Depoimento de Ernesto Araújo aumenta pressão sobre Pazuello

Ex-chanceler se esquivou de responsabilidade pela falta de diálogo com outros países, afirmando que definição vinha de Ministério da Saúde

Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado
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Tentando se eximir de qualquer responsabilidade pela má atuação da diplomacia brasileira nas negociações por vacinas, o ex-chanceler Ernesto Araújo decidiu atribuir todas as decisões erradas na pandemia ao Ministério da Saúde. Em seu depoimento à CPI ontem, ele disse que o Ministério das Relações Exteriores não delineou nenhuma estratégia específica para dialogar com outros países sobre a compra de imunizantes, tratamentos e insumos diversos. Essa definição teria sido feita pela Saúde, e ao Itamaraty, basicamente, cabia obedecer. 

“Nunca recebi orientações para acelerar contatos com fornecedores de vacinas”, disse ele, para defender a falta de iniciativa. A atuação de sua pasta nas conversas com a AstraZeneca foi, por isso, apenas “um apoio secundário, logístico, operacional”, sem participação “da substância da negociação”. Quanto à CoronaVac, ele se limitou a reconhecer nunca participou de nada.

Como se sabe, o Brasil poderia ter entrado na Covax Facility comprando doses suficientes para imunizar até 50% da população, mas optou pelo acordo mais econômico, que beneficiaria apenas 10% dos habitantes. “Essa decisão não foi minha, não foi do Ministério das Relações Exteriores. Foi uma decisão do Ministério da Saúde, dentro da sua estratégia de vacinação”, justificou Araújo, que disse não saber de quem exatamente partiu essa ordem. 

Ao responder por que o país demorou para entrar nas dicussões da Covax, Araújo mentiu: disse que o governo brasileiro manifestou a intenção de aderir em junho do ano passado, “tão logo essa iniciativa foi definida” e que “dela participamos ativamente desde então”. Só que a aliança começou a ser discutida em abril, sem a presença de nenhum diplomata brasileiro. Junho foi o mês em que ela foi oficialmente lançada. O Brasil só entrou na conversa um mês depois e  confirmou a intenção de participar apenas no fim setembro, quando outros 170 países já haviam entrado no consórcio. 

Se a atuação do Itamaraty para negociar vacinas foi inexpressiva, o mesmo não se pode dizer sobre as tratativas envolvendo a hidroxicloroquina. Nesse caso, apesar de o ex-ministro dizer que houve um pedido do Ministério da Saúde nesse sentido, acabou reconhecendo que o presidente Jair Bolsonaro solicitou a mobilização da diplomacia brasileira para conseguir, do governo indiano, insumos necessários ao aumento da produção no Brasil. Alegou que “em março, havia uma expectativa de que houvesse eficácia”. Porém, como lembra a Folha, o Itamaraty continuou enviando telegramas sobre isso para a Índia em junho, quando já não havia mais expectativa nenhuma…

Araújo também implicou Bolsonaro na misteriosa viagem de R$ 440 mil a Israel, em que supostamente se conversou sobre a compra de um spray nasal testado em menos de 40 pessoas. O envio da comitiva teria partido de uma ordem do presidente, após conversa com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. Além de a excursão não ter servido para nada, Araújo não soube explicar qual foi a função nela do ex-policial Max Moura, um assessor ligado ao senador Flávio Bolsonaro e a seu ex-assessor Fabrício Queiroz.

Sua autodefesa não foi nada convincente. E, além de deixar claro que sua pasta não fez nada para encontrar soluções para a pandemia, Araújo ainda reconheceu não ter sido nem um pouco… diplomático no trato com o governo venezuelano durante a crise do oxigênio em Manaus. A Venezuela disponibilizou uma doação do insumo, que chegou ao Amazonas por rodovia. Na época, a diplomacia brasileira não tentou nenhum diálogo para viabilizar o transporte aéreo, que seria mais rápido e seguro. E não foi só antes e durante a doação que Ernesto Araújo ficou apático: o ex-ministro reconheceu que não fez contato com o governo de Nicolás Maduro nem mesmo após a doação, para agradecer. Por que tanto silêncio? Por conta do mantra: “O Itamaraty não age de maneira autônoma em temas de saúde”. 

Amigo da China

Durante o depoimento de Ernesto Araújo, as redes sociais foram inundadas com memes ironizando sua mudança de postura: acostumado ao falar grosso para tratar de “ordem global”, “comunavírus” e “teofobia“, ontem o ex-chanceler estava visivelmente diminuído, titubeando e iniciando todas as respostas com um “Perfeito, senador, obrigado, senador”. 

Como era de se esperar, várias das perguntas foram sobre os efeitos de suas declarações anti-China, considerando que o país é hoje nosso principal fornecedor de IFA (ingrediente farmacêutico ativo) para vacina. “Eu não entendo nenhuma declaração que eu tenha feito em nenhum momento como antichinesa. Houve determinados momentos em que, como se sabe, por notas oficiais, nós nos queixamos de comportamentos da Embaixada da China ou do embaixador da China em Brasília, mas não houve nenhuma declaração que se possa qualificar como antichinesa. Enfim, não há nenhum impacto de algo que não existiu”, defendeu-se. 

Seu artigo “Chegou o Comunavírus“, postado em blog em abril do ano passado, foi sempre lembrado pelos senadores como prova de um embate com a China, e outros exemplos são ainda mais contundentes. Um dos piores momentos foi em março de 2020, quando Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) culpou os chineses pela pandemia. Em vez de acalmar os ânimos, Araújo saiu em defesa do filho do presidente. Em relação às falas de Jair Bolsonar – que são inegavelmente anti-China –, ele disse ontem que elas em nada atrapalham na compra de imunizantes. 

A senadora Kátia Abreu (PP-TO), que não fez perguntas, usou seus 15 minutos para espinafrar o ex-chanceler: “O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor, no Ministério das Relações Exteriores, foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, para um naufrágio. Bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira, foi isso que o senhor fez. Isso é voz unânime dos seus colegas no mundo inteiro”. Ela afirmou que vai pedir o áudio da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020 – a íntegra foi liberada pelo ex-ministro do STF, Celso de Mello, mas, a pedido da Advocacia-Geral da República, foi retirado o trecho em que Araújo falava. O que se diz é que a remoção teria sido porque havia ofensas diretas à China. A liberação do áudio poderá tirar a dúvida. 

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