto, as decisões nem sempre são pautadas nessa jurisprudência. (…) Empresas e entidades de classe envolvidas com a comercialização ou manuseio de agrotóxicos sustentam que não cabe a essas esferas tal responsabilidade, argumentam que essa matéria estaria reservada exclusivamente à União”, escreveu.

Hoje, uma das maiores derrotas que pode ocorrer por conta da litigância estratégica é a validação da tese de inconstitucionalidade da lei estadual do Ceará (16.820/19) que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o estado. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) protocolou ação quatro meses depois da aprovação. Outra aposta que mereceu até a criação de uma “força-tarefa” por parte das empresas é a derrubada da proibição do Paraquate, anunciada há três anos pela Anvisa por causa dos riscos de intoxicação aguda do produto e sua relação com doenças como Parkinson, mutações genéticas e depressão. Do total de 64 casos, as empresas e associações saíram vitoriosas em 25 e perderam 37. Outros dois esperam conclusão. No caso da Dow, a empresa saiu vitoriosa em 19 processos (53%). A estratégia, pelo visto, compensa bastante para o agronegócio.

NASCIMENTO ROUBADO

O projeto Salud com Lupa reuniu jornalistas de Argentina, Equador, Chile, México, Peru e Venezuela para investigar, durante seis meses, histórias de violência obstétrica. O resultado é uma série de reportagens chamada “O nascimento roubado: o lado mais doloroso do parto na América Latina”, que ouviu 27 mulheres de diferentes idades que foram maltratadas e submetidas a práticas médicas de risco não consentidas em seus partos, além de pesquisadores, obstetras, parteiras, grupos feministas, advogados e funcionários dos vários governos envolvidos.

Uma das histórias mais impactantes é a da agricultora indígena Eulogia Guzmán. Em 2003, aos 26 anos, ela entrou em contato com o sistema de saúde peruano pela primeira vez para dar à luz. Antes, seus cinco primeiros filhos haviam nascido em casa, sem complicações. Ao dar entrada, com fortes contrações, no serviço de saúde localizado na região de Cusco, ficou meia hora sem auxílio. Desceu do leito colocado em um corredor para ficar na posição que já é reconhecida pela ciência como a mais vantajosa para a mulher, de cócoras, e com a qual estava acostumada nos partos anteriores – mas pouco tempo depois uma enfermeira chegou ao quarto e, seguindo os protocolos do centro de saúde, a fez voltar para a cama. Eulogia implorou à profissional em seu idioma natal, o quechua, que não a movesse, mas teve o protesto ignorado (detalhe: 24% da população peruana é indígena). Quando a enfermeira a puxou com força pelas mãos, o bebê caiu de forma brusca no chão, batendo com a cabeça no solo. A criança sofreu lesões cerebrais irreversíveis: nunca falou, nem andou. 

Depois do acidente, ela e o filho foram transferidos para o hospital regional de Cusco, onde os abusos se prolongaram: novamente, foi instalada em um corredor, não recebeu qualquer informação sobre o estado de saúde de seu filho por vários dias, não a deixaram vê-lo enquanto ele estava hospitalizado e não explicaram nenhum procedimento usado para mantê-lo vivo. Dezessete anos depois, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentará ao Estado peruano um relatório final sobre o caso – o primeiro a ser examinado pelo organismo como causa de violência obstétrica em todo o continente.

As repórteres destacam que, em todos os países, os hospitais e clínicas onde os eventos relatados pelos entrevistados ocorreram não reconheceram que suas práticas são violência obstétrica. Hoje, Argentina, México e Venezuela têm leis específicas para tratar a violência obstétrica como um crime sujeito a sanções administrativas e penais. O Brasil, sempre é bom lembrar, retrocedeu bastante nessa seara, depois que no ano passado o Ministério da Saúde publicou um despacho informando que não usaria mais o termo – reconhecido pelas Nações Unidas.

Na apresentação da série, há uma reflexão importante: “Apesar do conhecimento atualmente disponível e da luta crucial do movimento feminista para a comunidade médica internacional reformar suas práticas, há uma enorme resistência a fazê-lo, porque muitas não quiseram ver um tipo de violência à qual se acostumaram. Assim como nos crimes de feminicídio e ódio, esse tipo de agressão a mulheres tinha que ser nomeado com termos específicos para começarmos a reconhecê-lo: violência obstétrica. Agora, as mulheres podem definir o que viviam em consultórios ginecológicos, salas de cirurgia e salas de parto. Levou vários anos para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e os Estados começarem a entender a violência obstétrica como o que é: um problema de saúde pública.”

