Caos e desperdício

Pesquisas com tratamentos para covid-19 se multiplicam, mas poucas poderão trazer respostas confiáveis. Domínio de estudos sobre cloroquina é um dos motivos. Entenda

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O empenho de pesquisadores do mundo inteiro para conseguir um tratamento contra a covid-19 é notável. Desde janeiro, foram 1,2 mil ensaios clínicos projetados para testar medicamentos e terapias. Só que um levantamento feito por repórteres do Stat traz uma triste constatação: muitos recursos financeiros têm sido desperdiçados. Com frequência os estudos são pequenos demais (39% só inscreveram ou pretendem inscrever menos de cem pessoas) para obter resultados confiáveis. E 38% ainda não começaram a registrar voluntários. 

O  problema é que parece não haver uma coordenação global para identificar prioridades e dividir o esforço. E dois vilões nessa história são, adivinhem, a cloroquina e a hidroxicloroquina. O frisson em torno dos medicamentos – iniciado por um fatídico artigo francês e impulsionado por Donald Trump – fez com que eles dominassem as pesquisas. Dos 685 mil voluntários inscritos em todos os estudos, 35% (ou 237 mil) estiveram em ensaios sobre esses remédios. Isso é ruim porque uma das maiores dificuldades dos pesquisadores é recrutar pessoas para testarem os medicamentos. Com o monopólio da cloroquina, ficou mais complicado ainda conseguir gente para os outros potenciais tratamentos. E, o que é pior: na maior parte das vezes os ensaios com cloroquina são pequenos e sem grupos de controle, ou seja,  não podem dizer ao certo se os tratamentos funcionam ou não. Ensaios clínicos podem custar milhões de dólares.

“É uma enorme quantidade de esforço desperdiçado e energia desperdiçada quando, na verdade, um pouco de coordenação e colaboração poderiam nos levar longe e responder a algumas perguntas”, diz na reportagem Martin Landray, professor da Universidade de Oxford. Ele é também um dos principais pesquisadores do Recovery, grande ensaio randomizado do Reino Unido que investiga vários tratamentos em 12 mil pessoas e centenas de hospitais. O Recovery, aliás, é citado pela matéria como exemplo de uma pesquisa bem projetada e que, de fato, traz resultados mais seguros. Até agora, entre os 1,2 mil estudos, só dois apresentaram provas da eficácia de algum tratamento: o Recovery e um trabalho dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, que mostraram que o remdesivir diminui o tempo de internação de pacientes graves.

Se conseguir voluntários é difícil, uma das razões para o sucesso do Recovery é que ele recebeu apoio do National Health Service (o ‘SUS’ britânico). Os pesquisadores enviaram uma carta a cada um dos hospitais do NHS pedindo aos médicos que inscrevessem seus pacientes nesse e em outros dois ensaios clínicos – assim, em vez de apenas usar os medicamentos de forma emergencial, como se faz por toda parte, esse uso pode servir para estudar os efeitos de cada droga. “Usar tratamentos fora de estudos, quando é possível participar deles, é uma oportunidade desperdiçada de criar informações que beneficiarão outras pessoas”, escreveram os médicos, na carta. Por causa dessa coordenação, um em cada seis pacientes com covid-19 internados nos hospitais do Reino Unido acabaram fazendo parte do Recovery, segundo uma reportagem da Science.

Já nos EUA, país com maior número de casos de covid-19 do mundo, a escassez de resultados é “surpreendente e um pouco decepcionante”, como nota John-Arne Røttingen, que chefia o comitê de direção do Solidarity (o grande ensaio da Organização Mundial da Saúde). Lá, dezenas de milhares de pacientes receberam tratamento com plasma, por exemplo, mas não em ensaios randomizados, com grupos de controle. “Saberemos o que aconteceu com esses pacientes, mas não saberemos se eles estariam em melhor situação se não tivessem recebido plasma”, explica Ana-Maria Henao Restrepo, médica do Programa de Emergências da OMS. Ou seja, perdeu-se a oportunidade de produzir evidência científica sólida sobre a eficácia (ou não) desse tratamento.

É importante observar que o processo caótico não se repete no desenvolvimento de vacinas: no caso delas, isso está sendo feito de forma mais metódica. 

Em tempo: depois da hidroxicloroquina, a OMS agora excluiu o tratamento com lopinavir/ritonavir do ensaio Solidarity. O Discovery (estudo europeu feito em parceria com o Solidarity) também. Os resultados preliminares mostram, além de ineficácia, efeitos colaterais muito significativos.

E a farmacêutica Regeneron anunciou o início da última fase dos ensaios clínicos do seu coquetel de anticorpos para tratar a covid-19. Pretende incluir dois mil voluntários nos EUA. 

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