OITO CASOS CONFIRMADOS

Ontem, o Brasil saltou de três para oito casos de infecção pelo coronavírus confirmados. O primeiro desses novos casos, do qual falamos ontem, gerou uma certa confusão. Isso porque os testes da adolescente de 13 anos para o vírus deram positivo, mas ela não desenvolveu os sintomas da doença. E, por isso, o Ministério da Saúde primeiro anunciou que não a contabilizaria como caso, mas voltou atrás depois de ouvir especialistas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que todos os casos assintomáticos sejam classificados como confirmados.  

Ao longo do dia, a Pasta confirmou os outros casos. E dois deles foram transmitidos por aqui, em São Paulo, pelo primeiro paciente detectado com a doença – que, por sua vez, se infectou na Itália. “Estes dois casos estão relacionados entre si. Sabemos a origem da transmissão. Por isso são considerados transmissão local. Quando não conseguimos relacionar a transmissão com o caso já confirmado, ela é considerada transmissão comunitária. É o que ocorre em países como a China, Itália e Estados Unidos”, explicou Wanderson de Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde, durante a coletiva de imprensa de ontem. 

Além disso, Rio de Janeiro e Espírito Santo tiveram casos confirmados. No Rio, a paciente tem 27 anos e viajou para Itália e Alemanha em fevereiro. A doente capixaba também é mulher, tem 37 anos, e viajou para a Itália. A Pasta analisa mais um provável caso no Distrito Federal, que aguarda a contraprova. O país monitora 636 casos suspeitos. Outros 378 já foram descartados. 

O Nexo explica em reportagem quais são as ações do governo brasileiro para evitar a propagação do Covid-19. De acordo com o site, a principal delas é o monitoramento de pessoas que estiveram nos países que detectaram transmissão local do vírus. Até o momento, são 31 países nessa situação – e outros dois, Filipinas e Camboja, que embora não tenham transmissão local, estão na região afetada. Mas o monitoramento acontece de forma passiva: caso um indivíduo que esteve em um desses locais apresente sintomas, as secretarias estaduais de saúde e o governo federal passam a considerá-lo um caso suspeito.  

A missão da OMS enviada à China no fim de fevereiro voltou com algumas recomendações para países que tenham casos da doença. Uma delas é a suspensão de eventos que concentrem grandes contingentes de pessoas e o fechamento de escolas e locais de trabalho. Além disso, em seu relatório, os especialistas recomendam “exaustiva busca de casos, teste imediato e isolamento”. E também “meticuloso rastreamento de contatos” – o que quer dizer buscar as pessoas que se aproximaram dos doentes. Reportagem do jornal O Globo questiona por que o governo brasileiro, até agora, descartou adotar tais restrições. Questionado, o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta citou a resposta do Reino Unido como exemplo: “Lá não se descarta, e o nosso também não, a eventual necessidade de isolamento. Está ali no nosso arsenal. Não descartamos suspensão de aulas. Vamos ver como as coisas se comportam.” Outro ponto questionado no plano brasileiro é a previsão de que, a partir do 100º caso confirmado, não se faça mais testagem de todos os suspeitos. Nesse cenário, o país entraria em estágio de “mitigação”, reservando os testes apenas para casos graves em UTI. Alberto Chebabo, da Sociedade Brasileira de Infectologia, acredita que isso pode comprometer o rastreamento de novos casos de Covid-19. 

No mundo, 290,5 milhões de estudantes estão sem aula por causa do novo coronavírus. A informação é da Unesco, e dá conta de que pelo menos 22 países adotaram medidas de restrição, em alguns casos radicais, caso da China e da Itália. A entidade calcula ainda que há outros 180 mil alunos potencialmente afetados por interrupções parciais e regionais no funcionamento de escolas. Os países que, por enquanto, optaram por esse caminho são França, Alemanha, Paquistão, Coreia do Sul, Cingapura, Tailândia, Reino Unido, Estados Unidos e Vietnã.

AINDA NÃO

E ontem, na coletiva de imprensa diária, a OMS voltou a defender sua posição de não declarar o Covid-19 como pandemia. De acordo com o diretor-geral da Organização, Tedros Ghebreyesus, ainda não é hora de desistir das ações de bloqueio em nome da mitigação. Ele instou os governos a não relegarem o problema ao Ministério da Saúde. “É preciso uma resposta do governo como um todo”, repetiu diversas vezes. “Não é hora de desistir. Não é hora para desculpas. É hora de colocar tudo que estiver ao alcance e parar [a propagação]”, enfatizou.

No mundo, foram reportados 95.265 casos da doença, com 3.281 mortes. A China continua mostrando capacidade em debelar o surto, com apenas 143 casos registrados entre anteontem e ontem, sendo que oito províncias do país não reportam casos há 14 dias. Fora da China, no mesmo período, foram contabilizados 2.055 casos em 33 países. 

A África do Sul confirmou ontem seu primeiro caso. O presidente Cyril Ramaphosa prometeu transparência e afirmou que, muito provavelmente, a doença vai gerar uma “crise nacional” pelos impactos no turismo e na economia como um todo. Também ontem, o governo britânico fez previsões sombrias. O ministro da Saúde, Matt Hancock, falou que as próximas semanas serão “duras”. O total de casos confirmados no país subiu de 85 para 115 em um dia.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, Donald Trump resolveu inventar sua própria taxa de mortalidade do coronavírus e desacreditar a informação dada um dia antes pela OMS. “Eu penso que 3,4% é realmente um número falso. Agora, isso é apenas um palpite, mas baseado em conversas… Pessoalmente, eu diria que o número é muito abaixo do 1%”, disse o presidente norte-americano ontem, em uma entrevista ao canal televisivo aliado Fox. Por lá, haviam sido confirmados até ontem 128 casos e 11 mortes. 

COBERTO

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) esclareceu em nota que planos de saúde são obrigados a cobrir o tratamento de pacientes diagnosticados com o novo coronavírus. A ANS garante ainda que o tratamento deve ser iniciado a partir do diagnóstico clínico, e não apenas depois do exame laboratorial. 

BACKER RECONHECE, ENFIM

Pela primeira vez desde que surgiram casos suspeitos de intoxicação, a Cervejaria Backer admitiu a presença das substâncias monoetilenoglicol e dietilenoglicol em suas cervejas. O reconhecimento aconteceu na quarta (4), durante audiência pública na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Na ocasião, o advogado da empresa, Estevão Nejm, também alegou que a Backer não pode custear as despesas de saúde das vítimas devido ao bloqueio de bens feito pelo Tribunal de Justiça de Minas. Ele também afirmou, sem citar nomes, que “várias outras marcas de cerveja” também apresentaram traços das substâncias. A afirmação foi desmentida pelo Ministério da Agricultura, que coletou mais de uma centena de amostras de produtos de outras cervejarias. Nejm também argumentou que o fato de existir sinal desses agentes químicos nos produtos são é suficiente para torná-los impróprios ao consumo: “Temos que ter a informação quantitativa. O que estou querendo explicar é que ninguém ainda compartilhou, nem polícia, nem Ministério da Agricultura, nem mesmo os nossos laboratórios, o que seria a concentração necessária para causar essa intoxicação. Então, a gente ainda não tem essa informação correta.”

CRISE EM MINAS

O caos reina na subsecretaria de Inovação e Logística da secretaria estadual de Saúde de Minas Gerais. Ontem, 15 funcionários com cargos de confiança, incluindo o subsecretário Bruno Carlos Porto, pediram exoneração durante um ato que reuniu dezenas de servidores na Cidade Administrativa. Mas numa tentativa de abafar a crise, o secretário Carlos Eduardo Amaral decidiu não acatar a “exoneração a pedido” e mandou que os documentos voltassem para que a saída em massa aparecesse oficialmente como demissões. De acordo com O Tempo, um dos motivos que levaram à debandada foi a compra desnecessária de medicamentos. “Começou o movimento de obrigar a área meio a fazer compras de estoques de medicamentos alegando que seria para atender medidas judiciais, porém essas decisões judiciais ainda nem existiam. O que caracterizou compra além da demanda real que já era feita consumindo recursos já escassos em um Estado em crise”, disse ao jornal um servidor que preferiu se manter anônimo.

Outro ponto de discordância foi a falta de medidas adequadas para conter o novo coronavírus. Segundo o mesmo servidor, não ocorreu até o momento nenhuma requisição para a compra de insumos e equipamentos e somente esta semana o assunto começou a ser discutido pela cúpula da secretaria. 
Além do subsecretário, pediram exoneração quatro superintendentes, oito diretores e duas assessoras. Com isso, a subsecretaria, que possui 18 cargos de gestão, ficou com apenas cinco postos ocupados.

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